autor: Jader Resende
Maldita hora em que subi naquele pau de arara, é nisso que dá sonhar acordada.
Foram duas semanas de dura viaje, uma grande lona cobria toda carroceria do
caminhão, arriávamos as laterais para nos proteger da chuva ou vento. Em pouco
tempo as crianças se ambientaram, sempre com a boca cheia de farinha, rapadura,
cana, laranja e tudo que podiam alcançar ou davam a elas, rastejavam por baixo
dos bancos esmiuçando tudo a procura de num sei o que? Eram as únicas no
caminhão e todos redobravam os cuidados para não caírem. Às vezes vomitavam de
tanto comer. Minhas orelhas ficavam vermelhas e a cara inchada de vergonha, não
estava acostumada a ver tanta gente junta, só na festa da padroeira, mesmo
assim por pouco tempo e devoção. À noite
parávamos na beira da estrada, todos se acomodavam como podiam nos bancos, e
assoalho. O motorista abria embaixo da carroceria uma caixa de madeira, a tampa formava uma mesa
onde cozinhava feijão com carne seca e ali mesmo armava sua rede. De madrugada,
ocupávamos os bancos de madeira atravessados na carroceria e voltávamos para a
estrada. Éramos uma desconhecida família, sempre repartíamos o pouco que tínhamos,
o mais leve mal estar logo era combatido por ervas aparecidas de algum embornal
e o motorista parava para fazer chá no seu fogareiro. Vários destinos e um só
rumo. No fim da estrada cada um seguira seu rumo sem destino. Não se falava do
passado ou futuro, um só corpo e só
aquele momento importava, como se estivéssemos
escondendo o passado de vergonha e futuro de o medo. Em todas as cidades que
parávamos, descia aquele monte de gente retraída dentro de si, visto como
leprosos, evitavam chegar perto, existia sempre alguém cochichando e debochando
dos condenando por fugir da caatinga calcinada, onde o sol nada deixa
apodrecer, onde tão logo morre vira pedra. A seca empurrou à agente para aqueles
poucos dias de pura união.
O arrependimento sempre acompanhou
Marialva. Largaram a casinha de taipa sem porta e janela naquela terra
esvaziada dentro do nada, e deste nada, sobreviviam. O fogão de lenha
improvisado no terreiro, às panelas de barro cosido, era tudo que tinham. Ao
nascer do sol caçavam animais no caminho para a cacimba, com sorte traziam na
volta cobra, lagarto ou sarigê e um pouco de água, as dez já se tornava
impossível caminhar sob o sol, à tardinha saiam pra caça ou voltavam à cacimba.
Muitas vezes não conseguia pegar água por vários dias a espera que ela voltasse
a brotar. Quase nunca se falavam ou nada tinham pra falar, sempre foi assim,
não havia presente, passado, futuro. Os dias eram iguais. O sol estuporando
tudo pela frente, sem uma nuvem no céu, somente pés de mandacarus e galhos
secos, achava que as plantas cresciam sem folhas e depois morriam sem ela
perceber.
Agora morava num apartamento com
água, luz e conforto que nunca tinha visto, mas sentia falta de acordar antes
do sol raia, meter os pés no chão, caminhar até a cacimba vendo o dia nascer,
encontrar os visinhos que nem mesmo sabia onde moravam. Lá pelo menos não veria
esse monte de coisas que não podiam ter, é tudo proibido, nem uma soneca de
tarde existe, aqui ninguém se dá conta que gente come gente e gente é comida de
gente.
Lá fora caia uma garoa fina, o
frio entrava pelas frestas dos janelões misturado ao barulho dos carros que seguiam
lentamente na avenida numa procissão interminável, buzinadas de desesperados
motoristas, sirene de ambulâncias e viaturas da policia entravam e saiam pelo
portão da casa quebrando a monotonia.
Passos apressados, choros
engasgados, a opacidade de uma dor calada e o estalar abafados de portas e
gavetas davam cadencia a tristeza impregnada no ar. Às flores dos azulejos iam
até o teto numa sequência repetitiva, cansativa e enjoada. Em uma das salas
estaria seu marido sem vida, frio como tudo ao redor. Nunca mais o ouviria
protestar contra o governo, falar mal do esfomeado supermercado ou ficar
revoltado com seu time que foi rebaixado. Funcionários passavam apressados em
direção a saída. Por um instante pensou no jantar dos filhos que ficaram na
casa da vizinha. À medida que a noite chegava os carros diminuíam, podia-se
ouvir através da parede vozes e passos medidos e pausados. As viaturas e ambulâncias
se amontoavam nos gramados daquela grande casa. É tão grande que se esqueceram
de mim, não importa, não tenho pressa. Falava com seus pensamentos. Da janela
podia ver o movimento das pessoas apressadas.
