Por Juliana
Dias e José Carlos de Oliveira*
Da Carta Capital
A questão de que
as novas tecnologias poderão resolver os problemas humanos com que
nos defrontamos é controversa. As tecnologias fundadas em aplicação
de estudos científicos apresentam incertezas para o bem-estar
humano. Apontam para aspectos negativos de difícil solução, pois
têm por objetivo questões distintas do que é alardeado como grande
vantagem — por exemplo, eficiência e lucro. O detentores dessas
novas tecnologias tentam provar a eficácia, defendendo benefícios
não inteiramente comprovados para lançar na sociedade seus produtos
inovadores. O caso da transgenia serve como exemplo para indicar as
implicações e compromissos entre ciência e democracia, no que diz
respeito aos direitos civis e sociais dos cidadãos, bem como sua
participação deliberativa.
A produção de
alimentos geneticamente modificados (GM) em larga escala teve início
em 1996, nos Estados Unidos (EUA), com a introdução da soja
resistente a herbicidas. Entretanto, o debate a respeito desse modelo
produtivo na agricultura industrial é pautado por controvérsias. A
área mundial ocupada com cultivos GM atingiu 102 milhões de
hectares em apenas 10 anos (SILVEIRA e BUAINAIN, 2007, p.58). Já o
diálogo, na sociedade, sobre a positividade ou negatividade de seu
uso, avança com dificuldades. Não há consenso entre cientistas,
governos, indústrias e associações civis, os protagonistas desse
enredo. Na perspectiva de Latour (2007, apud ABRAMOVAY p. 135),
descrever controvérsias trata-se da capacidade de acompanhar e expor
“um debate que tem por objeto, ao menos em parte, conhecimentos
científicos ou técnicos ainda não assegurados”.
A decisão sobre o
que colocar na lavoura, ou no prato, sofre pressões em favor da
economia e da eficiência do agronegócio. Os defensores da
engenharia genética em plantas comestíveis argumentam que, só por
esta via, será possível alimentar os 9 bilhões de habitantes
previstos para 2050 no planeta. No entanto, quando a indústria
assume o compromisso de promover a segurança alimentar, a lógica
que se sobrepõe é a do alimento como mercadoria, e não como
direito.
As informações
disseminadas não parecem conduzir à construção de um diálogo que
assegure autonomia e engajamento no processo democrático. O cenário
ainda é de incerteza, para prosseguir com um sistema agrícola
centrado na biotecnologia. De um lado, as multinacionais prometem a
melhoria na qualidade dos alimentos e a garantia da Segurança
Alimentar. De outro, os agricultores apontam a perda de autonomia no
exercício de plantar; a população sofre com problemas de saúde em
relação ao uso de agrotóxicos, produzindo, inclusive, mortes; e o
meio ambiente sofre com a deterioração do solo, entre outras
ameaças (ROBIN, 2008).
As
discordâncias
Um principal
protagonista do enredo da indústria da biotecnologia é a
multinacional Monsanto, fundada há 112 anos em St. Louis, nos EUA.
Sua atuação junto aos governos, universidades e organismos
internacionais é vigorosamente contestada, igualmente por
cientistas, agrônomos, políticos, técnicos e, principalmente, por
camponeses. A imagem da empresa representa, metaforicamente, o quão
controverso é o diálogo com a sociedade. Já existem vários
estudos publicados, questionando sua postura corporativa em mais de
um século de existência. Desde o suprimento do herbicida conhecido
como Agente Laranja para a Guerra do Vietnã à introdução de
agrotóxicos para a Revolução Verde (ROBIN, 2008).
Para pontuar
aspectos dessa controvérsia, fizemos um recorte cronológico com
alguns fatos da trajetória da companhia em 2013, quando completou 50
anos no Brasil. No mesmo ano em que o vice-presidente de Tecnologia e
cientista-chefe da Monsanto, Robert Fraley, recebe o World Food Prize
(Prêmio Mundial de Alimentação, concedido por iniciativa de um
empresário norte-americano) devido ao pioneirismo na área de
biotecnologia, a empresa desistiu do desenvolver novas sementes GMs
na União Europeia, pois há demora na aprovação de novas
variedades modificadas – ela é detentora do maior número de
pendências de aprovação no bloco europeu.
A demora na
aprovação espelha suspeitas ainda bastante difundidas sobre a
segurança, já que grupos da sociedade civil europeia temem seus
impactos no ambiente e na saúde1. Pelo menos dez países europeus –
Polônia, Alemanha, Áustria, Hungria, Luxemburgo, Romênia, França,
Grécia, Suíça, Itália e Bulgária – já proibiram o cultivo do
milho transgênico da Monsanto, o MON 8102. A decisão tem base em
estudos, segundo os quais a toxina presente no organismo modificado
provoca danos à minhocas, borboletas e aranhas. Provas de sua
segurança para a saúde são inconclusivas. Os efeitos colaterais
para o homem e o meio ambiente ainda carecem de estudos conclusivos
independentes (ROBIN, 2008; ZANONI e FERMENT, 2011; VEIGA, 2007;
ANDRIOLI E FUCHS, 2012).
