buscado no Gilson Sampaio
via Flávia Leitão
Fábio Konder Comparato
Ao
adotarem no curso do século XIX o sistema presidencial de governo,
criado pela Constituição norte-americana de 1787, os países
latino-americanos, inclusive o Brasil, operaram uma mudança de fundo no
modelo ianque.
Nos Estados Unidos, os Founding
Fathers de Filadélfia acolheram sem hesitações o princípio da separação
de Poderes, formulado originalmente por John Locke no século XVII e
retomado por Montesquieu no século seguinte. Ou seja, o Legislativo, o
Executivo e o Judiciário têm competências exclusivas, não podendo nenhum
desses Poderes interferir no funcionamento dos demais.
Na
América Latina, diversamente, prevaleceu um sistema dúplice, com a
instituição, por trás da fachada constitucional, de um direito não
oficial, para a proteção dos “donos do poder”.
Assim
é, por exemplo, no que diz respeito ao Chefe do Poder Executivo.Ninguém
ignora que em todos os países latino-americanos, sem exceção, muito
embora os textos constitucionais proclamem solenemente o princípio da
separação de Poderes, o Presidente da República goza de um status
hegemônico em relação a todos os demais órgãos do Estado.
As razões históricas dessa dubiedade institucional são bem claras.
Nos países hispano-americanos, a tradição caudilhesca. Entre nós, a tradição imperial.
A
Constituição Política do Império de 1824, em seu art. 99, declarava que
“a Pessoa do Imperador é inviolável e Sagrada (com maiúscula). Ele não
está sujeito a responsabilidade alguma”. O Imperador, qualificado como
“Chefe Supremo da Nação e seu Primeiro Representante”, era titular do
Poder Moderador, “para que incessantemente vele sobre a manutenção da
independência, equilíbrio e harmonia dos mais Poderes Políticos” (art.
98).
Ou seja, como sustentou com razão o 1º
Visconde do Uruguai, entre nós nunca vigorou a máxima de que o rei
reina, mas não governa. Por força da Constituição de 1824, sublinhou
ele, o Imperador reina, governa e administra.
O
falso regime republicano, instalado em 1889, herdou essa tradição
imperial e fez do Presidente da República um agente político
propriamente irresponsável.
Alguns exemplos,
referentes aos dois últimos Presidentes, ilustram o que acabo de
afirmar. Episódios semelhantes, senão piores, aconteceram com todos os
seus antecessores. Na verdade, não se trata de uma questão de pessoas,
mas de mentalidade e costumes políticos.
Dispõe
a Constituição Federal que o Presidente da República deve respeitar,
sob pena de crime de responsabilidade, o livre exercício do Poder
Judiciário (art. 85, II).
Sucedeu que em abril
de 2010 o Supremo Tribunal Federal julgou a ADPF (argüição de
descumprimento de preceito fundamental) nº 153, ajuizada pelo Conselho
Federal da OAB. O que se pediu, nessa ação, foi simplesmente que a lei
de anistia, promulgada pelo último Presidente do regime militar, fosse
interpretada à luz da nova ordem constitucional e do sistema
internacional de direitos humanos.
Surpreendentemente,
o então Presidente da República, cedendo à pressão do seu Ministro da
Defesa, que alegava inquietação no seio das Forças Armadas, pediu
pessoalmente aos Ministros do tribunal para que a ação fosse julgada
improcedente, de modo a ser mantida a impunidade dos agentes militares
que assassinaram, torturaram e estupraram presos políticos, durante o
regime de exceção.
Sobreveio, porém, em
novembro daquele mesmo ano, a sentença da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, que condenou o nosso país em razão de graves violações
de direitos humanos, praticadas durante a chamada Guerrilha do
Araguaia. Nessa mesma sentença, e seguindo sua consolidada
jurisprudência, a Corte julgou que a anistia dos responsáveis por crimes
de Estado contra opositores políticos, a despeito do que fora decidido
pelo nosso Supremo Tribunal Federal, é juridicamente insustentável, por
violar o sistema internacional de direitos humanos. Pois bem, de acordo
com o estatuído no art. 68, primeira alínea, da Convenção Americana
sobre Direitos Humanos, à qual o Brasil aderiu, “os Estados-Partes na
Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em
que forem partes”.
