Ironicamente, apesar de ser muito fácil hoje encontrar velhas edições das obras de Marx e Lenin em muitos sebos da Cidade do México, é difícil encontrar textos do Che. Há anos, quando os antigos esquerdistas arrependidos decidiram livrar-se de suas bibliotecas marxistas, não incluíram na venda suas cópias de “Passagens da Guerra Revolucionária”, da “Obra Revolucionária”, nem os nove volumes da coleção “Escritos e Discursos”. Quando algum texto do guerrilheiro argentino chega a algum sebo, dura pouco tempo nas estantes. O artigo é de Luis Hernández Navarro.
Luis Hernández Navarro - Correspondente da Carta Maior na Cidade do México
Em uma das estantes de um sebo do bairro Roma na Cidade do México há uma fotografia de Ernesto Che Guevara. Entre milhares de livros usados, o velho revolucionário que teria completa 80 anos de idade no dia 14 de junho, olha para o futuro. A imagem pode ser vista praticamente em qualquer canto de qualquer país. Foi tirada, na tarde opaca de 5 de março de 1960, com uma câmara Leica e uma lente de 90 milímetros por Alberto Korda, durante a homenagem às vítimas da sabotagem do barco francês La Coubre, dinamitado pela CIA. Sete anos mais tarde, morto Guevara, o editor italiano Giangiacomo Feltrinelli estampou-a em milhões de cartazes. Desde então tem sido utilizada em cartazes, capas de publicações, tatuagens, oferendas de mortos e como ilustração em camisetas e taças para café.
O Che deve estar à vontade entre o mar de letras que inunda essa livraria. Nos momentos mais difíceis de sua epopeia boliviana levava consigo material de leitura. Antes que a chuva acabasse com ela, manteve uma pequena biblioteca em uma gruta onde guardava poemas de León Felipe, publicações médicas, folhetos de Mao Tse Tung e “Minha Vida”, de León Trotski. Entre os vários pedidos que havia feito a sua esposa encontravam-se livros, especialmente “História da decadência e da queda do Império Romano”, de Gibbon.
Ernesto Guevara, o guerrilheiro, o homem de ação, também foi um homem de letras. Cresceu lendo Julio Verne, Miguel de Cervantes Saavedra, Federico García Lorca e Joseph Conrad. Bebeu nas águas do marxismo em sua própria fonte e não fugiu do estudo dos heterodoxos.
Ironicamente, apesar de ser muito fácil hoje encontrar velhas edições das obras de Marx e Lenin em muitas livrarias de antiguidades da Cidade do México, é difícil encontrar textos do Che. Há anos, quando os antigos esquerdistas arrependidos decidiram livrar-se de suas bibliotecas marxistas, não incluíram na venda suas cópias de “Passagens da Guerra Revolucionária”, da “Obra Revolucionária” (publicada por Editorial ERA, do México, em 1970), nem os nove volumes da coleção “Escritos e Discursos” (publicada pela Editora de Ciências Sociais de Havana, em 1977). E quando algum texto do guerrilheiro argentino chega a algum sebo, dura pouco tempo nas estantes.
Com dedicatória
Uma fotografia de Ernesto Guevara fez parte da cenografia montada para a cerimônia de transmissão de cargo do presidente do Chile, Salvador Allende, no dia 3 de novembro de 1970. Em seu primeiro discurso como presidente, o dirigente da Unidade Popular, apresentou o argentino como um exemplo para a juventude, convencido de que poucas vezes houve um homem que soube demonstrar com tanta consequência, generosidade e desprendimento suas ideias. “O Che – assegurou – tinha tudo e renunciou a tudo para tornar possível a luta continental”.
Não era a única fotografia do revolucionário argentino que Allende tinha. Em seu gabinete, no Palácio de La Moneda, em Santiago do Chile, o também médico guardava um retrato do internacionalista, com uma dedicatória que dizia: “A Carmen Paz, Beatriz e María Isabel, com o carinho fraterno da Revolução Cubana e o meu próprio”. Na mesma sala, conservava também um pequeno grande tesouro: um dos primeiros exemplares impressos de “A guerra de guerrilhas”. De próprio punho, o autor escreveu: “A Salvador Allende, que por otros médios trata de obtener lo mismo. Afectuosamente, Che”.
Vidas paralelas e convergentes, no dia 26 de junho completaram-se cem anos do nascimento do chileno. Sua morte, como a do argentino, fechou um ciclo de lutas pela emancipação na América Latina.
