Criar riqueza,
não valor
LE MONDE
buscado no diplomatique – BRASIL
De olho na sua
capacidade de recuperação absoluta, os empresários procuram se
apropriar dos conhecimentos e expandir os limites de exploração
ambiental. Assim, economistas calcularam que os “serviços da
natureza” representariam entre US$ 16 tri e US$ 54 tri. Mas, assim,
eles confundem valor com riqueza...
por Jean-Marie
Harribey
O trabalho não é
a única fonte dos valores de uso que produz, da riqueza material. Se
ele é seu pai, a terra é sua mãe, como disse William Petty.”
Karl Marx, “Le
Capital”.
In: Œuvres,
tomo I, Gallimard, Paris, 1965 [1867], p.571.
Você sabia que os
serviços prestados pelos morcegos nos Estados Unidos valem US$ 22,9
bilhões por ano? Como se chegou a uma cifra tão precisa? Avaliando
a quantidade de inseticida que esses mamíferos permitem economizar
destruindo pragas. Já os serviços prestados pelos insetos
polinizadores representam US$ 190 bilhões ao ano, sendo US$ 153
bilhões referentes apenas às abelhas. Já o valor da fotossíntese
realizada pela floresta francesa é estimado pelo preço de mercado
da tonelada de carbono.1
De onde vem essa
prática de atribuir um valor econômico à natureza com base na
utilização de seus benefícios pelo homem? A degradação do
ambiente natural e o esgotamento dos recursos chegaram a tal ponto
que os economistas liberais, em pânico diante da magnitude do
desastre e tomados por um novo zelo, tentam introduzir em seus
modelos neoclássicos o dado ambiental, que até pouco tempo
negligenciavam completamente, pois a natureza era considerada
inesgotável.
A crise do capitalismo
globalizado passa por aí. Longe de ser uma questão conjuntural, ela
se enraíza em contradições sociais e ecológicas levadas a um
ponto extremo na fase neoliberal. Por um lado, a desvalorização da
força de trabalho diante de sua produtividade provoca uma situação
de superprodução na maioria dos setores industriais. Ainda assim,
as classes proprietárias enriquecem escandalosamente, graças aos
incentivos fiscais que recebem e aos rendimentos financeiros
exorbitantes. Os resultados são o desemprego endêmico, a
precariedade, a redução da proteção social e as desigualdades
crescentes. Por outro lado, a acumulação infinita do capital
esbarra nos limites do planeta: ameaça o equilíbrio dos
ecossistemas, esgota inúmeros recursos naturais, empobrece a
biodiversidade, gera diversas poluições e desregula o clima.
Dessas duas séries de
contradições nascem a dificuldade e, no limite, a impossibilidade
de impor à força de trabalho a produção de cada vez mais valor
econômico e de negociá-la no mercado. Em outras palavras, o
capitalismo não pode ir além de certo limiar de exploração do ser
humano sem arruinar suas possibilidades de expansão, e também não
pode ir além de certo limiar de exploração da natureza sem
deteriorar ou destruir a base material da acumulação. Com a crise
financeira iniciada em 2007, desapareceu a ilusão de que as finanças
poderiam libertar-se dos limites social e material e tornar-se uma
fonte endógena e autossuficiente de valor. Esses dois limites são
insuperáveis.
Preservar a
trama da vida
No contexto de
globalização e crise do capital, duas transformações importantes
contribuíram para reabrir as discussões teóricas sobre a riqueza e
o valor. Uma delas é a generalização em escala planetária de um
modo de desenvolvimento produtivista devastador. A outra diz respeito
ao lugar cada vez mais importante do conhecimento no processo
produtivo.
Dois fenômenos, duas
questões distintas: no primeiro caso, que tipo de riqueza é
destruído? No segundo, em que a origem do valor é alterada?
A instrumentalização
da natureza tornou-se tal que, até dentro da corrente neoclássica
dominante, os economistas puseram-se a defender o meio ambiente,
considerado um “capital natural”. A “valorização do vivo”,
o “valor econômico intrínseco da natureza” e o “valor dos
serviços prestados pela natureza” são agora objetos de estudo
primordiais do Banco Mundial, do Programa das Nações Unidas para o
Meio Ambiente (Pnuma), da Organização para a Cooperação e o
Desenvolvimento Econômico (OCDE), da União Europeia etc.