Do outro lado da sala uma mulher
envelhecida pela vida, com o corpo curvado como se quisesse penetrar em si
mesma, suas roupas demonstravam extrema pobreza. Pequena como era chamada
permanecia de olhar firme no mármore raiado a seus pés, passeava por sua vida
sem olhar pros lados. Não via Marialva, não tinha forças para conduzir o
presente, às vezes mexia o corpo e despertava dentro de um pesadelo. Não sentia
o frio da sala. O vestido de chita surrado, empalidecido e a blusa de crochê
aos poucos se desmanchava sem perceber. O pensamento parecia ter pernas, corria
aqui e ali numa velocidade alucinante, estava perdida num labirinto de
problemas. Às vezes acreditava que iria colocar os filhos na escola e quem sabe
até, comprar uma televisão pra assistir novelas.
Com o emprego do Severino a vida
iria melhorar. Pensava nele com carinho, homem esforçado, aprendeu a ler,
arranjava a pagina policial de jornal dormido pra se exibir lendo manchetes,
sabia tudo que era de coisa da policia, ficava orgulhoso lendo pra gente.
Prestou exame numa firma de segurança e foi aprovado, começou hoje cedo e já
foi promovido defunto. Deus o tenha. No sertão um marmanjo forte e destemido
sempre morre de emboscada. Depois do café, correu para vestir a farda nova e se
mostrar, andou de um lado pro outro estufando o peito e pisando duro, dava pra
ver que sentia os pés protestarem dentro do coturno novo.
—Mulher! Estou
bonito? Vou tirar um retrato no
lambe-lambe da praça e mandar pro nosso povo. Pequena, desta vez vamos tirar o
pé da merda. Primeiro vamos morar na Vila das Belezas. Botar os meninos na
escola prá não passar o que passamos. Foi pro quarto e voltou cabisbaixo dobrando
a farda com todo cuidado, colocou peça por peça numa sacola, não podia andar
fardado pela favela, seria morto e sua família expulsa.
Pequena tinha vontade de
abraçá-lo, beijá-lo como na noite de São João quando se conheceram, pularam
fogueira e trocaram juras de amor, mas não acreditava em nada. Depois que
saíram da roça, sentiu o que é pobreza, descriminação e desumanidade, tinha
tantas magoas que já não acreditava em
quase nada, estava fria e o Zé não se dava conta. Não sabia mais beijar ou
abraçar, às vezes acontecia de se abraçarem quando fazia amor, mas era só prá se
acomodarem melhor. Mesmo assim sentia-se bem com a felicidade do Zé. Era o que
procuravam quando saíram do sertão. Talvez a vida não mudasse, mas pelo menos
tirariam os filhos da rua. O ano passou
rápido desde que chegaram a São Paulo, a vida cheia de dificuldades ficou pior,
uma barulheira dos pecados, o ar abafado cheirando a coisa ruim e esse montão
de gente querendo tomar o que agente não tem, um querendo engolir o outro,
pensava com raiva. Na roça, o silencio da noite era iluminado pelas estrelas e vigiado
por São Jorge na lua. Desde que chegou nem o céu via. Lembrava do caçula que
deram a Nego D’água pra batizar, sabiam de sua vida, mas ele gostava de crianças,
vivia dizendo. —Dona Pequena, o próximo branquinho eu quero batizar e assim
foi. Teve festinha com bolo e batuque a noite toda, agora estava preso por
assalto à mão armada. De vez em quando levavam o menino pra ele ver e ele dizia
-—Dona Pequena, meu afilhado não
ta precisando de nada? Eu estou preso, mas não estou morto, ainda mando no
morro, já dei ordem pro meu pessoal levar dinheiro todo mês pra educar esse bacuri
e a senhora não aceitou. Sou padrinho, pela lei de Deus ele é meu protegido,
vocês deviam aceitar esse dinheiro. Quero ver esse moleque doutor advogado pra
não andar de trabuco na mão, até preso agente tem que dormir de olho aberto, botar
a turma no batente, pagar a organização, dar na mão pra esse e aquele, sem
besta com o advogado que leva o seu todo mês. A labuta dobra. Se dormir de olho
fechado amanhece defunto.
