Buscado no Outro olhar
Por Idelber Avelar
Por Redação
I- A Palestina Árabe
A derrota que os árabes impuseram ao domínio
bizantino na Palestina, confirmado entre os anos 633 e 638 da era
cristã, foi bem recebida pela população local, tanto por cristãos
como por judeus e samaritanos, que ainda eram grupos numericamente
importantes na região. Estes últimos grupos tinham todos os motivos
para preferir a organização árabe, vítimas que já eram da
intensa perseguição cristã, que só pioraria com os séculos
(aliás, no início do período árabe na Palestina—que se
estenderia pelos próximos 1.300 anos–, uma pequena população
judaica voltaria a se estabelecer em paz em Jerusalém, depois de 500
anos de ausência, que datavam da sangrenta expulsão que os romanos
lhe haviam imposto no segundo século da era cristã). O período
árabe também foi bem recebido pelos cristãos da região, que “eram
arameus [e] não ficaram incomodados pela organização árabe, pois
a etnia era semelhante, de origem semítica”, não tendo eles
“motivos para gostar da administração bizantina, de origem
romana, não semítica”1.
Na Palestina árabe, apesar de um imposto específico para judeus e
cristãos, eles gozavam de proteção como “Povos do Livro”, e a
atmosfera não tinha muito em comum com o regime de terrorífica
perseguição que se instalaria nas regiões controladas pelo
Cristianismo. A Sura 2 de Maomé explicitamente rejeita a conversão
e o proselitismo violento: “Não obrigueis ninguém em assuntos de
religião”. A violência sectária só voltaria a se disseminar na
Terra Santa com as empresas cristãs de conquista conhecidas como
Cruzadas, a primeira das quais foi proclamada pelo Papa Urbano II em
1095 e resultou no estabelecimento do “Reino de Jerusalém”, em
1099, uma fortaleza de reduzidas relações com seu entorno árabe,
ironicamente semelhante, neste aspecto, ao enjaulamento que as
construções israelenses ilegais hoje impõem a Jerusalém.
As cruzadas à Palestina enfrentariam os
muçulmanos locais aos invasores cristãos, com a pequena população
judaica da região frequentemente lutando ao lado daqueles contra
estes, como em 1099, em Jerusalém, e em 1100, em Haifa. No século
XII, na época da Segunda Cruzada, os muçulmanos se reunificam
politicamente sob o comando do General Saladino, curdo nascido em
Cairo. Saladino recupera Damasco (1174), Acre, Jafa, Beirute, e a
própria Jerusalém, em 1187. Na Terceira Cruzada, Ricardo Coração
de Leão derrotaria Saladino, forçando-o a negociar e celebrar o
tratado de paz que “abriu caminho a um período de calmaria militar
e tolerância religiosa na Palestina”2,
permitindo aos cristãos visitar os lugares sagrados. A Quarta
Cruzada (1199) planejava tomar o Egito por mar, mas fez um desvio
para a região da atual Turquia, instalando o Império Latino de
Constantinopla. A Palestina só voltaria a ser afetada pela Cruzada
de Federico II que, conhecedor da língua árabe, foi capaz de “obter
do sultão a entrega pacífica, embora condicionada, de várias
terras e das cidades de Belém, Nazaré e Jerusalém, onde o
imperador entrou e foi coroado em 1229”3.
Já em 1244, Jerusalém voltaria ao poder dos árabes, e o último
reduto cristão na Palestina, São João de Acre, cairia em 1291. O
controle de toda a área entre o Jordão e o Mar Mediterrâneo—os
atuais territórios de Israel e da Palestina Ocupada—permaneceria
em mãos árabes até a invasão turco-otomana, em 1517. Mesmo
durante o período marcado pela sua incorporação ao Império
Turco-Otomano (de 1517 até 1917, com uma interrupção egípcia
durante a década de 1830), a Palestina manteria sua enorme maioria
árabe, organizada segundo laços sociais bem arraigados na região,
que o império turco não alteraria significativamente.
As sucessivas demonstrações de desmemória na
política ocidental para o Oriente Médio contrastam com o forte
arraigo que certos eventos históricos possuem na reminiscência das
massas árabes. Em 1993, acusado de estar celebrando com os
israelenses, em Oslo, um tratado que não concedia nada aos
palestinos e o instalava na posição de cão de guarda de Israel, o
líder Yasser Arafat insistia, um pouco pateticamente (dadas as
condições em que negociava), que ele não celebraria qualquer paz,
mas “a paz de Saladino”. O leitor dos EUA não tinha a menor
noção do que se referenciava ali, mas o povo árabe não deixava de
notar a ironia involuntária da impotente insistência de Arafat na
menção a Saladino. Antes de entrar no período histórico que
imediatamente influencia o curso dos acontecimentos que nos ocupam,
portanto, é boa ideia lembrar alguns fatos que se desprendem desse
esquemático sumário de alguns séculos de história palestina.
Inicia-se no século VII uma intensa arabização da região, que já
era visível em séculos anteriores a Maomé, mas que solidifica suas
raízes com a chegada dos árabes a Jerusalém, em 638, e a
construção da mesquita Al-Aqsa. Durante os próximos 1.300 anos os
árabes serão a grande maioria em toda a região da Palestina. No
período das Cruzadas, estima-se que havia em torno de 1.000 famílias
judias na região.4
Em 1914, já depois das primeiras ondas migratórias estimuladas pelo
sionismo, a Palestina (ainda, naquele momento, sob domínio otomano)
tinha uma população de 657.000 árabes muçulmanos, 81.000 árabes
cristãos e 59.000 judeus.5
De acordo com o censo da Palestina de 1922, feito pelos britânicos,
a população era 78% muçulmana, 9,6% cristã (árabe, claro) e 11%
judaica. No entanto, no jornalismo “ponderado” sobre a região,
mesmo depois de 60 anos de limpeza étnica e 43 anos de ocupação
ilegal, você verá desinformados funcionários da grande mídia
dissertando, “mui ponderadamente”, sobre os “direitos” dos
dois povos sobre a Palestina.
