sexta-feira, 4 de novembro de 2011

DAVID COIMBRA - Os velhos combatentes

Lembro de quando li certo trecho de Nada de Novo no Front, de Erich Maria Remarque. Lembro do que senti. Estava aboletado num banco de ônibus em algum lugar entre o Centro e a Assis Brasil. Estava DENTRO do livro. O romance se passa nas trincheiras da I Guerra Mundial. O protagonista é um soldado alemão. Em meio a uma batalha, noite cerrada, ele cai em uma cratera de granada. Não consegue ver nada, está apavorado com os relâmpagos das explosões de bombas e os estampidos dos tiros no entorno.


Então, sente que há mais alguém no buraco. Um inimigo! Antes que o outro perceba, ele ataca e o apunhala. As páginas seguintes transcorrem entre os dois. O inimigo agoniza. Ao seu lado, o narrador, aos poucos, divisa-lhe o rosto, aproxima-se dele, se compadece, dá-lhe água do cantil, tenta consolá-lo. Identifica-se com ele. Compreende que são iguais. Quando o inimigo morre, depois de horas, o soldado conversa com o cadáver:

“– Companheiro, não queria matá-lo. Se saltasse novamente aqui para dentro, não o faria, se você também fosse razoável. Mas, antes, você era apenas um pensamento, uma dessas abstrações que povoam meu cérebro e que exigem uma decisão... Foi essa abstração que apunhalei. Mas agora (...) agora vejo sua mulher, seu rosto e o que temos em comum. (...) Perdoe-me, companheiro. Como é que você pôde ser meu inimigo? Se jogássemos fora estas armas e estas fardas, poderia ser meu irmão, como Kat e Albert. Tire vinte anos da minha vida, companheiro, e levante-se... tire mais, porque não sei o que farei deles agora”.

Ainda me dá arrepios. Lembro também das últimas palavras de As Vinhas da Ira, de Steinbeck. Essas as li deitado na cama do meu quarto, na casa da minha mãe. No instante em que o ponto final entrou-me pelas pupilas, fiquei petrificado com a grandiosidade da vida. Era o que Steinbeck conseguira transmitir. A grandiosidade da vida.

Depois de todas as desventuras de uma família de retirantes dos Estados Unidos da recessão, eles chegam a um celeiro e encontram um desconhecido morrendo de fome. A família se inquieta. A mãe, grave, lança um olhar para a filha, Rosa de Sharon, que estava grávida e perdera o nenê pouco antes. Rosa manda que todos saiam do lugar, que a deixem sozinha com o moribundo. Eles saem, silenciosos.

“Por um minuto, Rosa de Sharon permaneceu imóvel no celeiro repleto de murmúrios. Depois ergueu-se pesadamente, enrolando-se mais no cobertor. Lentamente, dirigiu-se ao canto escuro e ficou a olhar o rosto sofredor do desconhecido (...). Então, devagar, deitou-se ao lado dele. O homem esboçou um movimento negativo com a cabeça (...). Rosa de Sharon afastou um dos lados do cobertor, deixando o seio desnudo.

– Tem que ser – falou, aproximando-se mais dele, e puxando-lhe a cabeça para si. – Assim – disse.

Apoiou-lhe a cabeça com a mão e seus dedos afagaram suavemente os cabelos. Ergueu o rosto e seu olhar percorreu o celeiro escuro. Seus lábios se curvaram num sorriso misterioso.”

Relendo agora por pouco não grito de entusiasmo. E percebo a diferença entre esses antigos combatentes e os literatos de hoje. Um Steinbeck, um Remarque falavam da Humanidade. Ainda que a história fosse comovente, não havia autocomiseração.

O personagem servia como condutor da trama, não era ele a própria trama. Hoje, esses Roth e Coetzee, o que eles querem? Eles querem se queixar da vida. O que importa é o que eles sentem. Por isso são tão amados. Porque as pessoas se importam demais com seus próprios sentimentos. A grandiosidade da vida. Perdemos a grandiosidade da vida.

david.coimbra@zerohora.com.br

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