Logo que chegaram à favela, duas
mulheres acompanhadas pelo líder comunitário subiram o morro, iam de casa em
casa perguntando:
—Quantos filhos a senhora têm?
—Dois, respondeu tentando esconder o rasgo no
vestido que deixava aparecer suas coxas mal tratadas, mas bonitas.
Sem que decidisse nada, marcaram
pra comparecer no outro dia ao hospital, disseram que iria fazer um tal
controle de alguma coisa que não entendia, dariam alimentos pra família, uma
vez por mês durante um ano. As vizinhas falaram de uma operação pra pessoa não
ter filho. É certo que tinha uma vida miserável, mas rezava muito e confiava em
Deus, mas também não queria ter mais filhos pra virar bandidos.
Dias depois estava de volta do
hospital com remédios e caixas de comidas, não resolveriam a vida, mas ajudaria
a viver mais um pouco.
Silenciosamente uma porta abre e
um homem magro de cavanhaque e bigode fino entrou na sala e perguntou:
Seu nome moça? Virou-se e lá
estava um olhar duro e voz sem vida, o cabelo caído na testa dava-lhe um jeito
desprotegido atrás daquela avental branco em seu corpo.
—Meu? Respondeu meio sonâmbula.
—Sim, senhora.
—Maria das Dores Ferreia..
—E da senhora? Virou-se para
Marialva.
—Marialva dos Reis Silva.
—Por favor, esperem um minuto.
Saiu com passos lentos e silenciosos.
Marialva e Pequena se olharam
timidamente. Marialva atravessa a sala e senta-se ao lado de pequena e
pergunta.
—Era seu parente?
—Sim meu marido.
—Também perdi o meu hoje de
manha. Suspirou vagando o olhar pela sala.
—Tinha só vinte e cinco anos.
Marialva falava como se não houvesse ninguém na sala.
— Quando chegamos à cidade foi
trabalhar de entregador, terminou o primário e o ginásio em menos de um ano num
tal de supletivo.
Passou por diversos empregos
sempre ganhando pouco, junto com o pouco de Marialva deram uma pequena entrada
e vinte anos de prestações num pequeno apartamento. Desempregado a mais de um
ano e processo de despejo por quase um ano de atraso nas prestações.
—Desde ontem notei algo estranho.
Pela manha estava eufórico, olhar tenso e penetrante, não resmungou contra
políticos e do seu desemprego, como sempre fazia na hora do café. Antes de sair
foi até o quarto dos meninos, levou mais tempo do que de costume olhando os
garotos dormir.
Da porta do quarto pensava.
Prometo que arranjo um bom dinheiro, largo está porcaria de apartamento
financiado e a gente volta pra nossa terrinha compramos uma fazendinha e vou
plantar pra comer. Lá ninguém vai pisar na gente como aqui.
Vestiu sua melhor roupa, saiu
dizendo que ia apresentar-se para um novo emprego.
A rua ainda molhada pela garoa da
madrugada deixava o ar úmido e fresco, pessoas andando apressadas a caminho do
trabalho, a fumaça dos carros começavam a deixar um rastro pesado e criminoso
no ar. Assim eram todos os dias, mas para ele
estava diferente, não conseguia medir as conseqüências ou ver o futuro,
era como se caminhasse pra dentro do nada, sentia-se vazio mas determinado.
Pegou o ônibus e foi para o outro
lado da cidade, não podia ser reconhecido. Com um revolver na cintura sentia-se
superior, gostava desta sensação de poder que a arma lhe dava. Da janela do
ônibus viu o banco passar, seguiu por mais três paradas e desceu, voltou
caminhando lentamente. Parou em um bar pediu um rabo de galo e ficou olhando o
banco do outro lado da rua, bebeu a cachaça e ficou imaginando. Vou agir
rápido, talvez não dê tempo de levar muito dinheiro, pensou.
Já ia saindo quando o garçom
grita:
Hei moço, o senhor esqueceu-se de
pagar. Falou meio sem jeito, ao ver o olhar duro e estranho daquele homem com
as mãos no bolso do paletó.
Deu sua única nota e não esperou
o troco.
—Só dá maluco, primeiro sai sem
pagar, depois deixa o troço. Retrucou o garçom.