O domínio otomano sobre a Palestina dura de 1517
a 1917, com uma interrupção de 10 anos de administração egípcia
na década de 1830. A submissão ao império turco não altera de
forma significativa o regime de posse baseado na renda agrícola das
terras, já visível no período do sultanato, anterior aos otomanos.
Esse sistema relativamente descentralizado de vilas e aldeias, com
arrecadação por senhores de terras e trabalho de cultivo por
lavradores, arraiga-se na região e ajuda a explicar o terror dos
palestinos com—e sua impotência para se defender contra—a
violenta campanha de confisco de terras e separação de raças que
se inicia com o armamento dos sionistas, nas décadas que antecedem a
fundação do estado de Israel. Nas primeiras décadas do século XX,
o sionismo armado traria à região um modelo eminentemente europeu
de organização territorial e compreensão do espaço, caracterizado
pela acumulação, posse e construção de barrreiras fronteiriças.
Munidos desse olhar que historicamente relativiza os fatos, nos
preparamos para explicar alguns “mistérios” que cercam a
história recente: como foi possível que metade de uma população
árabe palestina que já se media em bem mais de um milhão tenha
sido expulsa tão rapidamente por algumas dezenas de milhares de
colonos sionistas? Como foi possível que o nascente estado judeu
tenha adquirido uma supremacia tão incontestável no conflito com
seus vizinhos árabes e com os palestinos? Para repetir a pergunta
que abre um artigo já clássico de Walid Khalidi: Por
que os palestinos foram embora?6Observando
a realidade relativamente fluida de comunicação entre as aldeias
árabes, a intensa organização acumuladora de terras e de armas
entre os colonos sionistas e o papel das grandes
potências–particularmente da Grã-Bretanha—no processo,
começamos a vislumbrar a explicação, que só se completará,
claro, com um estudo do que aconteceu em 1948. A compreensão dessa
diferença nos regimes de posse da terra, no entanto, é parte da
explicação da vitória sionista. Essa explicação, aliás, não
tem a menor necessidade de recorrer a estereótipos antissemitas do
judeu mais esperto ou conspirador, nem a estereótipos antissemitas
do árabe mais atrasado ou indolente, nem a falsificações da
mitologia oficial israelense, que repetiram durante décadas que os
palestinos saíram voluntariamente ou obedecendo a misteriosas ordens
radiofônicas dos próprios árabes, mentiras já cabalmente
corrigidas pela própria historiografia israelense.
II – Da Declaração de Balfour (1917) à
Palestina do Mandato Britânico (1922-48)
Quando se estuda o processo histórico pelo qual
se chegou à atual, desastrada situação na Terra Santa, salta aos
olhos a responsabilidade das potências ocidentais que, ao longo do
século XX (para nos atermos à história mais recente), jogaram um
jogo duplo, perigoso e marcado pela reversão do que se havia dito
antes. Pensando em seu próprio interesse e em completa
desconsideração pelo destino de milhões de civis inocentes, a
Grã-Bretanha literalmente toca fogo na região, ao fazer promessas
contraditórias aos povos árabes e ao movimento sionista. O reino de
Sua Majestade não possui sequer a desculpa de que se tratava de uma
causa nobre. Era 1916 e 1917, e tratava-se da consolidação de sua
coalizão na Primeira Guerra Mundial. Ao contrário da Segunda
Guerra, defensável como reação legítima à agressão
nazi-fascista, a Primeira é um típico conflito
napoleônico-clausewitziano moderno, um choque entre impérios. A
Turquia, aliada dos alemães, mantinha a Palestina árabe sob o seu
império otomano (como se viu acima, um jugo relativamente frouxo,
onde a vida palestina seguia com considerável autonomia, situação
que nem de longe tinha nada em comum com o horror das posteriores
expulsão e ocupação israelenses). Interessada em atrair os árabes,
a Grã-Bretanha promete para depois da guerra, em correspondência
oficial entre Sir Henry Mac Mahon e o xeque Hussein, de Meca, a
criação de um estado independente nas províncias do império turco
em que se falava o árabe. A luta dos árabes contra a dominação
otomana acabaria sendo decisiva para a vitória de seus aliados
britânicos naquele front. Toda a evidência histórica demonstra que
as lideranças árabes esperavam que os britânicos cumprissem sua
palavra e confirmassem o estado árabe independente depois da guerra.
Não foi o que aconteceu.
Ter prometido algo aos árabes não impediu que a
Grã-Bretanha celebrasse com a sua aliada França um tratado
contraditório com a promessa anterior. Os acordos de Sykes-Picot, de
1916, entre Grã-Bretanha e França, reservavam aos franceses a Síria
e o Líbano. Em 1917, as forças otomanas se rendem ao general
britânico Allenby em Jerusalém e em 1918 se confirma o fim do
regime otomano na Palestina. O Tratado de Versalhes, de 1919, selaria
o arranjo de Sykes-Picot entre França e Grã-Bretanha, deixando aos
britânicos a área da Jordânia (então chamada de Transjordânia),
do Iraque e da Palestina. A Liga das Nações, fundada depois da
guerra, avalizaria esse arranjo, segundo o qual as duas potências
ocidentais se responsabilizariam por um “mandato” temporário
sobre essas regiões, até a sua independência formal. Em 22 de
julho de 1922, a Liga das Nações aprova o mandato britânico na
Palestina, que deixaria como legado o progressivo armamento dos
colonizadores sionistas e a catástrofe palestina de 1948.