Acontece, porém, que até
hoje, faltando poucas semanas para o término do prazo de apresentação
pelo nosso país do primeiro relatório de execução dessa sentença
condenatória, o governo da atual Presidente da República não cumpriu
nenhum dos seus pontos decisórios. Pior: o Advogado-Geral da União, que é
“submetido à direta, pessoal e imediata supervisão do Presidente da
República” (Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União, art. 3º, § 1º), ao
pronunciar-se no processo da ADPF nº 153 supra-referida, declarou sem
rodeios que o Brasil desconsidera a sentença da Corte Interamericana de
Direitos Humanos.
Não satisfeita com essa
manifestação de repúdio aos compromissos internacionais assumidos pelo
Brasil, a atual Presidente da República, que exerce com exclusividade a
direção da política de relações exteriores (Constituição Federal, art.
84, VII), decidiu descumprir abertamente a injunção determinada pela
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, de suspensão das obras da
Usina de Belo Monte.
Ou seja, a atual Chefe de
Estado, sem ter a coragem de denunciar formalmente a Convenção Americana
sobre Direitos Humanos, prefere repudiá-la na prática.
Ora,
que diz em seu art. 4º, inciso II a Constituição Federal que a
Presidente se comprometeu solenemente a “manter, defender e cumprir”, ao
tomar posse de seu cargo (art. 78)?
“A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: …
…
II – prevalência dos direitos humanos.” Pergunta-se: – Haverá neste
país alguma autoridade ou agente político, capaz de tomar a iniciativa
de responsabilizar a Presidente da República por essas flagrantes
violações da Constituição?
Na verdade, o regime de irresponsabilidade presidencial não se tem limitado apenas a isso.
Dispõe
a Constituição competir privativamente ao Presidente da República
nomear os Ministros do Supremo Tribunal Federal (art. 84, XIV). Como
sabe qualquer pessoa com elementar formação jurídica, todas as
competências públicas, especialmente as exclusivas de determinados
agentes, são poderes-deveres. O seu não-exercício prejudica gravemente o
funcionamento da máquina estatal.
Ora, no
caso, trata-se da mais alta Corte de Justiça do país, que se encontra
afogada em processos (mais de 100.000 aguardando decisão final), e cujo
funcionamento tem sido ultimamente perturbado pela moléstia de um dos
seus Ministros, obrigado a se licenciar com freqüência para tratamento
de saúde.
Pois bem, já pela segunda vez, a
atual Presidente da República deixa transcorrer meses sem providenciar a
nomeação de Ministros daquela Corte, para o preenchimento de cargos
vagos por aposentadoria.
A Lei nº 8.429, de 2
de junho de 1992, declarou constituir ato de improbidade administrativa
“retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício” (art. 11,
II). A mesma lei definiu como responsáveis por tais atos todos os
agentes públicos, acrescentando incluir-se entre eles todo aquele que
exerce, por eleição, cargo público em qualquer dos Poderes da União.
Tranqüilize-se,
porém, Sua Majestade. Em primeiro lugar, porque a ação de improbidade
administrativa, no caso, só pode ser ajuizada pelo Procurador-Geral da
República, que ela própria nomeou. Escusa dizer que não condiz com os
padrões brasileiros de gratidão e cordialidade que o Chefe do Ministério
Público intente ações judiciais contra quem o escolheu para exercer
tais funções.
Tranqüilize-se também a
Presidente da República por mais uma razão. Em 2007, o Supremo Tribunal
Federal, ao julgar um processo de reclamação movido por Ministro de
Estado, denunciado por improbidade administrativa, decidiu que a Lei nº
8.429 não se aplica aos agentes políticos sujeitos a processo de
impeachment pelo cometimento de crime de responsabilidade.
E
então? Seria possível abrir um processo por crime de responsabilidade
contra a nossa Chefe de Estado, a propósito do retardamento indevido da
nomeação de Ministros do Supremo Tribunal Federal?
A
resposta é negativa. Sem dúvida, a Constituição Federal declara
constituir crime de responsabilidade do Presidente da República atentar
contra “o livre exercício do Poder Judiciário” (art. 85, II). Mas a Lei
nº 1.079, de 1950, que define tais crimes, não inclui entre eles o
retardamento indevido na nomeação de magistrados.
Em
suma, o Brasil não faz exceção à regra geral da duplicidade normativa,
vigente em toda a América Latina, à qual me referi no início desta
exposição. A nossa Constituição se abre com a solene afirmação de que “a
República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de
Direito” (art. 1º). Mas na boa e simples realidade, como se acaba de
ver, o Presidente da República está acima da Constituição e das leis; e o
povo, do qual todo poder deveria emanar (art. 1º, parágrafo único),
permanece em estado de absoluta menoridade política, sempre contente com
o afago recebido dos poderosos.
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