Afastou-se do bar e voltou pelo
outro lado em direção ao Banco, andava apressado, subiu de uma só vez os três
degraus. Abriu a porta de vidro e parou. Suas pernas não mais o obedeciam.
Tremia todo o corpo, a mão suada no bolso do paletó apertava o revolver, quando
surgiu em sua frente uma moca perguntando.
—Posso ajudar?
Assustado e possuído pelo
desespero gritou:
—Isso é um Assalto, todo mundo
quietinho, só quero o dinheiro do banco. Zeferino não conseguia pensar. Rapidamente
sacou da arma.
Frente a frente, dois tiros e um
só estampido. Cambalearam. Novos tiros foram dados, caídos, ainda trocaram tiros
a esmo.
Zeferino pensou na mulher, nas
crianças, viveu toda vida naquele instante, ainda com a arma apontada pro assaltante
praguejou:
—Desgraçado, me acertou logo no
primeiro dia.
Zé, ainda lúcido arrasta-se pelo
chão na tentativa de continuar, tentou passar sobre o corpo de Zeferino atravessado
no caminho e não conseguiu. Já sentindo que a morte o espreitava amaldiçoa.
—Guarda de merda, até morto o
sacana me atrapalha.
A farda nova de Zeferino manchada
de sangue seu e do Zé não mais brilhava como de manha.
Logo uma multidão se junta ao
redor dos corpos, nada falavam, se limitavam a levar sua parcela de culpa para
casa diante da brutalidade e indiferença da sociedade.
A porta se abriu, o homem de
bigode fino chamou as duas senhoras:
—Por favor, queiram me
acompanhar. Passaram por diversas portas e num grande salão encontraram duas
macas de ferro, ali estavam os Zes de terras distante que morrem cedo.
Marialva e Pequena olharam os
corpos sem nenhuma expressão.
—Por favor, senhoras, queiram
confirmar a morte dos seus maridos e assinar esta declaração e esperar a
liberação dos corpos.
Abraçaram-se e um choro abafado
sai de dentro de suas almas.
Com a morte do Zé, o apartamento
passa a pertencer à viúva sem nenhuma divida ou prestação, a firma onde Zeferino
começou a trabalhar pagou um seguro para pequena. Juntas resolveram vender o
apartamento e compraram uma casa na vila das Belezas com três quartos, um para
os meninos, outro para as meninas e um para elas. Trabalhavam como diaristas e
lavavam roupas para fora e no frio da noite esquentavam-se debaixo de um
cobertor, trocando segredos e se amando ternamente.
—Depois de amanha faz um ano
lembra-se? A voz de Pequena ressoa com a força da paixão no silencio da noite,
ouvi-se o barulho da chuva batendo nas telhas de barro cozido. Sonharam com
aquela casa, um pequeno jardim de margaridas e bem-me-quer, um quintal nos
fundos onde pudesse estender roupa, as
crianças brincarem e sentir a terra em contato com os pés.
—Não fique encafifando coisas.
Amanha encomendamos uma missa e festejamos nosso primeiro aniversário na sexta.
—Nosso primeiro encontro foi no
mesmo dia, ainda fico aturdida só de pensar. Recordou os ladrilhos, o ar pesado
e úmido, os corpos sobre as duas mesas cobertos de sangue. Pareciam indefesos,
indiferentes, pela primeira vez na vida sentia-me sem saída.
—Eu sei, devemos prestar
homenagem, e comemorar com alegria nosso encontro. Falou com tristeza.
—O que importa é que estamos bem.
Assistiremos a missa e na sexta ficaremos até tarde comemorando nosso primeiro
encontro.
—Será que não faz mal comemorar?
Eram nossos maridos, trabalhadores, gostavam das crianças, só não deram sorte.
—Não fique aperreada, eles estão
mortos. Foi à vontade de Deus, estamos educando nossos filhos, temos esta casa,
trabalhamos duro, é certo, mas estamos felizes. Marialva procurava não se levar
pelas lembranças tristes.
—Morreram na mesma hora e lugar. Deu até no jornal: “Assaltante e segurança
morrem duelando”.
