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"Mera
coincidência" (Wag The Dog, 1997)
Em 1940 um
artigo denunciava os chamados “sete dispositivos da Propaganda” e
exortava os leitores a detectá-los por ser uma necessidade
absolutamente vital para não serem enganados. Setenta e três anos
depois esses dispositivos continuam ativos apesar da absoluta
obviedade, exagero, “overacting” e, principalmente, canastrice
dos intérpretes desses verdadeiros scripts que são reeditados sob
uma roupagem moderna e descolada por marqueteiros e publicitários.
Como é possível que depois de tanto tempo esses dispositivos
continuem na linguagem da mídia, da Política, do Marketing e da
Publicidade? E, apesar da explícita natureza fake e não-espontânea
desses dispositivos, continuam a pautar a sociedade e conquistar
corações e mentes. Qual a causa dessa invasão da canastrice na
política e na esfera pública?
Nesse final de
semana um amigo mostrou-me um antigo exemplar de uma revista de artes
gráficas norte-americana chamada “Print - A Quartely Journal of
the Graphic Arts” de setembro de 1940. É muito mais do que uma
revista, pois combina delícias visuais e belíssimas fotografias com
textos pesados e com foco sério.
A revista abre
com um ensaio intitulado “Propaganda e Artes Gráficas – a
influência na opinião pública para a Unidade Nacional” de
William E. Rudge. O texto nos oferece diversos exemplos de “mensagens
positivas”, abordando como o design gráfico pode ser uma
ferramenta para “condicionar o comportamento humano”. Rudge
escreve: “é absolutamente vital distinguir, através da
compreensão e análise, a boa e a má propaganda. Não se deixe
enganar!”.
O
mais notável é uma lista que o autor faz dos “Sete Dispositivos
de Propaganda para os quais devemos estar atentos”.
“Print
- A Quartely Journal of the
Graphic Arts”
de setembro de 1940
Os sete
dispositivos descritos pelo autor parecem ser um tanto óbvios. Mas o
incrível para mim é que, ainda em 2013, esses dispositivos clichês,
exagerados, óbvios, saturados ou “overacting” (essa expressão
inglesa parece ser a que melhor define-os) ainda são as principais
ferramentas de engenharia de opinião pública. Vemos esses
dispositivos o tempo todo sendo usados por políticos, relações
públicas de empresas e “front groups”, reportagens em
telejornais, discursos de porta-vozes de governos e peças
publicitárias. A cada crise, eleições ou intervalos publicitários,
lá encontramos esses mesmos dispositivos, reeditados em formatos
modernos, descolados e antenados.
Por que tais
dispositivos ainda continuam mobilizando pessoas, moldando a opinião
pública e agendando a pauta de discussões das mídias e entre as
pessoas? Como é possível que táticas tão caricatas, antigas e
surradas ainda têm credibilidade e ressonância na sociedade?
Para tentar
encontrar uma resposta, em primeiro lugar vamos enumerar e atualizar
esses sete dispositivos explicados por Rudger.
1. Dispositivo
de Estereotipagem
Incita
as pessoas a criarem um julgamento sem examinar a evidência no qual
o objeto possa estar baseado. Os propagandistas apelam para os nosso
ódio e medo. Isso é feito ao aplicar “xingamentos” a
indivíduos, grupos, nações, raças, políticas, práticas ou
crenças. Em telejornais, qualquer show popular na periferia onde
ocorreu um crime, chacina ou desordem é rotulado como “baile
funk”. Qualquer culto afro-brasileiro é associado a “macumba”.
“Terrorista”, “radicais”, xiitas ou “muçulmanos” são
rótulos genéricos que dão nomes aos nossos temores mais
irracionais. Suas fotografias são caricatas e exageradas – barbas
mal aparadas, olhos esbugalhados ou ferinos, enfim, rostos de “maus”.
A estereotipagem é evidente por si mesma, não são necessárias
provas ou evidências. Por exemplo, em um “baile funk” só pode
ocorrer coisas ruins. Ou pessoas com aquelas caras só podem ser
terroristas.
2.
Dispositivo das Generalidades Brilhantes
Propagandistas
criam a identidade de um programa através de “palavras virtuosas”.
