É raro pedir a
motoristas pé de chumbo que reformem o código de trânsito. A
débâcle da bolsa em 2008, porém, conduziu os gigantes das finanças
para o posto de administradores de uma crise que eles mesmos
provocaram. É o caso do banco Goldman Sachs, que há muito murmura
nas orelhas do poder
por
Ibrahim Warde
Ilustração: Emilio Damiani
No mesmo momento em
que incitava seus clientes a se aventurarem no mercado imobiliário,
o banco de investimentos Goldman Sachs desenvolvia um produto
financeiro, “Abacus”, que lhe permitia especular na queda do
setor. Acusado de fraude, ele conseguiu, em 15 de julho de 2010,
livrar sua equipe dirigente por meio do pagamento de uma indenização
de US$ 550 milhões: o equivalente a duas semanas de seus lucros, ou
a 3% do total de bônus que distribuiu em 2009.
Essa aptidão de
jogar com o poder – ou brincar com ele – não é surpreendente.
Desde o começo dos anos 1990, uma carreira política de primeiro
plano vem logicamente coroar o percurso de todos os chefes do Goldman
Sachs (ver box). A consanguinidade com o mundo político
explica a implicação do banco nas grandes manobras financeiras:
ocupou um lugar tão central quanto ambíguo na crise dos subprimese
do salvamento dos bancos fragilizados pela crise financeira de 2008;
ajudou a Grécia a maquiar suas contas, precipitando a crise do euro;
teria também, ao especular sobre as matérias-primas, provocado uma
alta artificial no preço do petróleo.
De outro lado, o
banco soube extrair, ano bom, ano ruim, lucros consideráveis,
incluindo o ano depois do estouro das bolhas que ele contribuiu
largamente para inflar. As receitas polpudas dos anos de expansão
não surpreendem. Mas, depois do colapso do castelo de cartas e da
expiação que se seguiu, as receitas dos anos magros acabaram por
chocar a opinião pública, que se interrogou: a desgraça de (muitas
e muitas) vítimas do estouro da bolha faria a sorte do Goldman
Sachs?
Fundada em 1869 por
Marcus Goldman, um imigrante judeu bávaro, logo acompanhado por seu
genro Samuel Goldman, a empresa, especializada no começo em
corretagem de “documentos comerciais” (empréstimos de curto
prazo emitidos por empresas), ficaria por muito tempo fora das altas
finanças, quase inteiramente Wasp (white, anglo-saxon,
protestant [branco, anglo-saxão, protestante]). Duramente
afetada pela crise de 1929, só conheceria seu verdadeiro
desenvolvimento depois da Segunda Guerra Mundial.
Em 1956, o banco de
investimentos intervém de maneira decisiva quando da introdução na
bolsa do fabricante de automóveis Ford. O banco adquire
progressivamente, tanto por seu profissionalismo quanto por sua
capacidade de trabalho, uma equipe invejável, muito unida e
impregnada de uma forte cultura corporativa. Dominada por financistas
à moda antiga, como Sidney Weinberg ou Gus Levy, ela se impõe,
pouco a pouco, frente ao establishmenttradicional, até
derretê-lo.
O Goldman Sachs
permanece, no entanto, diferente de seus concorrentes. O banco é
conhecido como metódico e prudente, e por nunca participar de
operações de tomada de juros “hostis”. Um de seus lemas –
“apressar-se lentamente” – lhe valeu o apelido de “tartaruga”.
Contrariamente a
alguns de seus rivais, evita os gastos suntuosos. Para mostrar bem
que o dinheiro não deveria ser o único motor de suas tropas, seus
funcionários tinham salários menores que os da concorrência,
resultando em uma relativa “frugalidade”. Outro de seus lemas,
long-term greedy (ganancioso de longo prazo), lhe impõe uma
abordagem de paciência para o investimento e implica consentir
sacrifícios financeiros, dado que estes lhe asseguram a fidelidade
absoluta de seus clientes. A cultura da casa se exprime nos célebres
“quatorze mandamentos”. O sétimo afirma justamente: “Não há
lugar aqui para aqueles que colocam seus interesses antes dos da
empresa e dos clientes”. No clube bem fechado de bancos de
investimentos, os códigos deontológicos e o respeito à palavra
dada ainda contavam.1
A tartaruga se
transforma em polvo
Todos esses belos
princípios foram pouco a pouco minados com a desregulamentação
financeira dos anos 1980. O critério supremo se torna o da
rentabilidade, que só se pode obter ao preço de métodos duvidosos:
alavancagem financeira (compra especulativa financiada por
endividamento) perigosamente elevada; desvio de qualquer regra que
subsista; inovações em ritmo vertiginoso.2 É desse
período que data a consanguinidade com o poder (mesmo se o discurso
oficial continua a celebrar o mercado total), a internacionalização
e a louca corrida por lucros.