—Foi esse destino que nos deu
vida nova. Isto nós devemos a eles. Não se esqueça de que no sertão eles também
estariam mortos e nós, viúvas, nem
enterro teriam. As viúvas da seca que passam á vida esperando que seus homens
voltem, criam os filhos sozinha e Deus, sem chance de encontrar outro amor,
entra dia e sai dia e nada, nunca mais dão noticias. E elas só labutanda e se
masturbando abafado embaixo do cobertor pra ninguém ouvir.
—Conheci muitas, minha mãe era
uma.
—Eu sei, a minha também. A labuta
era grande, elas tinham garra, participavam de tudo, nas festas da padroeira
eram pura alegria, quando alguém morria, ficavam tristes, até choravam. Na caatinga enterro de gente um pouco mais
graúda é coisa festiva, lá estavam elas, tinha velório a noite toda com viola,
café, cuscuz e inhame cosido, muita ladainhas e excelência com cantadores e sabedores
de versos cantavam suas rimas encomendando a alma do defunto que muitos nem
conhecia, estas mulheres sofridas e calejadas sempre se lembravam dos maridos e
resmungavam pelos cantos. —Os desavergonhados pelo menos devem estar vivos em
algum lugar desse mundo de Deus. Os homens
que ficam morrem antes dos trinta, mas ninguém mata ninguém sem ser inimigo.
Aqui, colocam gente pra matar gente sem mesmo se conhecerem.
—É triste, eles nem trinta anos
tinham. O enterro nem parecia ser de gente, só eu, você e as crianças. Não choramos um pingo de lagrimas, ninguém para
encomendar a alma, não deu tempo de fazer uma reza, nem alça tinha o caixão, se
agente não fosse ao enterro nenhuma diferença faria, seriam jogados, como
foram, naquele palmo de terra numerado, ninguém ao seu redor tinha nome, só numero. Diziam que ali enterravam os indigentes,
fazer o que?Além de retirante, pobre era também indigente e eu nem sabia que
agente era tanto assim.
—Eu lembro, foi preciso Nego
D’água de dentro de a prisão dar ordens ao advogado pra fazer alguma coisa, só
dessa forma conseguimos colocar nomes e flores de plástico.
—Chega pra cá e deixa a tristeza
prá lá, minha pequena. Como uma gata manhosa procura o calor do corpo de
Marialva e beija seu rosto carinhosamente.
—Vamos falar de outras coisas,
beber um pouco de conhaque e olhar em frente.
Amanha é feriado e podemos dormir até tarde.
—A cachola esta fervilhando de
coisas, parece ter sido ontem. A vida tem dessas coisas, se eles não morressem
nunca nos conheceríamos.
Marialva levanta-se vai à cozinha
e volta com uma garrafa e diz.
—Quando senti nossos caminhos
cruzarem, um clarão cegou-me por um instante, pensei que fosse raiva estivesse
tentando culpá-la, virei-me de costa e continuei com sua imagem em meu pensamento,
sentia um apertume no coração que você nem imagina. Sentia-me só, desamparada numa
cidade grande, demorou um pouco pra me ver em você, éramos iguais naquele
momento. Mesmo sem saber, sua presença naquele banco me provocava. Seu vestido
um pouco rasgado mostrava suas coxas, um frio corria meu corpo quando olhava
suas pernas.
—Aquilo era hora de secar minhas
coxas. Oxente! Sorriu fingindo estar bronqueada. Só pensava em voltar pro
Sertão, criar meus filhos queria ver o rio Doce outra vez, ainda me lembro de
suas águas. Nunca tinha visto tanta água
na vida, haja Deus de tamanha beleza. O rio descia mancinho na mesma direção do
pau de arara, dava a impressão que nos seguia ou indicava o caminho pra terra
prometida, seguia dando voltas sem sentido como se quisesse banhar com suas
águas toda a sua volta sem perder o rumo do mar. Algumas vezes se distanciava da estrada me deixava
aflita. Qualquer morrinho o deixava lá embaixo fino e frágil de dar dó. Quando
nos desviávamos ou contornávamos morros em direção oposta, ficava ansiosa para
vê-lo, surgia calmo, sereno seguindo indiferente. Na entrada das cidades o
perdia de vista, ficava ansiosa em seguir viajem para vê-lo. Aproveitávamos
para ir ao banheiro, encher vasilhames de água e ficar dentro do caminhão com
medo dos olhares agressivos do povo. Não
tirava o rio do pensamento, numa única vez quando saímos de uma cidade sem
menos esperar atravessamos uma ponte, passamos sobre ele e esta foi a ultima
vez que o vi. Gostaria de tê-lo seguido até o mar.