Aqui se encontra o apelo a emoções como amor, generosidade e
amizade. Usam-se palavras genéricas contra as quais ninguém pode se
contra: liberdade, verdade, honra, justiça social, interesse
público, direito ao trabalho, lealdade, progresso, democracia,
defesa da Constituição etc. Se um artista como Bono Vox faz uma
turnê com sua banda U2 pelo “fim da fome e da pobreza na África”,
quem poderá se insurgir contra um desejo tão virtuoso? Afinal, Bono
Vox está fazendo a “sua parte”. Essas palavras sugerem
brilhantes desejos de “homens de boa vontade”. Mas,
concretamente, o “como” realizar tais ideais é colocado entre
parêntesis. Afinal, cada um faz “a sua parte”. Outra pessoa que
ponha em prática. A tática da estereotipagem nos influencia a criar
um julgamento para rejeitar e condenar sem provas. A tática das
generalidades brilhantes nos faz aceitar e aprovar sem nenhum exame
crítico dos possíveis meios para alcançar o ideal divulgado.
3.
Dispositivo de Transferência
Propagandistas
transferem algum tipo de autoridade, sanção ou prestígio de alguma
coisa que nós respeitamos ou reverenciamos para algum programa que
querem que aceitemos. Alguém se torna “presidente de honra” de
uma empresa para que transfira seu prestígio ao novo presidente que
o substituirá. Um jovem candidato é fotografado ao lado de uma
lenda da política. Ou um cientista com pesquisas no exterior se
deixa fotografar com a camisa aberta para que vejamos uma outra
verde-amarela para conseguir a sanção nacionalista da opinião
pública. Símbolos são constantemente usados: a cruz, a bandeira,
combinações de cores etc.
4.
Dispositivo do Testemunhal:
Aceitamos
qualquer coisa, de uma patente médica ou um cigarro a um programa de
política pública. O propagandista lança mão de testemunhos. Um
recurso metomínico da parte substituir um todo. Um depoimento de um
só médico, de uma só celebridade ou de um popular garante a
aceitação do programa ou produto. A evidência está na
visibilidade do testemunho. (Visibilidade x fama = Credibilidade).
Essa fórmula resolve o problema lógico de um só exemplar
representar a totalidade de um gênero.
5.
Dispositivo da Pessoa Simples
O
mito da “pessoa simples” é o dispositivo usado por líderes
políticos, homens de negócios, ministros, cientistas ou
celebridades para ganhar nossa confidencia e parecerem “pessoas
como nós”. Candidatos mostram sua devoção com crianças no colo
de potenciais eleitores; um emérito cientista torce por determinado
time de futebol no twitter. À época da ascensão dos Nazistas ao
poder nos anos 1930, a imprensa divulgava fotos de Hitler na sua vida
privada ao lado de seus cães. Na revista “Life” Mussolini posava
em uma foto com seus filhos e netos nessa mesma época.
6.
Dispositivo das "Cartas Empilhadas"
Propagandistas
contam uma única parte da verdade. Mas é como empilhasse cartas
sobre a verdade, de tal maneira que um lado ou fator será mais
enfatizado do que o outro. Dados estatísticos, gráficos e tabelas
nada dizem, a não ser criar uma espiral de interpretações: números
absolutos são tomados como verdade, esquecendo-se dos números
relativos. A inflação caiu, mas por outro lado, podemos dizer que
ela subiu, porém em um ritmo menor... Propagandas de pasta de dentes
são hábeis em contar meias verdades: uma tem “flúor garde”;
outra diz ser “antitártaro”, como qualidades únicas e
exclusivas. Omitem que todas as pastas têm flúor e são
antitártaros.
Uma
variação desse dispositivo é o doublespeak (dupla fala) onde
alterações de palavras podem alterar a resposta emocional do
público. Por exemplo, a utilização do jargão pode contaminar a
compreensão, obscurecendo o verdadeiro significado que seria passado
com palavras diretas. A expressão “artilharia aérea” substitui
a palavra “bomba”. “Defesa” é colocada no lugar de “Guerra”.
Enchentes viram “pontos de alagamento” e quebras em composições
de trem e metrô tornam-se “falhas pontuais no sistema”.
7.