Lenta mas certamente,
a “tartaruga” se transforma em “polvo” que tenta reescrever
em seu favor as regras das finanças – as quais vão praticamente
permitir tudo. No exterior, conselheiros da elite político-financeira
são recrutados a peso de ouro para ajudar a tirar lucros da onda de
desregulamentação e privatizações. Na França, por exemplo, é
Jacques Mayoux, inspetor das finanças e anteriormente presidente do
banco Société Général, diretor-geral da Caixa Nacional do Crédit
Agricole [outro banco francês] e presidente do Sacilor, que se liga
ao Goldman Sachs. Charles de Croisset, inspetor de finanças,
ex-presidente do Crédit Commercial de France (CCF) e administrador
de Bouygues, Renault, LVMH e Thales, o sucedeu.
Outra grande
reviravolta aconteceu em 1999. O Goldman Sachs passa ao status de
empresa cotada na bolsa.3 Ontem, sociedade de pessoas, de
capital fechado – no qual o capital e os beneficiários pertencem a
associações que se responsabilizam, com seus próprios bens, pelos
riscos tomados pela empresa, na qual eles estavam obrigados a
reinvestir o essencial de seus benefícios –, “a Firma” se
transforma em sociedade anônima (cujo valor “estabelecido pelo
mercado” é de US$ 3,6 bilhões). Seus 221 parceiros, detentores de
48% do capital do Goldman Sachs, embolsam em média US$ 63 milhões
cada um.4 Isso leva ao fim da disciplina financeira e da
“ganância de longo prazo”. No momento da financeirização, o
sucesso se mede em número de dólares gerados, balanço após
balanço. O Goldman Sachs lidera os bancos de Wall Street em
rentabilidade (US$ 13,4 bilhões de resultado líquido em 2009) e
expõe em plena luz do dia os bônus de seus empregados.
No cassino
financeiro, o banco atua em vários papéis: o de croupier,
que embolsa uma comissão sobre todas as transações; o de
conselheiro, que elabora estratégias e fornece a seus clientes
informações confidenciais para aplicações financeiras –
governos, investidores institucionais ou apostadores inveterados como
os hedge funds (fundos especulativos). Suas análises e seus
economistas estão entre os mais ouvidos do planeta, e suas
declarações influem com frequência sobre o desenvolvimento das
coisas. Mas, sobre o tapete verde, o Goldman Sachs aparece,
sobretudo, como o jogador que conhece as cartas de todos os outros e
que decide as apostas.
Jogo duplo
O grosso dos
benefícios da empresa provém, de fato, da comercialização usando
recursos próprios. O banco coloca seu próprio capital sobre todos
os mercados financeiros, no setor imobiliário e em grupos de
investimento em empresas de grande potencial. Além disso, desde a
aquisição da J. Aron & Company em 1981, se torna um peso pesado
no mercado de matérias-primas e influencia, intencionalmente ou não,
a saúde econômica tanto dos produtores como dos consumidores do
mundo todo. Nem os assuntos ligados ao mercado de petróleo nem
aqueles que concernem ao aquecimento climático (com a mina de ouro
dos “créditos de carbono”) lhe escapam.
Os conflitos de
interesse são inerentes a esse supermercado das finanças que
oferece toda uma gama de serviços e busca permanentemente maximizar
a sua rentabilidade. O caso Abacus, provocado por e-mails indiscretos
do trader francês Fabrice Tourre (ler mais na página 17),
é um exemplo disso.
O Goldman Sachs se
viu acusado pela Securities and Exchange Commission (SEC, a instância
de controle das bolsas norte-americanas) de ter enganado seus
clientes lhes vendendo, em 2007, collateralized debt
obligations(CDO), produtos derivativos complexos endossados por
créditos imobiliários de risco (subprimes), sem os
informar que o banco apostava em sua queda. De uma parte, o banco
tinha, ele próprio, liquidado seu portfólio de subprimes,
o que estava no direito de fazer. Mas, sobretudo, ele tinha escondido
de seus clientes que o banco tinha recebido do fundo especulativo
Paulson, US$ 15 milhões para realizar essa montagem. Ou melhor (ou
pior), Henri Paulson, o próprio especulador, teria participado ao
lado de especialistas do banco da seleção dos créditos mais
suscetíveis de se degradar.