—Também não via outro jeito, ia
voltar pra minha terra. Estamos bem aqui mesmo, não é? Marialva deu uma
entonação meiga e carinhosa a pergunta, passando a mão pelos seus cabelos. Um
dia, quando as crianças forem donas dos seus narizes vamos conhecer o mar. Como
você ganhou este apelido que eu gosto tanto.
—Eu sempre fui miúda, ele foi meu
primeiro namorado e só me chamava de Pequena e logo, logo, todo mundo passou a
me chamar assim. Eu gosto de te chamar de alva.
—Você me chama com tanto jeito. Conversavam
na cama sempre que podiam dormir até tarde. Bebiam lentamente, o calor do
conhaque aos poucos tomava conta do ambiente. Seus corpos vão se tocando suavemente.
—Alva, eu nunca pensei em tocar
no corpo de outra mulher.
—Nem eu. Não sei como aconteceu.
Acho que estávamos desamparadas e o melhor que fizemos foi nos unir para
sobreviver nesta cidade.
—Acho que o destino nos deu esta
oportunidade e a ela nos agarramos. ——Não acredito que estivéssemos num
desamparo desesperador, São Paulo é fria, chega a ser repulsiva, mas tenho certeza
que encontraríamos uma forma de sobrevivência. Alem do mais eu gosto daqui,
gosto de passear no Ibirapuera, na praça da republica e aqui é bem melhor do lugar
onde nasci.
—Quer mais conhaque? Vou fritar
um pouco de tira-gosto pra nós, Sem esperar resposta levantou-se, pouco depois
regressou com um prato de torresmo e se recostou à cabeceira da cama.
—Adorei encontrar a minha
Pequena.
—Naquela primeira noite que
fizemos amor, estava assustada, não sabia o que fazer ou como fazer, fechei os
olhos e procurei não pensar em nada e quanto menos eu pensava, mais eu sentia
sua pele quente ir aos poucos tomando conta do meu corpo, naquele momento não
conseguia controlar meus movimentos, estava fixada em seu calor.Seus movimentos
tinham vontade própria estavam me levaram à loucura, suas mãos iam dos meus
lábios a minha chota, seus carinhos ao me tocar sempre me deixam tomada de
desejos
Beijou Pequena, foi roçando os lábios no seu
rosto, mordiscado sua carne lisa, enfiou a língua em seu ouvido e sussurrou: Eu
ti amo.
Pequena deu um grito surdo e
suave. Gemeu prazerosamente e disse: Estou arrepiada e molhadinha. Seus olhares
se cruzam, os lábios se unem e seus corpos se enroscam ao carinho do amor.
O dia amanhecia preguiçosamente,
a luz penetrava no quarto e suavemente sombras e linhas desenhavam formas
perdidas nos sonho daquela noite de amor.
—Marialva. Às vezes sinto falta
do meu homem.
—Eu também, mas logo passa. Tem
coisas que ainda mexem comigo. Ele era meio bruto, não tinha esse carinho
demorado que atravessa a noite, mas ainda lembro-me dos seus incompreensíveis
sons na hora do gozo, lembro-me de todos eles, quando me penetrava sua carne
dura me empurrando por dentro, aquele entra e sai avexado provocava bolhas de
ar, seu corpo pesado batendo forte no meu, cada detalhe tenha seu som, conhecia
todos eles, antes, durante e depois, os pés da cama arranhando o cimento, as
molas do colchão cada uma com seu jeito de protestar, o ritmo de sua respiração
muitas vezes se misturavam ao meu e fazíamos um só barulho. —Você não se zanga
quando falo assim, não é?
—Não me zango, gosto de ouvir
você falar. Nunca prestei atenção em som algum, hora nenhuma. Fizeram silencio,
Voltou a falar num tom triste e pausado.
—Às vezes ficava na cozinha
perdida, contando os ladrilhos das paredes sem interesse em saber o total, costumava
estar presente sentado numa cadeira perdido em seus pensamentos sem me ver,
ficava horas assim, sem nada acontecer. Acho que nos acostumamos com nossas
ausências. Eu pelo menos tentava estar presente e os ladrilhos me seguravam
quando tentava escapulir, aquele imenso branco, o montão de quadradinho que
sempre se misturavam, me obrigando a começar a contar outra vez, uma conta sem
fim. Sempre misturava com a noite em que o conheci, ele chegou de mancinho, nos
olhamos acanhados, bastou o olhar para saber que estávamos namorando, eu nem
dormi naquela noite. Novamente voltava a contar os azulejos. As crianças inquietas
e insatisfeitas brincavam pela casa percebendo mas sem entender, quando saia
pra comprar na feira era como se não existisse, me sentia transparente. Com você
eu me sinto viva a todo instante, no trabalho sinto você ao meu lado. É amor
que sinto por você. Sinto-me gente de carne osso e desejos.