Ao mesmo tempo em que prometia independência aos
árabes, o império britânico fazia sua famosa promessa ao movimento
sionista internacional, a Declaração de Balfour (1917),
patentemente contraditória com a promessa feita aos árabes e com o
próprio arranjo subjacente a Sykes-Picot e a Versalhes. Enviada pelo
secretário exterior britânico Arthur James Balfour ao Barão
Rotschild, para transmissão à Federação Sionista da Grã-Bretanha
e da Irlanda, a declaração mudaria a história do Oriente Médio:
“O governo de Sua Majestade vê favoravelmente o estabelecimento na
Palestina de um lar nacional para o povo judeu, e usará seus
melhores esforços para facilitar a realização desse objetivo,
ficando claramente entendido que nada será feito que possa
prejudicar os direitos civis e religiosos das comunidades não judias
existentes na Palestina, ou os direitos e status político
desfrutados por judeus em qualquer outro país”. Apesar de que a
declaração mencionava a preservação de todos os direitos da
população nativa, é evidente que “Balfour não tinha nenhum
interesse em consultar os árabes da Palestina acerca de seu
futuro”7.
Em suas memórias, Lloyd-George, primeiro-ministro em 1917, se refere
à declaração como uma recompensa a Chaim Weizmann, um dos líderes
sionistas mais importantes daquele momento (depois primeiro
presidente de Israel) e químico que havia desenvolvido um método de
sintetizar a acetona na produção de pólvora. A declaração também
está inserida na tentativa de mobilizar as comunidades judaicas da
Rússia e dos EUA no apoio aos esforços de guerra britânicos, e
termina sendo um enorme estímulo ao movimento sionista. Depois da
vitória aliada, o próprio Chaim Weizmann participaria da
Conferência de Paz de Paris, em 1919, clamando por uma “Palestina
tão judia como a Inglaterra é inglesa”8,
num momento em que os judeus representavam não mais que 10% da
população da Palestina. No ano seguinte, fundava-se na Palestina a
Hagana, organização paramilitar judaica depois responsável pelo
extermínio ou limpeza étnica de centenas de aldeias palestinas.
Só depois de três décadas (1880-1910) de
migração, compra de terras e armamento sionistas é que aparecem os
primeiros registros de preocupação entre as lideranças palestinas.
Em 06 de maio de 1911, o palestino e membro do parlamento otomano,
Said al-Husayni, apontava que “os judeus planejam criar um estado
na área que incluirá a Palestina, a Síria e o Iraque”9.
Segundo o historiador israelense Ilan Pappe, já entre 1905 e 1910 há
alguma evidência de discussão, entre líderes palestinos, do
fenômeno do sionismo como movimento político que acumulava poder e
terra. Mas só a partir da queda do regime otomano na Palestina
(1917) e o começo do período britânico (ocupação em 1918,
mandato da Liga das Nações em 1922), o movimento sionista se
lançaria paulatinamente a um plano de limpeza étnica dos árabes.
Ali passa a ser visível a preocupação sistemática e, por vezes, o
pânico das lideranças palestinas com as ondas migratórias, a
acumulação de terras e a violência física que se iniciava. Mas ao
longo das duas últimas décadas do século XIX e das duas primeiras
do século XX, a imigração sionista não esteve entre as grandes
preocupações dos palestinos.
Na década de 1920, os palestinos representavam
ainda uma maioria de 80% a 90% na região. A tentativa inglesa de
construir estruturas paritárias que reconciliassem as promessas
contraditórias feitas por eles ao povo árabe e ao movimento
sionista encontrou compreensível resistência entre os palestinos,
que “se recusaram, no começo, a aceitar a sugestão britânica de
paridade, especialmente uma paridade que os colocava na prática em
desvantagem—o que incentivou os líderes sionistas a
endossarem-na”10.
Começa a se desenhar ali um paradigma que seria reconhecível até
os dias de hoje: 1) instala-se uma mediação ocidental que recomenda
uma solução patentemente favorável ao sionismo; 2) os árabes
protestam, apontando, como no caso em questão, que a paridade entre
um povo que representa 90% da população e outro que totaliza 10%
contraria o mais elementar princípio da democracia; 3) a liderança
sionista, com intenso trabalho de relações públicas, manifesta
concordância tática com a solução apresentada, sabendo que a
recusa árabe os coloca na posição de, ao mesmo tempo, aceitar um
plano e não se comprometer com ele; 4) enfraquecidos politica e
militarmente, os representantes árabes voltam atrás e aceitam a
solução originalmente apresentada pela potência ocidental; 5) ante
a concordância árabe com o plano, é a vez da liderança sionista
dizer que a solução lhe é inaceitável, o que lhe permite arrastar
o impasse e, a partir de sua posição de força, aboncanhar mais e
mais, ao mesmo tempo em que adia outra vez uma solução definitiva;
a vitória não impede que a liderança sionista prolongue o impasse,
reinstalado por um aumento das suas exigências; 6) esse
prolongamento faz com que todo o ciclo se reinicie, com mais
concessões árabes e mais impasse, até o ponto a que chegamos hoje,
em que a população palestina já não tem o que oferecer, exceto
alguma forma mágica de desaparição. Esse filme se repete com
macabra previsibilidade, ante o olhar conivente das potências
cúmplices (Grã-Bretanha e, depois, os EUA), desde 1928, vinte anos
antes da fundação do estado de Israel. É a data em que as
lideranças palestinas, “apreensivas com a crescente imigração
judia ao país e com a expansão de seus assentamentos colonizadores,
concordam com a fórmula [paritária] como uma base para as
negociações”11.