Dispositivo do “Carro de Propaganda”
Esse
dispositivo nos faz seguir a multidão, aquilo que supostamente a
maioria pensa e faz. Ou, pelo menos, o que a gente pensa que a
maioria pensa e faz. O tema aqui é “todos estão fazendo isso”.
Como ninguém quer ser deixado para trás por temer a solidão,
exclusão ou esquecimento, queremos seguir a tendência majoritária.
Está associado ao conceito de “Espiral do Silêncio” de
Elizabeth Noelle-Neumann onde a criação de um “clima de opinião”
pode isolar grupos discordantes até a extinção pela sua
autopercepção do isolamento. “Havaianas: todo mundo usa!”.
Poderíamos responder, “todo mundo quem, cara pálida!” O slogan
quer criar o clima de opinião onde pessoas isoladas, temendo ficarem
de fora da “onda”, embarquem em uma mera percepção psicológica
sem fundamento real, o “carro da propaganda”. Claramente esse
dispositivo baseia-se no medo de ficar excluído e no ódio daqueles
que estejam fora do grupo, da massa, da maioria ou da nação.
A
Canastrice na Propaganda
Lendo
esses sete dispositivos de propaganda é nítido que eles se baseiam
nos instintos mais básicos humanos: medo, ansiedade e sexo – este
último latente no dispositivo do testemunhal onde sex appeal reforça
a conexão retórica entre “celebridade” e causa, programa ou
produto.
Mas
apenas isso não explica a longevidade dessas táticas.
Há
algo na estética de tudo isso que incomoda pela previsibilidade e
canastrice dos atores que representam os scripts elaborados por
publicitários, relações públicas e marqueteiros.
Em
postagem anterior (veja links abaixo) analisávamos o filme “Mera
Coincidência” (Wag The Dog, 1997) onde um presidente concorrendo à
reeleição nos EUA é envolvido em um escândalo sexual. Com a ajuda
de um produtor de Hollywood e um relações públicas cria uma guerra
fictícia com a Albânia como estratégia de desvio da atenção. Um
suposto vídeo real (na verdade produzido em estúdio) é exibido
pelas emissoras de TV: vemos uma jovem albanesa com um gatinho branco
nos braços fugindo de terroristas estupradores em meio ao fogo
cruzado de bombas e incêndios. Tudo muito melodramático, “over”,
kitsch, estereotipado e com o “appeal” e “look” semelhante às
produções medianas de Hollywood e “sitcons” do horário nobre.
Apesar disso, jornalistas e a opinião pública mordem a isca do
suposto vídeo “vazado” como fosse um vídeo documental.
Gerações de
cultura pop visual
moldaram nossa
percepção do real
Fica a questão:
como ninguém percebe a evidente natureza ficcional do vídeo, feito
com recursos estéticos manjadissimos do pior do cinema e TV? A
opinião pública não percebe a natureza “fake” ou “forçada”
destes pseudoeventos porque própria estrutura de percepção do real
já foi alterada anteriormente por décadas de cultura pop: tomar o
real não a partir dele mesmo, mas a partir dos seus simulacros.
Depois de
décadas de cultura pop visual nossa percepção para o real foi
invertida pelo hiperrealismo das imagens: tomamos o real não mais
por ele mesmo, mas a partir de imagens anteriormente feitas dele.
Olhamos nossos filhos a partir das suas fotos e vídeos caseiros,
vamos a pontos turísticos esperando que eles confirmem as fotos dos
folders promocionais do pacote de viagem.
Se observarmos
as fotos de momentos íntimos e afetivos postadas no Facebook
perceberemos um grande número de imagens que reproduzem os clichês
de composição visual dos filmes hollywoodianos – amantes se
beijando tendo o sol poente em contraluz, namorados correndo para se
abraçarem com o mar azul ao fundo etc.
Ou seja, toda a
canastrice dos intérpretes desses dispositivos de propaganda e a
obviedade dos scripts não são percebidos como fakes, forçados ou
não-espontâneos, pois a nossa percepção do real já está há
muito tempo invertida por gerações de vivência em ambientes
midiáticos e, principalmente visuais.
Apesar de toda
obviedade e “overacting” esses sete dispositivos da propaganda
ainda continuam conquistando corações e mentes. A canastrice
dominou a Política.
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