Da mesma maneira pela qual Salvador Allende fez de Che parte do processo transformador no Chile, no México as ideias do médico combatente foram naturalizadas mexicanas. Afinal, ele viveu aqui durante quase dois anos, casou-se e teve sua primeira filha aqui. Aqui trabalhou como fotógrafo para a Agência Latina, como alergista e pesquisador no Hospital Geral e no Hospital Infantil. No México, conheceu Fidel Castro, embarco no Granma e partiu para se encontrar com seu destino. “Este ano – escreveu na parte final de seu diário mexicano – pode ser importante para meu futuro”.
A revista Política, criada em 1960, divulgou no México os avatares da Revolução Cubana, até que a intolerância governamental asfixiou a publicação em 1967. Em suas páginas, começou a se construir o mito do Che para os leitores nacionais. Em seu número 7, narrava-se um encontro realizado com o comandante na Universidade de Havana. “Guevara – contou Ezequiel Martínez no texto – é testemunha de que estamos diante de fatos e seres novos, que se afastam dos caminhos do recuo (pavimentados, certamente) e abrem uma brecha no monte por onde iam os escravos fugitivos e os rebeldes acossados”.
A influência da epopeia cubana ressoara forte entre os revolucionários mexicanos e estimularia a formação das primeiras guerrilhas modernas durante a década de 60. A mensagem de que “o primeiro dever de todo revolucionário é fazer a revolução”, encontrou muitos ouvidos dispostos a escutá-la.
A literatura sobre a experiência do processo cubano que circulava entre os militantes de esquerda era originalmente escassa. Faziam parte dela os discursos do Che e de Fidel Castro e a primeira e segunda Declaração de Havana. Três contribuições sobre a guerra de guerrilhas sistematizadas pelo argentino foram lidas, estudadas e assimiladas pelos futuros combatentes mexicanos: 1) As forças populares podem fazer e ganhar uma guerra contra o exército; 2) Nem sempre é o caso de esperar que se deem todas as condições para a revolução; 3) Na América subdesenvolvida, o terreno da luta armada deve ser fundamentalmente o campo.
Estas experiências pioneiras tiveram um saldo trágico, ainda que tenham servido para dar um grande impulso à luta pela democracia no México. No entanto, seria injusto limitar a influência do Che em nosso país à formação desses focos armados. Sua presença impactou e serviu de guia e exemplo a intelectuais, ativistas, professores universitários e líderes camponeses convencidos da necessidade de contar com um projeto emancipador, e que não optaram pela luta armada.
Ecos de Vallegrande
A revista Alarma, conhecida por sua propensão ao escândalo fácil e aos temas escabrosos, com uma ampla circulação e muito lida entre as pessoas mais pobres, reproduziu a foto do Che morto. Aqueles que não sabiam de sua existência ou tinham uma vaga noção dela, passaram a saber quem ele era. Seu cadáver esquelético sobre a lápide de concreto no depósito de Vallegrande, seu peito descoberto e o rosto sereno, o cabelo penteado e a barba aparada, faziam com que parecesse não como o perigoso “vermelho” que ameaçava a estabilidade das boas consciências, mas sim como um redentor sacrificado que expiava os pecados dos seus semelhantes.
Paco Ignacio Taibo II, seu biógrafo, contou a comoção que sua morte produziu em uma geração de ativistas:
Sua morte em 1967 – escreveu – nos deixou um enorme vazio que nem sequer o Diário da Bolívia conseguiu preencher. Ele era o fantasma número um. O que não estava e estava rondando nossas vidas, a voz, o personagem, a ordem vertebral de “dirige-te inteiro para um lado e prontamente comece a caminhar”, o diálogo brincalhão, o projeto, a foto que te olha em todas as esquinas, a anedota que crescia e crescia acumulando informações que pareciam não ter fim, a única maneira pela qual frases de bolero como “entrega total” não pareciam risíveis. Mas, sobretudo, o Che era o tipo que estava em todos os lados depois de morto. Nosso morto.
A notícia impactou profundamente a esquerda mexicana. Seus integrantes tiveram sentimentos de raiva, dor e vingança. Um grupo de jovens integrantes do Partido Mexicano dos Trabalhadores e do Movimento da Esquerda Revolucionária Estudantil decidiram fazer-lhe justiça. Fazendo-se passar por turistas em busca de informação, entraram na embaixada da Bolívia na Cidade do México com uma pequena bomba contida em um aerossol. Em um momento de descuido da secretária, a colocaram debaixo de uma mesa. Uma voz anônima anunciou sua existência. A polícia a retirou, mas ela acabou explodindo em um laboratório nas mãos de um especialista. No dia 26 de novembro de 1967, os responsáveis materiais e intelectuais pelo ato justiceiro foram presos. Passaram seis anos na cadeia.