Todos acreditam que é
possível somar elementos cuja medida resulta da consideração dos
custos da produção realizada pelo homem e dos elementos que não
são produzidos e, além disso, remetem ao qualitativo ou a valores
éticos não mensuráveis. Se tudo é economicamente mensurável,
tudo pode ser considerado capital. Os economistas neoclássicos
definem então a riqueza como a soma daquilo que chamam de capital
econômico, capital humano, capital social e capital natural,
recorrendo a procedimentos de cálculo análogos.
Mais grave, essa
análise não pode levar em conta o metabolismo no seio dos
ecossistemas naturais. Ao isolar cada elemento para avaliar seu
custo, preço e até utilidade, ela não consegue apreender o mais
importante: as interações que constituem a trama da vida e cuja
preservação condiciona sua reprodução e seu equilíbrio.
Essa proposição foi
lançada em 1997 com o estudo dirigido pelo especialista em meio
ambiente Robert Costanza: os serviços anuais fornecidos pela
natureza representariam entre US$ 16 trilhões e US$ 54 trilhões no
valor de 1994.2 A partir daí, os estudos se multiplicaram. Mas o
preço pelo qual é avaliada a floresta francesa, por exemplo,
constitui uma categoria própria da esfera financeira, caracterizada
pela volatilidade e a especulação; isso não existe na esfera
natural. Não há, portanto, uma unidade de medida que seja comum a
ambas as esferas. A economia e a natureza são incomensuráveis.
Assim, convém remontar
à distinção de Aristóteles, Adam Smith, David Ricardo e Karl Marx
entre valor de uso e valor de troca, para dizer que os recursos
naturais são uma riqueza, porém sem valor econômico intrínseco, e
que a natureza é indispensável para qualquer produção de valor
econômico, o qual provém unicamente do trabalho humano. Em suma, a
parte da riqueza que provém da natureza não é em si um valor
econômico, uma vez que essa categoria é social, e não natural. Se,
para aplicar uma estratégia de sustentabilidade do desenvolvimento,
atribui-se um preço a determinado bem natural, tal preço terá o
estatuto de preço político, e não econômico, fixado com base na
norma ecológica que se escolhe adotar.
O valor do estoque de
recursos naturais é inestimável em termos econômicos – ou seja,
infinito –, uma vez que tais recursos condicionam a vida da espécie
humana. Isso significa que ele não pode ser reduzido a uma categoria
econômica. Em compensação, a medida do valor econômico criado
pela exploração desses recursos é redutível a trabalho, mas isso
não tem nada a ver com um pseudovalor econômico intrínseco aos
recursos. Esse é um paradoxo incompreensível fora da economia
política e de sua crítica marxista. Sem a natureza, o homem não
pode produzir nada, nem em termos físicos nem em termos de valor
econômico. A atividade econômica insere-se necessariamente em
relações sociais e numa biosfera. Não se pode dispensar a natureza
para produzir coletivamente valores de uso e não se pode
substituí-la indefinidamente por artefatos. Mas não é a natureza
que produz valor, categoria socioantropológica por definição.
Além disso, a
revolução das tecnologias da informação e da comunicação
integra o conhecimento como um fator decisivo para a criação de
riquezas. Assim nasce e se desenvolve um capitalismo chamado
“cognitivo”, “economia do conhecimento”, “economia da
informação” ou “economia do imaterial”, assumindo o lugar do
antigo capitalismo fordista da indústria de massa do pós-guerra.3 A
evolução seria tamanha que, segundo alguns autores, levaria
gradualmente à eliminação do trabalho como fonte do valor; segundo
outros, levaria a englobar no valor todos os instantes da vida. Em
ambos os casos, seria necessário abandonar a teoria do valor de
Marx, chamada “valor-trabalho”, a qual teria conhecido seu apogeu
na época do fordismo.
A partir desse momento,
o trabalho já não produziria valor, que “se forma principalmente
na circulação”4 do capital. A única saída seria acompanhar a
transformação do capitalismo, que promete a cada trabalhador a
possibilidade de “produzir a si mesmo” e, simultaneamente, a
todos aqueles que o sistema põe de lado a possibilidade de ter uma
renda de existência, em vez de almejar um pleno emprego
definitivamente fora de alcance e, sobretudo, contrário ao objetivo
de emancipação em relação ao trabalho.
Mas essa tese do
capitalismo cognitivo levanta diversas questões. A mais importante
diz respeito à distinção entre riqueza e valor ou entre valor de
uso e valor de troca. À medida que aumenta a produtividade do
trabalho e diminui o trabalho que Marx chamou de “vivo” – e,
para ele, essa é uma “proposição tautológica”5 –, o valor
de troca das mercadorias também recua, em conformidade com a lei do
valor. Assim, cria-se um distanciamento cada vez maior entre o
trabalho e a riqueza criada, ou seja, o trabalho e os valores de uso,
sem que isso signifique um distanciamento entre o trabalho e o valor
de troca.