Dito de outra forma,
o Goldman Sachs, consciente da iminência de uma crise dos subprimes,
continuava a incitar seus clientes a apostar em uma alta do mercado
imobiliário enquanto, em associação com um fundo especulativo,
apostava em uma baixa, o que teve por efeito precipitar a queda
desses títulos. Os investidores, que não desconfiaram de seu jogo
duplo, teriam perdido mais de US$ 1 bilhão na aventura.
Antes de reconhecer
seus “erros”, o banco negou, qualificando a queixa de “sem
fundamento”. O caso da Grécia fornece outro exemplo: o
estabelecimento nova-iorquino foi remunerado pelo governo desse país
como banco consultor, ao mesmo tempo que especulava sobre a sua
dívida.
A diferença entre o
ilegal e o imoral
De um ponto de vista
legal, no entanto, o Goldman Sachs talvez tivesse razão: o que é
imoral não necessariamente é ilegal. Há menos de vinte anos,
quando do escândalo das poupanças nos Estados Unidos, cerca de
1.500 banqueiros haviam cumprido pena de prisão com base em leis
ditas anti-racketeering, antes postas em prática para
combater a máfia e o crime organizado. Doravante, os banqueiros
desfrutam de outro estatuto: um novo marco legal e ideológico
prevalece. Várias práticas (como o seguro de dívidas conhecidas
como credit default swap, ou CDS) escapam de toda
regulamentação. O princípio do caveat emptor(comprador,
desconfie) prevalece. E o Goldman Sachs repete que apenas responde à
demanda de seus clientes, os quais se tratam, aliás, de investidores
sofisticados, forçados a exercer uma verificação sistemática (due
diligence). Tanto que todos os documentos legais continham
alertas e reserva de uso.
No mundo das altas
finanças, a opacidade resulta do relaxamento de um excesso de
transparência. Cada produto é acompanhado de uma documentação de
várias centenas de páginas, porque certos investidores confiam nas
notas das agências de classificação de risco, as quais se enganam
frequentemente. Como constata Rama Cont, diretor do Centro de
Engenharia Financeira da Universidade Columbia, evocando os riscos de
títulos emitidos pelo Goldman Sachs e classificados como AAA (a
melhor nota), “a informação é disponível, mas cada título
subprimeé redigido em cinquenta ou sessenta páginas, e com
frequência de modo diferente, de acordo com os juristas. Teria sido
necessário mobilizar um pessoal adequado para triar as 5.700 páginas
dos derivativos da dívida Abacus...”.5
Depois de ter por
muito tempo suscitado admiração, o grupo sofre agora um problema de
imagem. Em plena crise econômica mundial, o banco, junto com outros
gigantes de Wall Street, em grande medida funcionou bem, e concedeu
bônus considerados “obscenos”. Outros escândalos surgiram, o
que levou a perguntar se a travessia relativamente fortuita da
turbulência financeira não era devida à onipresença de seus
ex-funcionários. Dali em diante tornou-se de bom tom, inclusive
entre os que se beneficiaram de sua generosidade, criticá-lo. Barack
Obama e Angela Merkel tiveram palavras bastante duras para uma
empresa que poderia um dia lhes enviar uma oferta de trabalho.
O caso Goldman Sachs
terá, no entanto, tornado possível a reforma do sistema financeiro
dos Estados Unidos. A lei Dodd-Frank, chamada de “a mais vasta
reforma do setor financeiro desde a Grande Depressão”, foi votada
pelo Senado norte-americano em 15 de julho de 2010. Certamente clara
em seus grandes princípios, ela visa impedir o colapso das grandes
instituições financeiras e seu salvamento por parte dos
contribuintes, minimizar a especulação dos bancos e de seus fundos
próprios, impor mais transparência ao mercado de derivativos
comercializados livremente; e, por fim, proteger os consumidores
contra as práticas predadoras e usurárias.
Por outro lado, suas
2.300 páginas parecem menos satisfatórias em se tratando da
aplicação concreta de tal programa. Mesmo se as cifras da Câmara
de Comércio dos Estados Unidos são, sem dúvida, intencionalmente
exageradas, a lei
Dodd-Frank implicaria na redação, por dez
agências governamentais diferentes, de 533 novas regulamentações,
60 investigações e 94 relatórios, em um prazo de três meses a
quatro anos.