O mito do Che cresceu então entre os estudantes, sem importar a que corrente política pertencessem. Fragmentada em grupelhos maoístas, trotskistas, espartaquistas, marxistas-leninistas e castristas, a esquerda mexicana respeitou a figura do internacionalista, ainda que não compartilhasse sua visão do processo revolucionário.
Em janeiro de 1968, A Cultura no México, suplemento da revista Siempre!, publicou o prólogo à segunda edição da Obra revolucionária, escrito pelo poeta cubano Roberto Fernández Retamar, intitulado “Herói da América, do mundo”. O sotaque do Che, diz o escritor da Casa das Américas, não era “nem argentino nem mexicano nem cubano nem espanhol”, mas sim uma mistura de todos. Na mesma publicação se difundem dois poemas dedicados ao revolucionário. Um de Mário Benedetti e outro de Julio Cortazar. O cronópio dizia sobre seu conterrâneo: “Eu tive um irmão/ Nunca nos vimos/mas não importava”.
Nesse mesmo ano, Casa das Américas dedicou o número 46 da revista ao Che. Colaboraram em suas páginas, entre outros, Alejo Carpentier, Ítalo Calvino, Angel Rama e Luis Cardoza y Aragon. Muitos desses artigos foram amplamente reproduzidos no México.
Quando o movimento estudantil-popular de 1968 estourou, os jovens tomaram as ruas gritando “Che, Che, Che Guevara/ Díaz Ordaz é um filho da puta” e “Criar um, dois, três, muitos Vietnãs”. Junto com Ho Chi Minh, Guevara foi um dos revolucionários estrangeiros que reivindicaram a revolta sem ambiguidade alguma. Ao concluir a marcha de 27 de abril, foram colocados retratos do guerrilheiro na fachada do Palácio Nacional, enquanto a bandeira rubro-negra tremulava no mastro monumental do Zócalo. O auditório Justo Sierra da Faculdade de Filosofia foi rebatizado como Che Guevara. Desde então, sua imagem tem sido um emblema recorrente entre os estudantes que tomam ruas e ocupam praças públicas.
Aqueles que, como modernos narodnikis, deram continuidade a suas aspirações de mudança indo viver e trabalhar no campo, colônias populares e fábricas, batizaram seus grupos, organizações e bairros que nasceram da luta com o nome de Che Guevara. O mesmo fizeram estudantes com seus comitês de luta e casas.
Em fevereiro de 1968 apareceu o primeiro número da revista Por quê?, dirigida pelo polêmico jornalista Mario Menéndez Rodríguez, preso em fevereiro de 1970 sob a acusação de integrar o grupo próximo ao guerrilheiro Genaro Vázquez Rojas. No final do ano seguinte, ele se exilou em Cuba, como resultado de uma troca de vários prisioneiros políticos pelo reitor da Universidade de Guerrero, sequestrado pela Associação Nacional Revolucionária. Ao longo de 324 números, a revista difundiu extensamente materiais sobre a Revolução Cubana e seus dirigentes.
Eduardo del Río, Rius, publicou em 1978 seu livro ABChe, uma biografia do internacionalista que, no estilo clássico do autor, combinava a ilustração com pequenos textos escritos. Ainda que anos mais tarde se tornasse um crítico da experiência cubana, editou ainda Cuba para principiantes, um dos livros mais lidos sobre a revolução na ilha em todo o mundo. Ambos os materiais desempenharam um papel muito importante na divulgação da vida do Che entre um amplo universo de leitores. Distintos artistas e intelectuais encontraram em O socialismo e o homem em Cuba um texto que reivindicava o princípio de autodeterminação dos artistas, ou seja, o princípio da não intervenção dos dirigentes políticos sobre o campo estético. Uma ferramenta de ação nada desprezível em tempos de realismo socialista.
O retrato que olha
A porta de “A Guadalupana”, a clínica do caracol de Oventic onde se atendem enfermos, está flanqueada por uma pintura do Che Guevara e outra de Emiliano Zapata.