É a data em que os sionistas já não a aceitam e os britânicos
permanecem de braços cruzados. Esses mesmos sete passos se repetirão
em 1947-48, no episódio que os apologistas da ocupação israelense
descrevem como o momento em que as Nações Unidas ofereceram um
plano de partição “que os judeus aceitaram e os árabes
recusaram”. Já veremos adiante todo o contexto que essa frase
omite.
Entre 1924 e 1928 chegam mais 67.000 judeus
(metade dos quais oriundos da Polônia), elevando a população
judaica para 16% do total da Palestina do Mandato. Naquele momento,
os judeus são donos de 4% da terra na Palestina. O censo de 1931
registra uma população de 1,03 milhão de almas, 16,9% judeus. A
não implementação, por parte da Grã-Bretanha, da fórmula
paritária que ela própria havia proposto, leva à rebelião árabe
de 1929, o primeiro grande sinal de descontentamento com a política
imposta no Mandato. Imagine um povo que representa quase 85% da
população se rebelando, em sua própria terra, para ter a paridade
que lhe havia sido proposta com os outros 15% que acabavam de chegar.
Agora imagine que a autoridade administrativa responsável pela
proposta se beneficiara da colaboração desse povo, como aliado seu,
numa guerra mundial, e que a moeda de troca oferecida por essa
colaboração não era paridade nenhuma, mas um estado seu, autônomo,
em suas terras. Com isso você terá os elementos centrais para
entender a primeira rebelião de desobediência civil árabe na
Palestina moderna. Os confrontos em torno ao Muro das Lamentações
em 1929 levam à morte de 133 judeus e 116 árabes, a maioria por
mãos inglesas.12
Em 1931, funda-se o Irgun, outra organização paramilitar judia que
se caracterizaria pelos ataques sangrentos aos árabes.
Ao se completar uma década e meia da queda do
regime otomano e uma década da implantação do Mandato Britânico
na Palestina, vão se configurando os elementos que produziriam a
tragédia: 1) o fim da ameaça otomana ao sionismo, que depois de 15
anos já não tem que temer qualquer eventual expulsão sua da
Palestina vinda do regime de Istambul; 2) o pesado armamento de
grupos paramilitares sionistas como a Hagana e o Irgun, que vão
acentuando a escolha por conquista e violência; 3) a perplexidade
das lideranças palestinas, arraigadas em séculos de organização
social descentralizada e não equipadas por sua experiência para se
contrapor de forma efetiva à ofensiva territorial e armamentista do
sionismo; 4) a incapacidade de setores das elites árabes de perceber
a natureza do fenômeno sionista, vendo-o muito mais como uma
“tentativa irresponsável por parte da Europa de transferir ao país
o seu povo mais pobre e sem estado”13;
e evidentemente 5) a subida ao poder do Partido Nacional Socialista
alemão, que em menos de uma década alçaria 19 séculos de
antissemitismo a níveis jamais vistos, com a intensa campanha de
perseguições, agressões bélicas e matanças que culmina, já numa
Europa em guerra, com o genocídio de 6 milhões de judeus.
Qual é, então, a Palestina que assiste à
invasão hitlerista da Polônia que dá início à Segunda Guerra
Mundial em 1939? Robert Fisk acerta ao descrevê-la como presa a uma
“atmosfera de suspeita, paranóia e intenso sofrimento”, tanto
para árabes como para judeus, “os primeiros com medo de a
Grã-Bretanha acabar autorizando a fundação do estado israelense em
suas terras, e os segundos observando a aniquilação de sua raça na
Europa”14.
Não há dúvidas de que, na medida em que vão ficando visíveis as
dimensões do Holocausto judeu na Europa, reforça-se a percepção
sionista de que a implantação de seu estado na Palestina é uma
questão de sobrevivência. Mas antes mesmo do início da Segunda
Guerra Mundial, em 1938, a voz de historiadores como George Antonius
já se levantava contra a eventual “resolução” do problema às
custas dos árabes palestinos:
O tratamento dado aos judeus da Alemanha e outros países europeus é uma vergonha para seus autores e para a civilização moderna; mas a posteridade não exonerará nenhum país que não consiga enfrentar sua parte dos sacrifícios necessários para aliviar o sofrimento e a angústia dos judeus. Impor a maior parte da carga à Palestina árabe é uma miserável forma de esquivar-se das responsabilidades que deveriam recair sobre todo o mundo civilizado. Também é moralmente vergonhoso. Nenhum código moral pode justificar a perseguição de um povo em uma tentativa de pôr fim à perseguição de outro. O remédio para a expulsão dos judeus da Alemanha não deve ser buscado na expulsão dos árabes de sua pátria; e também não se conseguirá o alívio da angústia dos judeus às custas da angústia de um povo inocente e pacífico.15
Seria difícil formular o protesto em termos mais
claros e moralmente firmes que os de Antonius. Suas palavras datam de
1938 e são, portanto, anteriores à guerra e aos horrores dos fornos
crematórios nazistas; precedem, em uma década inteira, a fundação
do estado de Israel e a expulsão de 750.000 palestinos de suas
terras. Mais de sete décadas depois de enunciadas, elas ainda ecoam
em sua atualidade e retidão ética.
