Por Urariano Mota.
Desenvolvo nestas
linhas uma entrevista que o Diário de Pernambuco publicou em 9 de
setembro de 2013, em razão dos 185 anos do gênio universal.
– Por que ler
Tolstói?
– A sua leitura,
releitura é urgente, porque virou moda o escracho, o medíocre, a
ideia vulgar de que o respeito aos oprimidos é algo “politicamente
correto”, ou que se pode zombar impune de minorias e pessoas
discriminadas. Tolstói põe o dedo na ferida e nos mostra a cara
feia ou digna da realidade. E com que arte, e com que aprofundamento
de reflexão e revolta. O quanto ele sabe contar uma história em
pessoas e personagens vivas.
Ele é um autor que nos
enche as medidas, que nos alimenta e nutre numa carência
insatisfeita satisfeita contínua. Ler esse gênio da humanidade é
como aprender o mundo num salto de conhecimento, e por alcançar esse
ponto mais alto querermos outros saltos. Tolstói, para o artista que
está dentro de todo homem, em todos os tempos, é um autor
imprescindível, sem o qual seremos todos menores, menos homens
humanos.
E, importante, Tolstói
não brinca de fazer literatura. Nem põe a sua pessoa acima da
maioria de todos os homens, fazendo poses de criador.
– Qual a importância
da obra?
– Para os escritores
em particular, a importância desse gênio foi bem expressa por
Thomas Mann:
“A força narrativa
dessa obra não tem igual: todo contato com ela traz ao escritor
talentoso e receptivo (e uma coisa não pode existir sem a outra) uma
enxurrada de força e frescor, de prazer criativo primordial e de
sanidade”.
“Assim como um Anteu
que se revigora em contato com a terra materna, a criação de
Tolstói nos parece terra e natureza. Relê-lo significa livrar-se de
qualquer perigo de artificialidade ou de jogo doentio. Com ele se
volta ao primordial e sadio, ou a volta àquilo que em nós é
saudável e primordial.”
Graciliano Ramos, mais
de uma vez, afirmou que Guerra e Paz era o maior romance da
literatura mundial. E dizia mais, que nunca havia lido novela melhor
que A morte de Ivan Ilitich. Nesse particular, o padre e poeta Daniel
Lima uma vez me disse que para ele a maior obra de Tolstói era A
morte de Ivan Ilitch.
Agora, para todos nós,
escritores e leitores unidos em uma só pessoa: somente conseguimos
refletir a obra de Tosltói com superlativos, o que quer dizer: ela é
a esperança de que em nós também resida algo menos canalha, algo
imenso, de um futuro de fraternidade que a nossa porca vida ainda não
permite existir. É a esperança de que poderemos ser um homem
melhor, ainda que carreguemos esta ancestralidade animal.
– Que aspectos são
mais interessantes na obra do escritor?
– Penso que Tolstói
representa para a literatura o que Karl Marx representa para a
filosofia. Não no sentido de que ele tenha escrito um romance
equivalente a O capital. Não é isso. Mas no sentido de que com ele
se instala o desejo de transformar o mundo a partir da literatura. A
fazer a transformação do mundo a partir dos seus livros. Tolstói
não se satisfazia mais em explicar, descrever ou narrar mundo. Ele
queria mudar o mundo com o seu grande romance. E a tarefa foi tão
imensa, que no seu sonho impossível ele fundou uma nova religião, o
tolstoísmo. Era um louco com o fogo de Deus. Ele sabia que a grande
arte se avizinha da utopia da religião.
É sempre destacada, e
com muita razão, o que ele realizou em romances únicos, como Guerra
e Paz e Ana Karenina. Mas o que dizer, para ficar no mais simples, do
seu conto Os três Anciãos, que em algumas editoras chamam de Os
três Eremitas? É um conto breve e cortante como quicé, a nos
derrubar pela graça, ainda que pregue o valor de um milagre gerado
pelo amor absoluto a Deus. Só mesmo lendo para sentir como a mão do
mestre põe três velhinhos a correr sobre o mar, por quilômetro
sobre as águas, na maior naturalidade. É comovente a ideia que a
narração nos deixa, ao opor a ingenuidade de três velhinhos
simples, ignorantes dos rituais e do luxo da Igreja, e que, por isso
mesmo, conseguem maravilhas.
