buscado no Pimenta com Limão
Escrevo e falo sempre que posso sobre o
meu estranhamento à “democracia” brasileira. Tanto que só consigo
escrever a palavra me referindo ao Brasil assim, entre aspas. E o
estranhamento está em perceber o quanto o Estado brasileiro permanece
repressivo e tolhedor de direitos. Sei que é apenas para alguns, mas na
ditadura militar e em outras antes também o era. Numa
conversa com amigxs queridxs das minhas redes sociais (ou plataformas
digitais), falávamos dos sinais que evidenciam que estamos cada dia mais
distante da democracia porque os direitos e a liberdade de alguns foram
suprimidos, e o quanto é difícil falar a respeito disso com quem se
sente distante (talvez acima) e diferente desses. Essa conversa me fez
lembrar do início de um poema do Brecht, Intertexto:
Mas não me importei com isso
Eu não era negro.
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário.
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável.
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei.
Agora estão me levando.
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.”
Antes dele, a mesma concepção, a indiferença diante da escalada do autoritarismo, estava no “E Não Sobrou Ninguém” de Vladimir Maiakovski, que originou o poema “No caminho, com Maiakovski” de Eduardo Alves da Costa.
Alves da Costa, niteroiense, escreveu seu poema no final da década de
60, no período mais duro e sombrio da ditadura militar e por isso voltou
como um ato de resistência na campanha “Diretas Já” em 84, quando um trecho (atribuído à Maiakovski) foi amplamente difundido em camisetas e panfletos:
Foi o poema de Maiakovski que também originou o sermão do pastor luterano Martin Niemöller na Alemanha nazista:
E depois desses surgiram várias versões e corruptelas.
* * * * * * * * * * * * * * * *
Daí que a conversa de ontem sobre a indiferença diante da escalada do autoritarismo, inspirou o amigo Paulo Candido
a escrever uma versão atualizada do poema do Maiakovski e do Brecht
tudo-junto-misturado, que é razão desse post e vai além da indiferença e
trata também do escárnio que nasce de tanta indiferença. Confiram:
Primeiro eles jogaram o Rafael no presídio e esquecerem ele lá. Eu não me importei, porque que porra um morador de rua estava fazendo com desinfetante, eles não gostam de chafurdar na sujeira??
Depois eles mataram o Amarildo e sumiram com o corpo. Eu estava pouco ligando, porque afinal, se você mora na favela devia saber que não é para mexer com a polícia.
Daí eles puseram o japonês e o cara de saia na cadeia com flagrante falso e provas forjadas. Eu não estava nem aí, porque, cara, homem de saia de saia é tudo viado e japonês baderneiro nem devia ter, né? Só no Brasil mesmo.
Aí eles prenderam ilegalmente a tal Sininho, um monte de professores, uns moleques adolescentes. Eu nem quis saber, Bando de black blocs, tem que arder no inferno.
Então eles acabaram com essa coisa de manifestação, cercaram os vagabundos e desceram porrada. Eu aplaudi de pé, Cansei dessa gente atrapalhando o trânsito e quebrando vitrine quando eu quero voltar para casa.
Outro dia disseram que eu não podia mais que votar. Eu fiquei feliz da vida, Já aluguei a casa na praia para o feriadão, mas nem sei se ainda é feriado, preciso ver isso aí.
De vez em quando eles pegam um vizinho ou um colega de trabalho e eles não voltam mais. Eu acho massa, menos barulho no prédio e menos concorrência na firma.
Outro dia levaram meu filho mais velho, estava na rua depois das nove. O idiota tinha sido avisado, e é uma a boca a menos para alimentar, vamos poder ir para a Europa no fim do ano.
Minha mulher disse que tem uns caras na porta perguntando por mim. Troquei de roupa e disse para ela seguir a vida, Afinal, alguma coisa eu devo ter feito e é tudo pelo bem do Brasil.
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