III – A responsabilidade da diplomacia
brasileira no Nakba: Oswaldo Aranha
Antes de transferir a questão da Palestina às
mãos das Nações Unidas, em fevereiro de 1947, os ingleses
apresentaram a proposta de um estado binacional, rejeitada pelos
sionistas. Na mitologia oficial israelense, é frequente a referência
à rejeição árabe do plano de partição apresentado pela ONU em
1947, mas é muito menos comum qualquer menção à rejeição
sionista do plano inglês de um estado binacional. Já antes da
transferência da questão à ONU, a liderança sionista tinha
bastante claro que a Grã-Bretanha saía da Segunda Guerra Mundial
como uma potência de segunda ordem, muito mais interessada,
portanto, em abandonar o imbróglio da Palestina que em ajudar a
resolvê-lo. Também já estava claro para os sionistas que só
restavam os britânicos entre eles e a execução do plano de limpeza
étnica, e que a saída britânica da região era iminente. O
imperialismo ocidental mais uma vez largava um desastre de sua
criação nas mãos de uma população nativa não equipada para
resolvê-lo. Qualquer semelhança com o Iraque atual não é mera
coincidência.
O Brasil também tem sua responsabilidade
histórica no arranjo que produz a catástrofe palestina. Foi Oswaldo
Aranha, diplomata brasileiro, quem presidiu as discussões que
levariam à fundação do estado de Israel. Até mesmo a hagiográfica
biografia de Aranha escrita pelo norte-americano Stanley Hilton dá
alguma ideia do que foram as manobras do diplomata brasileiro.
Convocado pelo general Dutra em 1947, Aranha seria o representante
brasileiro no Conselho de Segurança da recém fundada Organização
das Nações Unidas. Depois, seria eleito presidente da sessão
especial da Assembleia Geral encarregada de discutir o problema da
Palestina. Aranha prometeria aos representantes árabes “plena
liberdade de discussão” do tema, logo depois que a Assembleia
rejeitara uma proposta árabe para que se incluísse na agenda a
questão da independência da Palestina. Não foi o que aconteceu.
Ante a observação do Grã Mufti de Jerusalém, de que “os judeus
queriam se apoderar da Palestina para sua maior expansão na região”,
Aranha retrucou que “a opinião do Mufti não me interessa”16.
A recomendação do comitê enviado à Palestina foi favorável ao
ponto de vista sionista, ou seja, a partilha, por uma maioria de sete
votos (num total de onze). Mas na Asssembleia Geral, vinte países se
abstiveram e a recomendação não teve os dois terços necessários.
Hilton relata que os últimos dias de novembro foram de crescente
tensão, e que apesar das declarações públicas de Aranha, de que
não exerceria nenhuma influência, sua atuação nos bastidores era
fortemente alinhada com os sionistas, fato reconhecido por Abba Eban,
membro da equipe negociadora da Agência Judaica na ONU17.
Quando a liderança sionista percebe que ainda não
detinha a maioria, inicia uma manobra pelo adiamento da votação.
Aranha “inteirado da situação, usou de sua autoridade para
ajudar: quando terminaram alguns discursos protelatórios
encomendados, anunciou ‘com irreverência’ que, sendo período de
férias nos Estados Unidos, seria justo que a Assembleia o
respeitasse e suspendeu a sessão”18.
Quando se reabriram os trabalhos, no dia 29 de novembro, eram os
árabes que sentiam que haviam perdido terreno. Tentaram adiar o
voto. Aranha ignorou uma moção do Irã, que pedia um reexame da
questão palestina e um adiamento dos trabalhos para janeiro de 1948.
Aranha, que tinha “a mão mais rápida no martelo que já vi”,
segundo a expressão de Abba Eban, procedeu a conduzir a votação,
que aprovou a partição da Palestina por 33 votos a favor, 13 contra
e 10 abstenções. Note-se aí, claro, a limitada representatividade
da ONU naquele momento anterior à descolonização na África e
Ásia. Os árabes, num padrão que se repetiria ao longo do anos,
deixaram o espaço livre para os sionistas ao se retirarem do
recinto. Chaim Weizmann, que seria o primeiro presidente de Israel,
testemunhou a Aranha que “a sessão da Assembleia não poderia ter
terminado com esta decisão histórica [...] se não fosse vosso
esforço persistente e vossa devoção como presidente”19.
Em 29 de novembro de 1947, quando a ONU adotou a
resolução de partição da Palestina, os árabes representavam dois
terços da população da região. Eles eram aproximadamente 90% no
início do Mandato Britânico, em 1922. A partição proposta pelo
Comitê Especial das Nações Unidas para a Palestina (UNSCOP, pela
sigla em inglês) concedia ao terço judeu nada menos que 56% do
território, deixando aos dois terços árabes somente 44% da terra.
Por pressões do Vaticano e das nações católicas, a resolução da
partição reservava à cidade de Jerusalém (de população de
200.000 pessoas, divididas mais ou menos igualmente entre árabes e
judeus) a condição de área internacionalmente governada. A divisão
demográfica dos dois putativos países era bizarra: no estado árabe,
deveriam viver 818.000 palestinos, hospedando 10.000 judeus. No
estado judeu, viveriam 438.000 palestinos entre 499.000 judeus. Esse
estado detinha a esmagadora maioria das terra férteis e, das 1.200
aldeias palestinas, aproximadamente 400 estavam incluídas em seu
interior, sob soberania sionista20.