E o conto Depois do
baile? Penso que um escritor, depois de escrevê-lo, poderia
dizer-se, “cumpri o meu dever, todos os meus pecados foram pagos”.
Nele se ressalta uma imensa vergonha por um ato desonroso, que é
mais sensível em pessoas que acabam de se acovardar por egoísmo ou
medo. O leitor acaba o conto e em vez de jogá-lo a um canto,
pergunta-se a si mesmo, como eu me perguntei e me pergunto até hoje:
“quantas vezes isso já não ocorreu a mim nos meus dias?”. Então
a imensa desonra do personagem passa a ser do leitor também, porque,
afinal, todos cometemos pequenas ou grandes indignidades. E que
disfarçamos com discursos enganadores. O que me deixa feliz nesse
conto é que Tolstói o escreveu com a idade de 75 anos. Que coisa
bonita ele planta em nossos corações, porque se um homem é capaz
de um conto tão magnífico nessa idade, isso quer dizer que podemos
alimentar a esperança de ter uma atividade criadora por muitos e
muitos anos.
Copio de Máximo Górki,
no magnífico livro Três Russos, este flagrante de Tolstói:
“Uma tarde, ao
crepúsculo, ele lia, piscando os olhos e remexendo as sobrancelhas,
uma variante da cena do Padre Sérgio, em que uma mulher se dirige à
casa do eremita para seduzi –lo. Quando acabou de ler, levantou a
cabeça e, fechando os olhos, pronunciou distintamente:
– Escreve bem isto, o
velho! Muito bem!
Isso nele foi de tão
admirável simplicidade, sua admiração pela beleza era tão
sincera, que não esquecerei jamais a alegria que senti nesse
momento, uma alegria que eu não podia nem sabia exprimir, mas que
tive também grande pesar em reprimir. Por um instante meu coração
cessou de bater, mas depois tudo, em volta de mim, se tinha tornado
novo e de um vivificante frescor”.
No Padre Sérgio, o
relato a que Górki se refere, há uma intensa e tantalizante cena de
sedução do padre, um eremita, que no vigor dos 49 anos quer se
entregar de corpo e alma a seu Deus, recolhido em retiro. No entanto,
uma bela e rica mulher, por diversão, aposta e leviandade quer
testar em um só golpe a própria beleza e a dedicação do eremita.
Traduzo um breve trecho de El Padre Sergio, que está online no
CiudadSeva, site de língua espanhola:
“– Você não
entrará aqui? – perguntou a mulher, rindo –se. – Vou tirar a
roupa pra secar.
O padre Sérgio não
respondeu e continuou rezando suas orações do outro lado do
tabique, com a mesma voz tranquila.
‘Este, sim, é um
verdadeiro homem’, pensou ela tirando com dificuldade a bota
molhada. Mas por mais que tentasse, não podia tirá-la bem, e isso
lhe pareceu engraçado. Riu baixinho, mas sabia que ele ouvia o seu
riso, e que esse riso influía nele do modo que ela desejava. Então
riu mais alto, e aquele riso alegre, natural e bondoso influiu
realmente sobre o padre Sérgio tal como ela queria.
‘A um homem como este
se pode amar. Que olhos ele tem! E que rosto mais aberto, mais nobre
e mais apaixonado, mesmo que reze muitas orações – pensou ela –.
As mulheres não nos enganamos. Tão logo ele aproximou o rosto no
vidro da janela e me viu, eu o entendi e soube. Eu li no brilho dos
seus olhos. Ele me amou, me desejou. Sim, ele me desejou’, dizia,
tirando por fim a bota e depois as meias. Mas para tirar aquelas
compridas meias, presas em ligas, tinha que levantar a saia…”.