—Também te amo muito, e penso em
você o tempo todo. Beijam-se suavemente.
— Já vi mulheres de mãos dadas
até mesmo se beijando, dava pra notar quem tinha pose de homem e quem tinha
pose de mulher, nós não somos assim. Somos diferentes em tudo. Será que não
temos coragem de assumir diante de todos?
—Se for preciso eu pego na sua
mão em qualquer lugar. Não devemos nos
preocupar. Vamos viver do nosso jeito.
Tudo tem sua hora, deve acontecer naturalmente, acho que no momento
temos um cantinho nosso, estamos criando nossos filhos e eles já sentiram o nosso
amor, e nem foi preciso dizer nada, simplesmente aconteceu.
—Devemos ter cuidado, não sabemos
o que podem pensar. Tenho medo que alguma coisa possa mudar nossas vidas. As crianças
estão pequenas e percebem com a pureza da alma. Aos poucos, inevitavelmente vão
sento contaminadas pelo preconceito, não devemos deixar que façam de nós o que
fizeram com nossos finados maridos.
—Não se preocupe, resolveremos um
problema de cada vez. Seria bom se
pudéssemos nos casar de papel passado, já pensou, agente no altar sermos unidas
pelas palavras de Deus.
—Mas podemos ter a palavra de
Deus em qualquer religião ou mesmo na frente de um Juiz de Direito e isso não é
possível, portanto vamos deixar o barco seguir as correntezas do Rio Doce rumo
ao mar.
—Parece até sina, tudo que é de
gente segue o rio em direção ao mar, e vem parar em São Paulo, começo a achar
que eles dizem isso pra deixar aquela penca de filhos e arranjar outro amor
nesta terra que mais parece um arraial nordestino.
—Pode até ser. Agora, vamos relaxar.
—Quando vou fazer limpeza, ouço
dizerem que isso é uma pouca vergonha, que estão assim porque não arrumam
homem.
—Você já teve seu homem, tem seus
filhos e eu também. Falam assim porque não conhecem nossas vidas. O destino nos
uniu, não tivemos vida fácil nem agora tão pouco, nos descobrimos num momento
muito especial, o que nos uniu mais ainda. A paixão que sentimos não vale nada?
—Puxa você fala bonito que só
vendo.
— Não se aperrei. Coloca sua
cabeça no meu ombro quero te fazer um agradinho. Uma suave harmonia flutua em
meio a cheiro de conhaque e seus corpos sedentos de prazer, a sensualidade
surgia vigorosa em seus corpos com a força de animais adormecidos, seus olhos
cintilavam puro desejos, faiscando chamas coloridas da paixão.
Suas mãos lentamente acariciam seus corpos,
explorando íntimos segredos do amor. Trançam suas pernas, coxas coladas nas
coxas detonam o ritmo do amor, ardentemente seus lábios se unem num beijo
lambuzado. De seus corpos raios coloridos ofuscam a claridade da manhã.
Como se o mundo pudesse esperar,
e fossem donas do tempo, suavemente se acariciam em seus mais íntimos e
profundos prazeres, explorando cada parte do corpo como se o meio fosse um interminável
fim. As belas damas do baralho fundem
suas fendas sobre seus rostos, seus olhos clareavam como focos de luz prateada
suas xotas molhadas. Seus corpos unem-se em um só, suas línguas percorrem em
câmera lenta desde a racha de suas bundas ao coração de suas xotas, sugando
fluidos leitosos, beirando a explosão de chamas multicores da volúpia ardente,
desdobrando-se em gozos redobrado.
Fecharam os olhos e sentiram no
rosto suas mornas e úmidas contrações deixando no ar o mistério do aroma saído
de suas flores de carne desabrochadas no calor da manha. Dormiram até tarde exprimindo
nos gestos e formas inconscientes a
pura forma do amor.
Autor: Jader Resende
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