A empresa completou
cinco décadas no Brasil com o lançamento comercial das sementes da
soja Intacta RR2 Pro, primeira tecnologia desenvolvida em solo e para
solo brasileiro. No mesmo 2013, mais de 50 países aderiram à
“Marcha contra Monsanto” em protesto contra a manipulação
genética e o monopólio da multinacional na agricultura e
biotecnologia. A campanha teve como estopim o suicídio de
agricultores indianos. Essa prática tem se tornado frequente devido
ao endividamento para competir na agricultura industrial.
O direito às
sementes do agricultor e o direito à informação do cidadão passam
por um modelo controverso, dúbio e confuso de controle e regulação,
de algum modo referenciados nas leis federais em diversos países da
América do Sul, da África e nos Estados Unidos. A indústria da
biotecnologia vem avançando por meio da formação de um oligopólio
no mercado das sementes, baseado também em um direito, o de
propriedade intelectual, que torna privado o que é o público, com a
natureza e a produção de conhecimento. Tudo feito em parceria com
as agências governamentais. Com isso, quem planta troca a
diversidade e a capacidade de selecionar seus grãos por plantas que
recebem alteração genética (VEIGA, 2011, ZANONI E FERMENT, 2011).
A transnacional
Monsanto está em mais de 80 países, com domínio de aproximadamente
80% do mercado mundial de sementes transgênicas e de agrotóxicos. A
empresa acumula acusações em diferentes continentes, por violações
de direitos, por omissão de informações sobre o processo de
produção de venenos, cobrança indevida de royalties e imposição
de um modelo de agricultura baseado na monocultura, na degradação
ambiental e na utilização de agrotóxicos.
A quem
interessa saber?
O diálogo sobre o
presente e o futuro da alimentação diz respeito aos 7 bilhões de
habitantes do planeta hoje existentes. De acordo com Paulo Freire
(1971b, p. 43, apud Lima 2011, p.90), “dialogar não significa
invadir, manipular, ou fazer ‘slogans’. Trata-se de um
devotamento permanente à causa da transformação da realidade (…).
O diálogo não pode se deixar aprisionar por qualquer relação de
antagonismo (…)”. A Monsanto se apresenta como uma empresa
comprometida com o diálogo, o qual estabelece como base nos
princípios de seu compromisso corporativo: “ouvir atentamente
diversos públicos e pontos de vista, demonstrando interesse em
ampliar a nossa compreensão das questões referentes à tecnologia
agrícola, e a fim de melhor atender as necessidades e preocupações
da sociedade e uns dos outros”.
Ao afirmarmos que o
diálogo sobre a produção de transgênicos é desencontrado,
referimo-nos às ambivalências entre o discurso e a prática das
empresas, dos governos, das universidades e da mídia. O processo
dialógico é permeado por ruídos, omissões e abordagens
unilaterais.
Um ponto flagrante
na divulgação das informações para a população é que a
pesquisa com transgênicos é realizada quase exclusivamente por
aqueles que comercializam os produtos biotecnológicos. A preocupação
é elaborar variedades com mais performance, sem se envolver na
investigação de seus riscos indiretos ou diretos. A introdução
dos GMs em diversas partes do mundo mostra a relação conflituosa
entre ciência e democracia (APOTEKER, 2011, p. 89). As implicações
vão além da dimensão cientifico-tecnológica. Estão ligadas às
decisões políticas dos governos e à ética. Existe uma tensão
permanente entre a demanda da sociedade e os interesses envolvidos
com o fazer científico.
O direito à
informação sempre esteve presente nos debates relacionados com a
introdução dos transgênicos no país. Essa reinvindicação foi
impulsionada pelas organizações não governamentais (ONGs) e
movimentos sociais, em especial os ligados aos direitos do
consumidor. “O aumento da produção amplia a importância da
informação como meio de garantir aos cidadãos o poder legítimo de
escolha”. (SALAZAE, 2011, p. 302).
A rotulagem de
alimentos é um meio de assegurar esse direito, mas em contrapartida
torna-se uma arena de conflitos entre as indústrias e os
consumidores. Nos EUA, utiliza-se o critério de “equivalência
substancial”, em que a semente não transgênica é posta em
igualdade com a geneticamente modificada. Partindo dessa norma, não
há necessidade de informar ao consumidor o tipo de grão que contém
um produto alimentício. Assim, a legislação norte-americana não
permite estampar o “T” (de transgênico) nos rótulos (ROBIN,
2008).