E mais não falo do
Padre e do castigo violento que ele se impôs, como uma confissão de
derrota ante a força do sexo. O ato do padre, na violência que se
faz, é de aparente desobediência ao impulso irreprimível da carne,
como uma lava de vulcão contra a própria incapacidade de abafar o
sexo como ele queria. Isso chama a atenção para o criador complexo
em Tostói. Ele realiza uma narração impiedosa e captadora do
movimento do real, ao mesmo tempo que narra ao lado, ou nas
entranhas, por sugestão ou arte do diabo, suas convicções
moralistas, aqui e ali se confundindo com um pregador de uma nova
igreja. Notem como ele critica uma personagem de Górki, num primeiro
e franco contato:
“Tolstói me fez
sentar à sua frente e se pôs a falar de Varenka Olessova e de Vinte
e seis e uma. Fiquei atordoado pela voz dele, de tal modo falava crua
e brutalmente demonstrando que o pudor não era próprio da natureza
de uma jovem sadia:
– Uma moça que
passou dos quinze anos, que tem um bom físico, deseja que a beijem,
que mexam com ela. A razão dela teme ainda o desconhecido, o que ela
não compreende, e é o que se chama de castidade, pudor. Mas a carne
já sabe que o incompreensível é inevitável, legítimo, e exige
que a lei se cumpra, a despeito da razão. No entanto, em casa essa
Varenka, que você descreve como boa e forte, tem sensações de
anêmica. Isso é falso!”.
Para terminar, outra
passagem de Três Russos, em que Tolstói nos deixa uma lição
fundamental de literatura, gravada por Máximo Górki:
“– Em Moscou, perto
da Torre Sukharev, num beco, vi no outono uma mulher embriagada.
Estava deitada, bem junto ao passeio. Do pátio de uma casa vinha se
escoando um enxurro de água imunda, que escorria mesmo por sua nuca
e suas costas. A mulher deitada nesse molho frio resmungava,
agitava-se. Seu corpo recaía, agitando na imundície. Ela, porém,
não conseguia se levantar.
Tolstói estremeceu,
fechou os olhos, balançou a cabeça e propôs afavelmente:
– Sentemo-nos aqui….
Uma mulher embriagada é a coisa mais horrível e ignóbil que há.
Eu quis ajuda-la a se levantar, mas não pude me decidir a isso. Tive
um excessivo desgosto: ela estava tão pegajosa, tão molhada; quem a
tocasse não teria sido bastante um mês para limpar as mãos. Que
horror! E durante esse tempo estava sentado no meio – fio da
calçada um rapazinho louro, de olhos pardos, as lágrimas corriam ao
longo de suas faces, fungava e repetia numa voz desesperada: “Ma-mãe…
então, levante-se”. Ela mexia os braços, dava um grunhido, erguia
a cabeça e recaía de novo, flac! com a cabeça na lama.
Calou-se, depois
olhando bem em volta de si, repetiu ansiosamente, quase num murmúrio:
– Sim, sim, é
horrível! Você tem visto muitas mulheres embriagadas? Muitas, sim,
ah, meu Deus! Não descreva isto, não é preciso!
– Por quê?
Olhou-me nos olhos e
repetiu sorrindo:
– Por quê?
Depois disse lentamente
com um ar pensativo:
– Não sei. Eu disse
isso assim… tem-se vergonha de escrever porcarias. E, no entanto,
por que não? É preciso escrever sobre tudo…
Lágrimas vieram-lhe
aos olhos. Enxugou-as e, sempre sorrindo, olhou o lenço, enquanto as
lágrimas continuavam a correr ao longo de suas faces.
– Eu choro. Sou velho
e me aperta o coração quando evoco uma lembrança horrorosa.
E me empurrando
ligeiramente com o cotovelo:
– Você também
quando tiver vivido sua vida, ao passo que tudo permanecerá como
dantes, você chorará, e ainda mais do que eu, ‘aos baldes’,
como dizem as mulheres do povo. Mas é preciso escrever tudo, sobre
tudo. De outra forma o rapazinho louro nos quereria mal, nos
censuraria. ‘Não é a verdade, não é toda a verdade’, dirá
ele. E ele é severo no que se refere à verdade”.
***
Soledad no Recife,
de Urariano Mota, está à venda em versão eletrônica (ebook),
***
Urariano Mota
é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor
e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção
e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é
colunista do Direto da Redação e colaborador do Vermelho. As
revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam
seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009)
sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife,
em 1973, e de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil,
2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da
opressão cultural e de classes no Brasil. Colabora para o Blog
da Boitempo quinzenalmente, às terças.