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Artigo meu, originalmente publicado no site da Uninomade em 04-11 sobre o Leilão de Libra
por Hugo Albuquerque
O Leilão do campo petrolífero de Libra, ironicamente no último dia do signo zodiacal homônimo, realizado pelo Governo de Dilma Rousseff, acirrou o debate político brasileiro. Situada na Bacia de Santos, Libra é considerada a estrela da grande reserva petrolífera do Pré-Sal e sua concessão valeu centenas de bilhões, tendo sido arrematada em lance único por um consórcio encabeçado pela estatal Petrobrás e mais alguns tubarões dos negócios petrolíferos -- incluso aí duas estatais chinesas, cujo simbolismo de sua chegada vai além da geopolítica, além da própria Shell, outrora concessionária do campo de Libra, tendo abandonado há poucos anos sob a alegação de que não havia petróleo por lá.
A exemplo dos velhos
leilões de FHC, uma série de ações judiciais choveram contra o
processo licitatório e manifestações, turbinadas pela onda atual,
se impuseram -- tudo isso, com direito a um
forte esquema de repressão montado pelas Forças Armadas em pessoa.
Sérgio Gabrielli, presidente da Petrobrás à época da descoberta
do Pré-Sal, se
opôs ao leilão. Ildo Sauer, ex-diretor da supracitada
petrolífera, foi além e bancou uma ação popular contra o processo
-- sob a alegação de que o
governo brasileiro perderá centenas de bilhões de dólares ao
não realizar, por conta própria, a exploração.
A presidenta Dilma, por
seu turno, comemorou
aquilo que julga um sucesso -- e que alega não se tratar de
privatização. O “mercado”, no seu cantinho, resmungou dizendo
que o resultado ficou “aquém” para conseguir, como se viu
rapidamente, um
novo mecanismo de reajuste dos preços de combustíveis -- o qual
facilitará aumentos, os quais possivelmente teriam seu impacto sobre
o consumo reduzidos por subsídios estatais, isto é, o uso de
dinheiro público para manter o preço praticado abaixo do preço
formal, às custas de um “bolsa investidor”, que nos “salvaria”
de um surto hiperinflacionário decorrente do reajuste da gasolina e
do diesel nas bombas dos postos.
Há certos binarismos
recorrentes na análise da questão: estatismo x mercadismo,
globalismo x nacionalismo, os quais, a rigor não interessam
verdadeiramente a ninguém, salvo aos interessados de sempre. É
preciso pensar além da cortina de fumaça. Antes de mais nada, a
resposta para a sua pergunta é sim: apesar da declaração em rede
nacional em sentido contrário, Dilma de fato promoveu uma
privatização. O que não é novidade nenhuma em seu governo, basta
lembrar dos leilões dos aeroportos, em relação aos quais as
esquerdas fizeram vista grossa ou pouco barulho. Mas privatização
vai muito além da conversa mole de defesa do capital estatal ou
nacional.
Que significa, afinal
de contas, privatizar algo? É, certamente, bem mais do que
transformar algo em “atividade econômica”, vender patrimônio
“público” (estatal, a bem da verdade): trata-se de retirar
um bem comum da esfera coletiva de deliberação para inseri-lo em um
regime despótico, isto é, em um sistema de regras e princípios no
qual uma lógica transcendental determina o que será usado e
desusado, por quem e como. De certa forma, o funcionamento de nossas
velhas empresas estatais, já era uma forma de privatização (ao
menos, avant la lettre), pois instituia uma forma de produção e
circulação alheia às demandas imanentes da coletividade,
simplesmente inalcançável pelos reles mortais (isto é, nós).
Como lembramos,
invocando Agamben, em
outra ocasião, o nascedouro da ordem privada é do mundo
antigo, quando a casa (a oikia de “economia”) era o local por
excelência da produção, na qual um dono (de dominus, ou despotes
na heláde) ordenava servos, escravos e sua própria família de
maneira absolutamente vertical. A ordem pública era exterior à Casa
na qual ocorria a circulação da produção, os contratos, e na qual
os donos, por força das contingências, eram equiparados na forma de
“cidadãos”.
O advento do
Capitalismo marcou uma (con)fusão dos dois espaços na forma da
economia política. Mas público e privado sempre marcaram dois
fatores dialeticamente interligados. A esfera privada só existe
porque a esfera pública lhe autoriza, por meio do estatuto conferido
pelo instituto jurídico do domínio, enquanto a esfera pública se
realiza por meio da existência fática das entidades privadas. Para
lembrar Negri, o que escapa ao público-privado é o comum, isto é,
o reconhecimento do contiguidade imanente entre as casas e a cidade,
a própria plenitude da vida e do desejo.
Os rearranjos da
dialética público-privado que marcam as mudanças no Estado
brasileiro nas últimas décadas, de Capitalismo de Estado para
Capitalismo Neoliberal, são facilmente explicáveis: a introjeção
da noção atual de democracia na máquina estatal local, por força
dos levantes multitudinários brasileiros dos anos 70, trouxeram a
possibilidade da reivindicação de uso comum das empresas estatais,
as quais precisam ser liquidadas para, no âmbito de mercado, estarem
apartadas da “política”, ou da política que desinteressa a
classe dominante. A defesa de um capital estatal e nacional, atende
apenas uma casta de burocratas e\ou uma burguesia nacional. A defesa
de um capital privado e internacional, por seu turno, há de
favorecer outro tipo de matilha. Mas os oprimidos, em uma situação
e na outra, serão sempre os mesmos.
O leilão em questão,
é verdade, trouxe dinheiro rápido e fácil para o Estado
brasileiro, o que servirá para ele financiar, realizando, assim, os
ditâmes de seus credores gerais e, sobretudo, para satisfazer a
particular estirpe dos especuladores da Petrobrás. Em uma política
de boa vizinhança, o desejo dos acionistas de receber mais pelo
combustível será realizado, enquanto preços se manterão estáveis
para os reles mortais graças ao emprego de uma ainda desconhecida
quantia de dinheiro público recompando o valor extra.
Algo há de sobrar para
o investimento no welfare, tão old-fashioned, idealizado pela
esquerda de Estado, mas estaremos mais distantes de qualquer
deliberação sobre os negócios do petróleo -- inclusive sobre seus
usos e desusos como matriz energética, em tempos de esgotamento
ambiental: a pretensa construção do bem-estar social às custas,
ironicamente, de uma fonte de energia suja terá, no entanto,
caminhos mais tortuosos do que se supunha, uma vez que o emprego de
seus recursos econômicos nos serviços públicos será, pelo visto,
mitigada. Por outro lado, a direita partidária talvez deseje até
menos do que isso, inclusive porque o discurso ambiental só entra em
seu léxico à la Bardot, isto é, como uma construção esotérica
na qual da defesa de ursos polares chegamos à suspensão dos
direitos humanos dos muçulmanos globais.
O custo maior do Leilão
de Libra, no entanto, ficará por conta do impacto
simbólico-político, tão incontornável e insustentável que mais
parece uma tentativa deliberada de aprofundar esta crise que já
chega às raias da loucura. A imagem de um grande consenso político,
de uma enorme centro-direita indiferente, garantida à base da
baioneta, edifica-se como a realidade desesperadora de uma geração
inteira de jovens. Indigno e desnecessário para uma presidenta que,
em seus melhores anos, sofreu o que sofreu na pele.
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