Entretanto, as
associações de consumidores norte-americanas conseguiram o direito
de rotular o leite com a informação “ausência de uso”,
referindo-se ao hormônio rBGH, responsável por aumentar em até 30%
a produção de leite. Este foi o primeiro produto nascido da
engenharia genética. Após 15 anos de uso massivo na pecuária
leiteira – com índices elevados de mastites nas vacas que recebiam
o hormônio, aumento da quantidade de germes no leite, além do
crescimento do fator IGF (responsáveis por várias enfermidades) –
a população passou a ter acesso a essa informação. (APOTEKER,
2011, p. 90; COHEN, 2005).
No Brasil, o
decreto federal 4.680/2003 regulamentou o direito à informação,
conforme artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor (CDC), sobre
alimentos que contenham acima de 1% de ingredientes transgênicos. A
lei vale, inclusive, para alimentos e ingredientes produzidos a
partir de animais alimentados com ração contendo GM. Em agosto de
2012, o Tribunal Regional Federal da Primeira Região, acolhendo o
pedido da Ação Civil Pública proposta pelo Instituto de Defesa do
Consumidor (Idec) e pelo Ministério Público Federal (MPF), tornou
uma exigência a rotulagem dos transgênicos independentemente do
percentual e de qualquer outra condicionante. É possível
identificar em diversos produtos um símbolo com a letra T (exige
atenção para identificar, pois normalmente aparece com discrição
nas embalagens).
Entretanto, o
momento atual parece um retrocesso no que diz respeito à informação
sobre a fabricação. O Projeto de Lei (PL) 4.148 (2008), de autoria
do Deputado Luis Carlos Heinze, pretende retirar essa informação
dos rótulos. O PL apresenta as seguintes propostas: (1) não torna
obrigatória a informação sobre a presença de transgênico no
rótulo se não for possível sua detecção pelos métodos
laboratoriais, o que exclui a maioria dos alimentos (como papinhas de
bebês, óleos, bolachas, margarinas); (2) não obriga a rotulagem
dos alimentos de origem animal alimentados com ração transgênica;
(3) exclui o símbolo T que hoje permite a identificação da origem
transgênica do alimento (como se tem observado nos óleos de soja);
(4) não obriga a informação quanto à espécie doadora do gene.
Em 2013, o PL
poderia ir em votação em caráter de urgência, mas a ameaça não
se confirmou. Em 29 de abril de 2014, novamente entrou eu pauta por
conta de outro projeto que prevê a separação de produtos
transgênicos em prateleiras de estabelecimentos comerciais (similar
a uma lei estadual de São Paulo). Mas com a mobilização da
sociedade civil a votação foi suspensa. Esses são alguns dos
desencontros do diálogo sobre a transgenia no Brasil. O Idec está
em campanha para impedir o fim da rotulagem dos transgênicos. Para
participar, basta enviar uma mensagem para os deputados. É fácil e
eficaz.
A soberania do
discurso científico pode calar e distanciar os cidadãos de assuntos
que dizem respeito ao desenvolvimento econômico, social e cultural.
É necessário construir um debate público com informação e
conscientização. O diálogo aprofundado, e interessado em ouvir o
que a sociedade realmente tem a dizer, é de responsabilidade do
governo, por meio das leis de regulamentação; das universidades
públicas, com educação e formação de cidadãos críticos e
participativos; dos cientistas, ao respeitar o interesse público;
das ONGs, ao trazer informações para a esfera pública; e da mídia
e empresas do agronegócio, que devem comunicar com mais clareza e
ética.
Como podemos
observar, as novas tecnologias envolvem questões que devem ser
debatidas pelos mais diversos atores sociais. A produção de
alimentos GMs trouxe questões complexas, que urgem por
interdisciplinaridade para construir a reflexão e propor soluções.
É o caso alarmante da transição da posse das sementes, das mãos
dos camponeses às das multinacionais. Outra análise imperativa é
em relação aos riscos indeterminados, em longo prazo, na saúde
humana e no meio ambiente.
A dificuldade para
se fazer pesquisas independentes sobre a produção de transgênicos
é um entrave para fundamentar as discussões no campo do direito e
da cidadania. O diálogo entre os sujeitos, permeado de múltiplos
valores, necessita encontrar caminhos concretos e seguros para
transformar a realidade. Nesse sentido, um processo de comunicação
dialógico, como nos sugere Paulo Freire, pode nutrir a sociedade com
informações consistentes e o mais abrangentes possíveis. Assim, o
cidadão poderá conquistar autonomia e engajamento para participar
democraticamente, de forma deliberativa, de questões centrais para o
presente e o futuro.
*Juliana Dias é
editora do site “Malagueta – palavras boas de se comer” e José
Carlos de Oliveira é professor do Programa de Pós graduação do
HCTE/UFRJ em “Ciencia, Tecnologia e Segurança Alimentar”.