A nova contradição do
capitalismo é querer transformar o conhecimento em capital a ser
valorizado. Pelo menos dois obstáculos colocam-se diante desse
intento. O primeiro é o caráter dificilmente apropriável do
conhecimento em si, já que ele nasce do espírito humano e dali não
pode ser removido. Apenas o uso do conhecimento é facilmente
apropriável, e a patente logo o proíbe, ou o submete ao pagamento
de uma renda. Para além desse caso, o conhecimento é um bem
coletivo ou comum por excelência, mesmo no sentido definido pelos
economistas neoclássicos: ele satisfaz as regras da não exclusão
(não é possível, por exemplo, excluir alguém do uso da iluminação
noturna das ruas) e da não rivalidade (o uso por alguém não impede
o uso por qualquer outra pessoa).
O segundo obstáculo à
apropriação do conhecimento pelo capital é o risco que isso
representa para sua divulgação e extensão. A socialização da
produção e transmissão do conhecimento entra em contradição com
sua apropriação privada. Essa contradição está no cerne da crise
do capitalismo contemporâneo, que enfrenta dificuldades para fazer o
conhecimento funcionar como capital, isto é, para torná-lo objeto
de lucro. Ele empenha-se nisso, mas não pode fazê-lo sem recorrer à
força de trabalho que porta o conhecimento.
A partir do momento em
que se reconhece ser possível determinar um preço que escape à
obrigação de fornecer uma rentabilidade suficiente ao capital, a
fim de atender a uma norma de outra natureza, entra-se em um registro
que, embora monetário, se torna não mercantil. Nesse sentido, a
produção de serviços não mercantis, como a educação e a saúde
pública, deve ser considerada como resultante de um trabalho
produtivo das pessoas encarregadas dessas tarefas.6 A riqueza não
mercantil não é, portanto, um dreno da atividade mercantil: é um
benefício proveniente de uma decisão pública de utilizar para fins
não lucrativos forças de trabalho, equipamentos e recursos
disponíveis. Ela é socializada em dois sentidos: pela decisão de
utilizar coletivamente capacidades produtivas e pela decisão de
repartir socialmente o ônus do pagamento, por meio dos impostos.
A teoria liberal
confunde riqueza e valor, e tende a reduzir qualquer valor àquele
destinado ao capital. Por um lado, o valor da produção mercantil
continua governado pelo trabalho necessário, validado pelo mercado.
Mas, por outro, o reconhecimento do caráter produtivo do trabalho
efetuado na esfera não mercantil participa da redefinição da
riqueza e do valor, indispensável para conter o processo de
mercantilização da sociedade.
Esse trabalho responde
a necessidades sociais fora do âmbito da mercadoria; além disso,
contribui para o bem-estar, outro tipo de riqueza que ultrapassa o
valor no sentido econômico. Dessa forma, a riqueza socializada não
é menos riqueza que a privada, pelo contrário. Delimitar o espaço
da mercadoria torna possível ampliar o da gratuidade socialmente
construída, ou seja, das atividades humanas que, embora tenham um
custo, não têm preço no sentido do mercado. Isso permite preservar
os bens naturais e os laços sociais, que são inestimáveis.
Jean-Marie Harribey é
mestre e conferências de economia da Universidade
Montesquieu-Bordeaux 4 e autor, com Eric Berr) do livro Le
développement en question(s), Bordeaux, Presses universitaires,
2006.
Ilustração: Daniel Kondo
Ilustração: Daniel Kondo
1 Cf. Annabelle
Berger e Jean-Luc Peyron, “Les multiples valeurs de la forêt
française” [Os múltiplos valores da floresta francesa], Institut
Français de l’Environnement (Ifen), Les Données de
l’Environnement, Orléans, n.105, ago. 2005.
2 Robert Costanza
et al., “The value of the world’s ecosystem services and natural
capital” [O valor dos serviços prestados pelos ecossistemas do
mundo e o capital natural], Nature, v.387, n.6.630, 15 maio
1977, p.253-260.
3 Christian
Azaïs, Antonella Corsani e Patrick Dieuaide, Vers un capitalisme
cognitif. Entre mutations du travail et territoires [Rumo a um
capitalismo cognitivo. Entre mudanças do trabalho e territórios],
L’Harmattan, Paris,
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