buscado no Gilson Sampaio
Via Boitempo
Edson Teles.
Em
meio às emoções e protestos durante a Copa do Mundo de futebol no país,
as Forças Armadas, por meio do Ministério da Defesa, deram publicidade
aos seus relatórios de sindicância sobre as práticas de violações de
direitos humanos em suas dependências durante a ditadura militar. O
documento atende a uma solicitação feita pela Comissão Nacional da
Verdade (CNV), instituição que apurou e confirmou as violações cometidas
pelas Forças Armadas e solicitou a investigação dos documentos e com os
agentes militares envolvidos nos fatos. Nos relatórios
afirma-se que não foram encontrados registros formais “que permitam
comprovar ou mesmo caracterizar o uso das instalações dessas
Organizações Militares para fins diferentes dos que lhes tenham sido
prescritos”, não permitindo “corroborar a tese apresentada por aquela
Comissão [a CNV] de que tenha ocorrido desvio formal de finalidade”, ou
seja, que tenham sido usadas como centro de tortura, assassinato e
desaparecimento.
Não estivéssemos em pleno
século XXI, ao fim do quinto mandato de um presidente civil, todos
exercidos por ex-vítimas da ditadura, poderíamos passar pouco
estarrecimento por esta informação. Ou ainda, se vivêssemos em meio a um
processo de transição, o que historicamente e de acordo com as
políticas globais de construção de um novo regime democrático pode
exigir negociações e silenciamentos, talvez a notícia pudesse ser
considerada até um modo de chamar a atenção para a questão sem contudo
colocar em risco a governabilidade. Poderíamos até mesmo lamentar a
falta de correlação de forças políticas no governo, o que nos impediria
de exigir mais do Estado.
Mas não. O projeto de
democracia instituído no país a partir da nova constituição de 1988 e da
primeira eleição para um presidente civil em 1989, eventos seguidos por
sucessões de passos formais de um Estado de Direito, coloca a chegada
deste relatório infame num campo de lutas políticas em torno de qual
democracia queremos. Sim, infame, por conter um conteúdo que beira a
provocação com os caminhos de uma democracia, afirmando, como consta do
relatório da Marinha, que os presos teriam sido bem tratados, de modo
“bastante aceitável”. É “aceitável” torturar e assassinar pessoas que
discordem do governo?
O caráter desprezível dos
relatórios podem também ser confirmado na tese de que os documentos
sigilosos da época teriam sido “legalmente destruídos”, inclusive os
termos de destruição, os quais indicariam os responsáveis pela
eliminação dos arquivos incriminadores. Acredite quem quiser. Ainda que
sem os arquivos comprobatórios, por que é que o Ministério da Defesa não
convocou os militares responsáveis pelas instalações militares em
questão, como a sede do DOI-CODI do II Exército, em São Paulo, chefiado à
época pelo coronel Ustra? Aliás, o livro deste criminoso de Estado
consta como prova, nos relatórios em questão, de que nada de ilegal
ocorreu naquelas dependências.
Contudo, gostaria
de chamar a atenção a um aspecto perigoso para uma efetiva democracia e
com presença constante na lógica de governo do Estado de Direito: o
documento com os relatórios das três Forças usa como argumento
fundamental das respostas a ideia de que se pautam pela lógica da
“promoção da reconciliação nacional”, como consta na lei de criação da
CNV. Este é um ponto que pode passar desapercebido, mas indica uma
questão nevrálgica no trato da apuração da verdade sobre a época da
ditadura. Passados 25 anos da transição para um Estado de Direito, não
vivemos mais sob o perigo de golpe de Estado ou reversão no processo
democrático.
A proposição de “reconciliação
nacional”, incluída na lei de criação da CNV e repetido exaustivamente
em todos os momentos em que chegamos perto da verdade sobre o período ou
de passos no sentido da efetivação da justiça, fundamenta-se na falsa
versão de que nos anos 60 e 70 houvesse no país o conflito entre duas
forças extremas, os “subversivos” da esquerda e a “linha dura” dos
militares. Esta versão corroborou, nos anos 80 e 90, a ficção de que a
transição para a democracia teria se pautado na reconciliação nacional.
Esta peça ficcional e já mitológica teria sido confirmada na década
passada pelo Supremo Tribunal Federal quando este confirmou a anistia
para os torturadores (maio de 2010).
Chega a ser
patológico, como se evidencia na repetição desta ideia nos referidos
relatórios, que a democracia insista nesta tese nos dias atuais,
especialmente durante os trabalhos de uma comissão da verdade. Mais
grave do que isto, esta ficção corrobora a tese de vivemos sob uma
espécie de transição (não sabemos para onde transitamos!) e que seria de
bom tom não confrontar aqueles fantasmas. Os espectros que não são
nomeados, mas que servem como justificativa para não nos aprofundarmos
em uma democracia de transformação social e política. Não se trata de
jogar contra as demandas de uma política de “justiça de transição” –
verdade, memória, justiça e reforma das instituições –, tão necessárias e
distantes ainda hoje.
Mas, por que insistir
nesta tese da transição e da reconciliação? Como é possível adotar esta
formulação nos trabalhos de uma criação da verdade? O que estaria de
fato por trás desta ideia?
São questões a serem
respondidas com urgência. As reações repressivas e de criminalização dos
movimentos sociais, especialmente a partir de junho de 2013, parecem
indicar um rastro para encontrar as respostas.
O
que parece estarmos vivendo é um conflito, não uma reconciliação. A
chamada transição democrática no Brasil configurou-se como a montagem de
uma democracia de cunho autoritária e oligárquica. Conquistamos
direitos importantes e fundamentais. Porém, a esfera da decisão política
continuou nas mãos de poucos, implicando em um Estado voltado
prioritariamente aos grandes grupos econômicos e às oligarquias
políticas.
Creio que estamos em um momento
importante para mudarmos os rumos planejados na “abertura lenta, gradual
e segura” dos fins da ditadura, que visou a montagem da atual
democracia de segurança e controle. Está instalado no país um conflito
aberto, democrático e de rediscussão dos rumos traçados. Mesmo que
possamos discordar de certas formas do agir na política, não podemos
impor um único modelo de relações sociais.
Não é
o momento da reconciliação. É a hora de deixarmos muito claro que houve
tortura no país durante a ditadura e que o atual Estado de Direito, por
meio de seus agentes e instituições, continua a violar gravemente os
direitos humanos. Não há como reconciliar com a política do
#NÃOVAITERVERDADE proposta pelo Ministério da Defesa.
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O QUE RESTA DO GOLPE DE 1964
Confira
o especial de 50 anos do golpe no Blog da Boitempo, com artigos,
eventos e lançamentos refletindo sobre os legados da ditadura para o
Brasil contemporâneo, aqui.
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Edson Teles é autor de um dos artigos que compõe a coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas, que tem sua versão impressa vendida por R$10 e a versão eletrônica por apenas R$5 (disponível naGato Sabido, Livraria da Travessa e outras).
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Edson Teles
é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor
de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010), além de contar com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
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