Elaborada pelo UNSCOP, cujos membros não sabiam muito sobre a
Palestina, a partição se transformaria na Resolução 181 da ONU.
Não é de se estranhar que a liderança palestina do momento a
rejeitasse. Com o boicote palestino ao UNSCOP, com certeza um erro
político grave, a liderança sionista, de ampla superioridade
bélica, se viu livre para dominar também o jogo diplomático.
A amarga ironia da história, quando a vemos do
ponto de vista árabe, é que, como já argumentou a própria
historiografia israelense (Simcha Flapan, por exemplo), se os
palestinos tivessem aceitado a partição, a liderança sionista com
certeza a teria rejeitado21.
Basta examinar as comunicações entre Ben-Gurion e a hierarquia
sionista para ver como a rejeição árabe ao plano de partição
permitiu ao sionismo aceitá-lo publicamente e ao mesmo tempo
trabalhar contra ele. Logo depois da adoção da Resolução 181,
Ben-Gurion afirmava ao círculo da liderança sionista que a rejeição
árabe ao plano significava que “não há fronteiras territoriais
para o futuro estado judeu” e que as fronteiras “serão
determinadas pela força e não pela resolução de partição”
(p.37). Respondendo a um líder sionista e ministro do exterior
(Moshe Sharett) acerca das possibilidades de defender o seu
território, Ben-Gurion afirmava: “seremos capazes não só de nos
defendermos, mas de infligir golpes letais aos sírios em seu próprio
país—e tomar a Palestina como um todo” (p.46). Essas
comunicações, disponíveis para consulta nos próprios arquivos
israelenses, demonstram claramente que a liderança sionista viu o
plano de partição como uma conquista tática, que colocava em
definitivo sobre a mesa a legitimidade de um estado judeu na
Palestina e estabelecia um trampolim para conquistas posteriores.
Essas conquistas, é certo, foram facilitadas pelo perplexo boicote
palestino ao Comitê da ONU. Reitere-se, então, que as citações de
Ben-Gurion acima são parte de uma ampla documentação que prova que
a liderança sionista jogou um jogo duplo e não se comprometeu com a
partição como fórmula definitiva. Isso jamais é mencionado pelos
apologistas da ocupação de Israel que repetem a consigna de que “os
judeus aceitaram a partição de 1947 e os árabes a rejeitaram”
como justificativa dos crimes cometidos por Israel em 2010, e bem
além dos limites dessa partição.
Antes de descrever a expulsão dos palestinos de
suas terras, mais um elemento do xadrez político legado pelo Mandato
Britânico deve ser explicado: o acordo sionista-jordaniano que deixa
os palestinos sem o apoio do principal exército árabe na Guerra de
1948 e à mercê do superior poder bélico sionista. Aliada dos
ingleses na Primeira Guerra Mundial, a família real Hashemita havia
recebido os reinos da Jordânia e do Iraque como recompensa por seus
serviços. O que passou a ser conhecido como Transjordânia “era um
pouco mais que um principado desértico e árido ao leste do Rio
Jordão, cheio de tribos beduínas e aldeias circassianas” (p.43).
As férteis terras da Palestina situadas a oeste do Rio Jordão, no
que hoje é conhecido como Cisjordânia (ou seja, o grosso do
território do que é, legalmente, a Palestina atual), passaram a ser
objeto da cobiça da família real Hashemita. Havia poucos judeus
ali, e entre 1946 e 1947 a realeza jordaniana e a liderança sionista
chegaram um acordo: os jordanianos não interfeririam na guerra
árabe-israelense que se avizinhava—promessa que os jordanianos
cumpriram—e a região da Cisjordânia seria anexada pelo reino dos
Hashemitas, sem interferência sionista—promessa que os israelenses
quebraram em 1967, ao ocupar o território e mantê-lo sob seu
controle, picotagem policial e colonização armada até hoje. Também
ali se instalaria um paradigma repetido incontáveis vezes desde
1948. Acuados pelo poder superior dos sionistas, as elites árabes
vizinhas rifavam os palestinos, deixando-os entregues à própria
sorte num jogo no qual não tinham nenhuma chance. É mais um
elemento da tragédia do Oriente Médio.
Revisando os diários de Ben-Gurion e os arquivos
israelenses posteriores à partição, o historiador Ilan Pappe
encontra certa surpresa e júbilo entre a liderança sionista com o
caráter limitado da reação palestina ao recorte de suas terras.
Seguindo-se à Resolução 181, os palestinos se limitam a convocar
uma greve geral de três dias, durante a qual a repressão inglesa
foi duríssima. As revoltas árabes que aconteceram entre 1936 e 1939
deram também à organização paramilitar judia Hagana sua primeira
experiência na execução das táticas militares aprendidas com a
Grã-Bretanha. A destruição da liderança política palestina seria
decisiva para o rumo posterior dos acontecimentos. O quadro que
precede a guerra de 1948 é de intenso armamento sionista,
coincidindo com um momento de particular fragilidade da liderança
palestina, destroçada pela repressão britânica à revolta de
1936-39. No jogo diplomático, começa a pesar a consciência culpada
da Europa, em choque com as dimensões gigantescas do Holocausto
judeu, recém perpetrado. Quebrar as promessas feitas aos árabes era
preço relativamente pequeno para expiar, às custas de outrem, a
culpa européia pelo judeocídio. No xadrez político da região, o
acordo sionista-jordaniano neutralizava o principal exército árabe.