O lobby bancário vai
lutar em todos os terrenos. Ele aposta no fim progressivo do rancor
público contra as instituições financeiras para encontrar toda a
liberdade do passado. Aqui, de novo, o Goldman Sachs saberá jogar
sua partida.
BOX:
Uma seleta
rede de amigos em altos postos
Ex-diretor do Goldman
Sachs, Robert Rubin dirigiu o Conselho Econômico Nacional criado por
Bill Clinton (1993-1995) antes de se tornar seu ministro das Finanças
(1995-1999). Rubin contribuiu para “tranquilizar” a comunidade
financeira, sobretudo por ser um fervoroso apóstolo da
desregulamentação.
Sob a presidência de George W. Bush, dois
outros ex-proprietários do banco de investimentos tiveram papel
político importante em diferentes áreas do governo e, por razões
pragmáticas, dentro dos dois principais partidos. Henry Paulson foi,
de 2006 a 2009, ministro das Finanças (e principal arquiteto do
resgate do sistema bancário), enquanto Jon Corzine foi eleito
senador (democrata) por Nova Jersey em 2000 – depois de gastar US$
62 milhões do próprio bolso na mais cara campanha para o Senado da
história norte-americana – e governador daquele estado, entre 2006
e 2010.
Outros altos funcionários do Goldman Sachs, menos
notórios, exerceram influência política não menos significativa,
especialmente durante o recente colapso financeiro. Neel Kashkari era
protegido de Paulson no Goldman Sachs antes de acompanhá-lo em sua
ida para o Tesouro, onde se tornou, aos 35 anos, o principal gestor
do TARP (Troubled Asset Relief Program), o que lhe permitiu
distribuir US$ 700 milhões às instituições financeiras em busca
de recapitalização. Quanto a Stephen Friedman, antigo CEO do banco,
estava usando três chapéus no momento da crise financeira:
administrador do Goldman Sachs, presidente da Comissão Presidencial
de Informações e presidente do Federal Reserve Bank de Nova York,
órgão que tutela o Goldman Sachs.
Diante dessa rede de
influências, os meios de comunicação muitas vezes se referiam ao
banco de investimento como “A Firma” ou “Governo Sachs”.
Entretanto, não foi só nos Estados Unidos que a empresa se instalou
na antessala do poder. Os italianos Romano Prodi
(ex-primeiro-ministro italiano) e Mario Draghi (presidente do Banco
da Itália, o Banco Central italiano, e nomeado para dirigir o Banco
Central Europeu, sucedendo a Jean-Claude Trichet a partir de novembro
de 2011) já tinham sido, respectivamente, conselheiro e
vice-presidente do Goldman Sachs para a Europa.
Ex-CEO do banco em
Londres, o presidente nigeriano, Olusegun Aganga, é agora o “czar
econômico” do seu país. Às vezes, belas carreiras políticas são
beneficiadas por uma “dança das cadeiras”. Esse é o caso de
Peter Sutherland: ministro da Justiça da Irlanda, depois comissário
europeu para a concorrência e gerente geral do Acordo Geral sobre
Tarifas e Comércio (GATT), atualmente preside o Goldman Sachs
International, em Londres. (I.W.)
Ibrahim Warde é
professor associado na Universidade Tufts (Medford, Massachusetts,
EUA). Autor de Propagande impériale & guerre financière
contre le terrorisme, Marselha-Paris, Agone - Le Monde
Diplomatique, 2007.
Ilustração: Emilio Damiani
1 Charles D.
Ellis, The Partnership: The Making of Goldman Sachs [A parceria: a
construção do Goldman Sachs], Penguin Books, Nova York,
2009.
2 Suzanne McGee, “Chasing Goldman Sachs: How the
Masters of the Universe Melted Wall Street Down... And Why They’ll
Take Us to the Brink Again” [Perseguição ao Goldman Sachs: como
os mestres do universo derreteram Wall Street… e por que eles nos
levarão até a beira do precipício novamente], Crown Business, Nova
York, 2010.
3 Lisa Endlich, Goldman Sachs: The culture of
success [A cultura do sucesso], Simon and Schuster–Touchstone, Nova
York, 2000.
4 Nomi Prins, It takes a pillage: behind the
bailouts, bonuses and backroom deals from Washington to Wall Street
[É preciso uma pilhagem: por trás dos resgates, dos bônus e das
negociações de bastidores de Washington a Wall Street], Wiley,
Hoboken, 2009.
5 Sylvain Cypel, “Les conflits d’intérêts
d’Abacus” [Os conflitos de interesse do Abacus],
Le Monde, 4 maio
2010.