Em território zapatista, os índios rebeldes constroem a autonomia sem pedir permissão a ninguém. Com paciência, encarregam-se da educação, do abastecimento, da justiça, da saúde, de projetos agroecológicos. Dali, o revolucionário argentino olha como a semente que semeou há quase meio século germina na laboriosa marcha das formigas que se inspiram em seu exemplo.
A relação do Che com o zapatismo tem uma longa história. Em 1984, dez anos antes do levante armado que os tornou conhecidos no México e no mundo, os rebeldes montaram um acampamento guerrilheiro batizado como Che Guevara. Desde o acampamento, em ondas curtas, escutavam a rádio Havana Cuba.
Com base no levante, nasceram mais de três dezenas de municípios rebeldes, que não são reconhecidos pelo governo, mas que representam as comunidades e suas populações. Com eles surgiu uma nova nomenclatura. Alguns foram batizados com datas históricas do movimento, ou com o nome de personagens-chave na formação da guerrilha ou na história do México popular. Há, com certeza, um município que atende pelo nome de Che Guevara.
A cada 8 de outubro, Dia do Guerrilheiro Heróico, as comunidades autônomas celebram a seu modo o comandante caído. Há bailes, músicas de marimba e palavras. Os discursos lembram, sobretudo, a dimensão moral do médico revolucionário, seu compromisso, sua postura de estar onde tinha que estar. Nos acampamentos, estuda-se sua vida e sua obra. A ética guevarista está presente tanto entre os insurgentes quanto em suas bases de apoio. Não há figura revolucionária que, naquelas latitudes, tenha o tamanho do médico que deixou de sê-lo.
Os zapatistas asseguram que sua consigna de “Para todos tudo, nada para nós” é um princípio ético que tomaram do reconhecimento e da ascendência ética proveniente do Che. Reivindicam fazer parte, não exclusiva, de sua herança de rebeldia, de sua aspiração por um mundo melhor, de seu desejo de um ser humano melhor e da necessidade de lutar para construir esse mundo e para se converter em um homem melhor.
“Cuba – disse o subcomandante Marcos – não era, para as comunidades que depois seriam zapatistas, um país estrangeiro. Era, é, um povo que levantava, e levanta, a dignidade como só a levantam os de baixo, ou seja, com decisão e firmeza, resmungando entre os dentes o “aqui ninguém se rende”.
Segundo o subcomandante, o Che é parte de uma geração que ainda não termina de nascer. Sua “grande contribuição, sua grande herança, é o valor ético de uma proposta que lhe valeu o reconhecimento não só dos setores de esquerda, mas também da direita e de seus inimigos. É a consequência de uma forma de pensar e de viver até as últimas consequências de acordo com essa forma de pensar”. O Che, disse, “está mais perto de nós do que muitos pensam”.
Che, Zapata e Jaramillo
José de Molina, o cronista musical das lutas populares no México, falecido em 1998, conhecido como “o guerrilheiro da palavra”, rendeu-lhe uma sentida homenagem na canção intitulada “Che Guevara”. No entanto, mais que nesta música, a intensidade com que se vive em nosso país o processo de “naturalização” do Che, de torná-lo nosso, pode ser visto na forma pela qual o público se acostumou a cantar uma de suas canções mais conhecidas e celebradas: o hino que compôs à memória do líder campesino morelense Ruben Jaramillo, o herdeiro de Emiliano Zapata assassinado pelo governo em 1962.
Muitas vezes, tanto nos inúmeros concertos que Molina realizou como nas interpretações de suas obras por outros músicos, a imaginação popular substitui a estrofe original da canção que diz “Três cavaleiros no céu, cavalgavam com muito brio/esses três cavaleiros são:/Deus, Zapata e Jaramillo”, por “Três cavaleiros no céu/cavalgavam com muito brio/esses três cavaleiros são:/Che, Zapata e jaramillo”. Desta maneira, converte o revolucionário argentino-cubano em parte do santoral laico, nacional e popular, quer dizer, torna-o seu.
Apesar de que, como assinala Fernández Retamar, o sotaque de Che não é “nem argentino, nem mexicano, nem cubano, nem espanhol, mas sim uma mescla de todos”, a oitenta anos de seu nascimento, como mostram os zapatistas chiapanecos, ou os sebos do bairro Roma, ou tantos e tantos jovens, o Che continua cavalgando nos céus do México.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
Um comentário:
Olhe esse vídeo que é uma homenagem a Che Guevara, muito linda a música, chega a emocionar.
http://www.tijolaco.com/guevara-44-anos-hasta-siempre/
Abraços
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