Em pânico com os constantes ataques dos grupos paramilitares judeus
(Hagana, Irgun e Stern), a população autóctona, já em 1947,
começa a perceber o poderio sionista como uma força imbatível.
Estava aberto o caminho para a limpeza étnica da Palestina.
IV – A preparação da expulsão
Toda sorte de distorções e mitos já foram
circulados sobre o que aconteceu na Palestina entre o final de 1947 e
o começo de 1949. Na mitologia oficial israelense, no senso comum,
no jornalismo mais venal ou preguiçoso, nas Wikipédias e até mesmo
em livros embalados como se fossem de pesquisa historiográfica
séria, essas distorções foram sedimentando uma coleção de
narrativas que recorrem a falsificações não raro contraditórias
entre si: 1) que o povo palestino como tal não existia; 2) que ele
existia mas que saiu voluntariamente de suas terras em 1948; 3) que
não saiu voluntariamente, mas que tampouco foi vítima do sionismo,
pois abandonou suas aldeias atendendo a ordens radiofônicas dos
próprios árabes; 4) no ramo da pseudo-historiografia sem-vergonha,
paga para mentir, já apareceram até livros sobre como os palestinos
não eram tão antigos assim na região, já que eles teriam chegado
também em imigração recente. Essas diferentes versões da
mitologia oficial vão se sucedendo ou se combinando, a gosto do
freguês, formando uma geleia geral de enganação empacotada.
Acompanham-na algumas frases que, até corretas em si mesmas, omitem
um universo de contexto que lhes transforma o sentido, como é o caso
de “os sionistas aceitaram a partição proposta pela ONU, os
árabes, não”, analisado acima, e “a guerra de 1948 foi iniciada
pelos palestinos”, mantra que é essencial em todo mascaramento do
processo.
Como se sabe agora, a liderança militar sionista
ficou surpresa com o caráter limitado dos protestos palestinos que
se seguiram ao decreto da partição, em novembro de 1947. Afinal de
contas, seu território havia sido rachado com uma comunidade
minoritária de colonos, que receberam não só um naco de 56% do
território, desproporcional à sua representação na população,
mas um naco que continha pelo menos 400 aldeias palestinas, nas quais
800.000 palestinos deviam seguir vivendo sob soberania imposta e
recém chegada. Ao longo dos dias que se seguem à partição, o
comando sionista se reúne para encontrar formas de ataque possíveis,
ante a ausência de pretextos. Os arquivos estudados por Ilan Pappe,
das reuniões a liderança judaica na Palestina, dão amplo
testemunho do planejamento da limpeza étnica. Os fazendeiros dos
Kibbutzim transformavam suas cooperativas em postos militares,
enquanto nas aldeias palestinas a vida seguia seu curso, no qual a
“normalidade era a regra e a agitação a exceção”, segundo os
informes do próprio Palti Sela, membro de uma unidade de
inteligência sionista. Ao longo do mês de dezembro de 1947,
anterior à guerra propriamente dita, as aldeias palestinas sofrem
uma campanha de terror e intimidação das organizações
paramilitares judias que representam o primeiro capítulo da limpeza
étnica da Palestina.
A linguagem da ameaça foi prática comum naquele
momento, como mostra o exemplo citado por Ilan Pappe, de panfletos
lançados às aldeias sírias e libanesas na fronteira palestina: “Se
a guerra for levada até você, ela causará expulsão massiva de
aldeões, com suas mulheres e crianças … haverá matança sem
piedade, sem compaixão” (p.56). Lembremos que nesse momento o
sionismo já possui um mapa completo das aldeias palestinas,
incluindo-se informação sobre água, possíveis defesas e
indivíduos vinculados à resistência árabe durante os protestos de
1936-39. Esse mapeamento seria chave na destruição das centenas de
aldeias palestinas e na expulsão de centenas de milhares de
habitantes autóctonos da região No mês de dezembro se disseminam
as ações que a Hagana chamava de “reconhecimento violento”
(hassiyur ha-alim): invadir uma aldeia à noite, instaurar
toque de queda, atirar em qualquer um que ouse sair de casa,
permanecer durante algumas horas e ir embora. A aldeia de Deir Ayyub
foi uma das vítimas de dezembro de 1947. Com aproximadamente 500
habitantes, ela acabava de comemorar a abertura de uma escola. Foi
invadida por tropas judaicas que passaram a atirar
indiscriminadamente nas casas. Deir Ayyub ainda seria atacada três
vezes antes de ser destruída em sua totalidade em abril de 1948
(p.56). No nordeste da Galileia, na aldeia de Khisas, algumas
centenas de muçulmanos coexistiam pacificamente há tempos com uma
centena de cristãos. Até que no dia 18 de dezembro de 1947, tropas
judaicas a invadiram e passaram a explodir casas durante a noite,
provocando a morte de quinze aldeões, pelo menos cinco crianças.
Ações como estas proliferaram ao longo de dezembro de 1947, e não
costumam ser mencionadas pelos que justificam as atrocidades de
Israel com o argumento de que “os palestinos iniciaram a guerra”
em janeiro de 1948.
As ações de expulsão da população anteriores
à declaração formal de guerra em janeiro de 1948 não se limitaram
às aldeias pequenas. Na cidade de Haifa, principal porto da
Palestina, 75.000 palestinos “foram submetidos a uma campanha de
terror instigada conjuntamente pelo Irgun e pela Hagana. Como haviam
chegado em décadas recentes, os colonos judaicos construíram suas
casas no alto das montanhas. Viviam topograficamente acima dos
bairros árabes e podiam disparar e lançar morteiros contra elas.
