buscado no Gilson Sampaio
Via RedeBrasil Atual
O
guerreiro luta por uma causa. O torturador se distingue pela ausência
de riscos. O torturado sempre está desarmado. O torturador brinca com o
medo do outro, porque não consegue enfrentar o seu
O
que é a tortura? Como um ser humano pode conceber usar o corpo de outro
ser humano, que possui a mesma pele, a mesma boca, os mesmos dentes, os
mesmos ossos, os mesmos cabelos, os mesmos bilhões de neurônios, para
punir-lhe com dor, desespero e medo? A convenção das Nações Unidas, de
1984, contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanas
ou degradantes, define a tortura como “qualquer ato pelo qual dores ou
sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a
uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou
confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha
cometido, ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta
pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em
discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são
infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de
funções públicas, ou por sua instigação”.
São
muitos os que buscam atribuir a tortura à natureza humana, como fazem
com a guerra e outros crimes. Mas existe um enorme abismo entre quem
luta e o torturador. O guerreiro luta por uma causa. Está sujeito a
morrer por uma fonte de água, a carcaça de uma presa recém-abatida, por
sua mulher e seus filhos. O combatente atávico que existe em cada um de
nós sabe dos riscos que corre, em defesa de suas circunstâncias, de suas
ideias, de sua condição. Pode morrer ou ser ferido em batalha.
O
torturador se distingue pela ausência de riscos, de coragem. O
torturado sempre está desarmado, ou amarrado e indefeso, frente a ele. O
torturador brinca com o medo do outro, porque, dentro de si mesmo, não
consegue enfrentar e encarar o próprio medo. Ele é covarde por natureza,
é movido pelo mal e o sadismo, e por sua fraca e abjeta personalidade.
Ele não precisa de uma ideia, de uma razão.
“A
finalidade do terror é o terror. O objetivo da opressão, a opressão. A
finalidade da tortura é a tortura. O objetivo da morte é a morte. A
finalidade do poder é o poder. Você está começando a me entender?”
explica, a um prisioneiro, um personagem de George Orwell, no livro
1984. Os torturadores são, antes de tudo, psicopatas. Dependendo do
momento da história, irão torturar em nome de Deus, de uma bandeira, um
uniforme, uma ideologia, uma religião. Use a roupa que usar, ocupe seja
que cargo, o torturador não passa de criminoso vulgar.
Uma
sociedade que abomina assassinos, ladrões, corruptos, estupradores, não
pode aceitar conviver, em seu seio, com torturadores. Até mesmo porque o
torturador quase sempre é, também, assassino, ladrão, corrupto e
estuprador. A diferença entre a tortura e a lei é a mesma que existe
entre a barbárie e o progresso. Aceitar a tortura como inerente à
condição humana é o mesmo que negar que um povo, um Estado, uma nação, a
humanidade possam evoluir.
Dostoiévski dizia
que a melhor forma de medir o grau de civilização de um país era
conhecer, por dentro, suas prisões. Nesse aspecto, a situação no Brasil é
vergonhosa. Não apenas com relação às condições e superlotação de
nossas cadeias, mas pela forma como nossa sociedade convive com a
tortura e o torturador.
O brasileiro médio é
falso, hipócrita e leniente com relação à tortura. As mesmas pessoas que
se revoltam com o vídeo feito por uma vizinha, mostrando uma mulher
espancando um cachorrinho na área de serviço, se regozijam quando veem
um menino ou menina de 7, 8 anos – morador de rua e muitas vezes, já
dominado pelo crack – ser agarrado pela orelha, e tomar uma surra de
policiais ou seguranças. Param, a caminho do trabalho, para deleitar-se.
Corações e mentes
O
agente do Estado, no Brasil, formado em uma longa tradição autoritária,
que vem desde os capitães do mato, e dos diferentes hiatos ditatoriais
de nossa história, acha que tem direito de vida ou morte sobre o
suspeito. Isso está fartamente demonstrado não apenas nos milhares de
casos de mortes por “auto de resistência”, mas também pelo que ocorre
com os presos, muitos sem sequer terem passado por julgamento, no
interior de nossas prisões. O mesmo vale para o outro lado da moeda.
Da
mesma forma que um policial corrupto espanca, humilha e ameaça matar a
mãe ou a filha de um suspeito, para saber – em interesse próprio – onde
está escondido o produto de um assalto ou a droga recém-chegada, a
violência extrema tem sido praticada, também, pelas novas gerações de
marginais, que torturam e matam famílias, crianças e idosos, para tentar
saber onde está um punhado de reais. Como controlar essa corrente de
estupidez?
Um bom começo, do ponto de vista do
Judiciário, seria perder o pudor de usar a lei e condenar alguém pelo
crime de tortura. Raramente alguém que comete latrocínio com extrema
violência tem a sua pena acrescida por tortura. É como se condenar
alguém por esse crime fosse proibido, ou ela não existisse em nosso
dicionário.
Nos portais e redes sociais ela
nunca é citada por quem a defende. Ninguém, referindo-se a um suspeito,
escreve ou afirma “tem de torturar esse cara”. Para que fique tudo mais
íntimo e corriqueiro, banalizado, usam-se expressões como “tá precisando
é de couro”, “se fosse meu filho, dava uma de criar bicho”, “comida de
preso é paulada”, “pendura que ele canta”, “tinha que cortar na
borracha” e outras do gênero.
A presidenta Dilma
Roussef lançou, no último 12 de dezembro, o Sistema Nacional de
Enfrentamento à Tortura, que prevê a instalação de um mecanismo autônomo
que, por meio de peritos, terá autorização prévia para entrar em
penitenciárias, instalações militares, delegacias, instituições de longa
permanência de idosos, instituições de tratamento de doenças psíquicas
ou similares, para constatar a existência de possíveis violações de
direitos humanos nesses locais. Trata-se de importante iniciativa,
considerando-se que o Brasil é signatário da Convenção Internacional
Contra a Tortura desde 1989, e que, em 500 anos de história, é a
primeira vez que a Nação está encarando, de forma direta, essa
abominável questão.
Mas a verdadeira batalha não
se dará apenas com a fiscalização do que está ocorrendo nas prisões,
que poderia avançar com a instalação de delegacias de direitos humanos
em todo o país. Ela será travada nos corações e mentes da população
brasileira.
Não podemos nos considerar
civilizados enquanto milhares de brasileiros defenderem a execução
ilegal e a tortura como método de punição e investigação. Não podemos
nos considerar civilizados enquanto juízes estabelecerem jurisprudência
atribuindo à vítima de tortura o ônus de provar que foi torturada. Esse
paradigma, estabelecido na ideologia escravocrata e repressora de parte
considerável de nossa sociedade, só poderá ser alterado a partir do
ensino, em todas as escolas, desde o primeiro grau, dos direitos e
deveres consubstanciados na Constituição brasileira, atendo-se
estritamente ao seu conteúdo, para não dar à direita fascista motivo
para combater a iniciativa.
Só quando ensinarmos
nossos filhos e netos que o mero ato de um policial espancar um
manifestante, em uma situação de protesto – ou manifestantes espancarem
um policial desarmado – é ilegal; que extrair dor de outro homem,
mulher, criança, indefeso, humilhando-os, transformando-os, pelo medo,
em animais irracionais, que gritam, sangram e choram, segundo a vontade
de seu torturador, é crime abjeto e condenável, poderemos começar a
mudar, de fato, a mentalidade a propósito da tortura, sua imagem e
paradigmas, em nosso país.
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