Começaram a fazê-lo com frequência a partir do começo de
dezembro. Usaram também outros métodos de intimidação: as tropas
judaicas rolavam barris cheios de explosivos, e enormes bolas de aço,
na direção das áreas residenciais árabes, lançavam óleo
misturado com combustível nas estradas, que aí incendiavam. Os
residentes palestinos, aterrorizados, corriam para fora de suas casas
para tentar apagar o fogo, e aí passavam a ser alvo de rajadas de
metralhadora” (p.58). A descrição documentada do que aconteceu em
Haifa em dezembro de 1947 é importante porque a cidade é, com
frequência, mencionada como exemplo de que as lideranças judaicas
insistiram para que os palestinos ficassem e eles saíram
“voluntariamente”.
V – Epílogo e promessa
Não está contada aqui, evidentemente, nada da
história do Nakba propriamente dito. Para se entender a
monstruosidade a que foi submetida o povo palestino, há que se
conhecer os quatro planos de limpeza étnica da Palestina elaborados
pela liderança sionista desde antes da II Guerra Mundial. O Plano A,
também conhecido como “Plano Elimelech”, toma seu nome do líder
do comandante da Hagana que, em 1937, já elaborara, a pedido
de Ben-Gurion, um projeto de limpeza étnica a ser executado no
momento em que os ingleses abandonassem a Palestina. O Plano B foi
escrito em 1946 e ambos depois se fundiram no Plano C, que previa: a)
assassinatos seletivos da liderança política palestina; b)
destruição da infraestrutura de transporte palestina; c) sabotagem
específica às fontes de sustento da população nativa, como os
moinhos; d) ataques escalonados às aldeias; e) bombardeios de
ônibus, cafés, locais de reunião. O fundamental desse plano é
mantido no projeto que é efetivamente executado, o Plano D (Dalet),
anterior à guerra de 1948, e que previa a sistemática expulsão do
povo palestino de suas terras.
O Plano Dalet já é consenso entre a liderança
sionista em Dezembro de 1947, antes da oficialização da guerra. Ao
cabo do processo de limpeza étnica, espantosamente curto e brutal,
mais da metade da população palestina nativa (pelo menos 750.000
pessoas) foi expulsa, 531 aldeias foram destruídas e onze bairros
urbanos foram esvaziados de sua população, um crime contra a
humanidade de enormes proporções, ainda hoje negado e envolvido em
falsificação. Hoje, os refugiados e seus descendentes vivem
esparramados por, em números aproximados, Jordânia (2 milhões),
Líbano (430.000), Síria (480.000), além de 800.000 que são
parte da população palestina que mora sob ocupação militar
israelense na Cisjordânia (2,3 milhões) e outro 1,1 milhão que
vive sob bloqueio (e frequente bombardeio) militar israelense em
Gaza. Outros 1,2 milhão de palestinos vivem como cidadãos de
segunda classe em Israel. O melhor guia do Nakba é o livro de Ilan
Pappé, The Ethnic Cleansing of Palestine, infelizmente
ainda inédito em português. Pretendo publicar num futuro próximo,
aqui pela Editora Publisher, um breve livro que contará um pouco
dessa história. Se você lê inglês e se interessa pelo
acompanhamento diário do horror, sugiro o site Electronic
Intifada.
.
Referências
bibliográficas: otoRe.N
1 Aragão, Maria
José. Israel
x Palestina: Origens, História e Atualidade do Conflito (Rio
de Janeiro: Revan, 2006), p. 23-4.
2 Aragão,
p. 32.
3
Aragão,
p. 33.
4
Heynick,
Frank. Jews
and medicine, An Epic Saga, KTAV
Publishing House, Inc., 2002 p.103.
5
McCarthy,
Justin. The
Population of Palestine.
(Nova York: Columbia UP, 1990), p. 37-8.
6
Khalidi,
Walid. “Why did the Palestinians leave?” Journal
of Palestine Studies
34.2 (2005): 42-54. Ver também Benny Morris, The
Birth of the Palestinian Refugee Problem Revisited
(Cambridge: Cambridge UP, 2004).
7
Fisk,
Robert. A
grande guerra pelo Oriente Médio.
Trad. Sandra Dolinsky (São Paulo: Planeta, 2007), p.
432.
8
Pappé,
Illan. The
Ethnic Cleansing of Palestine
(Oxford: OneWorld, 2006), p. 283.
9
Pappe,
p. 11.
10
Pappe,
p. 14.
11
Pappe,
p.14.
12
Pappe,
p. 283.
13
Pappe,
p.12.
14
Fisk,
p.511.
15
Antonius,
George. Arab
Awakening: The Story of the Arab National Movement
(Londres:
International Book Center, 1938), p.
387.
16
Hilton,
Stanley: Oswaldo
Aranha: Uma biografia
(Rio de Janeiro: Objetiva, 1994), p. 439.
17
Eban,
Abba. Personal
Witness: Israel Through My Eyes
(Nova York: Putnam’s Sons, 1992).
18
Hilton,
p. 456.
19
Hilton,
p. 459.
20
Pappe,
p. 34-5.
21 Flapan,
Simcha. The
Birth of Israel: Myths and Realities
(Nova York: Pantheon, 1987).
Puxadinho do Jader
Vídeo
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