buscado nas Blogueiras Negras
por Amanda
Beatriz •
“Sou negra e
estudante de Direito.” Conforme a própria afirmação sugere, a
interlocução que se pretende desenvolver ao longo do texto é a de
construir uma reflexão crítica acerca da condição da mulher negra
inserida no meio universitário. Aqui, em específico, a daquela que
está regularmente inscrita em cursos de bacharelado em Direito.
Deste modo, é possível que, muito legitimamente, vários leitores
se questionem: “Qual a pertinência do texto com a condição da
mulher?” E, ainda, poderão se indagar: “Qual a relação do tema
com o feminismo negro” e “Por que, em particular, a condição
social da mulher negra e estudante de Direito merece tamanho destaque
a ponto de se converter em texto submetido à publicação no
Blogueiras Negras?”.
Antes de abordar a
questão em si, gostaria de registrar que a redação não pretende –
de forma alguma – esgotar o assunto em tela. Dados a complexidade
da matéria e os propósitos didáticos a que se destina o texto, o
objetivo primordial é o de tão somente estimular reflexões
correlatas ao tema apresentado.
Dito isto, a partir de
agora, é viável enfrentar o primeiro degrau da nossa reflexão, o
qual se remete à presença do negro nas universidades. Ao contrário
do que muita gente pensa, o debate em torno da população negra nos
cursos de ensino superior – sejam estas instituições de ensino
público ou privado – vai muito além da questão das cotas, pois
para o senso comum, tudo relacionado ao negro e a faculdade se exaure
neste ponto.
Obviamente, em momento
algum estou dizendo ou quero dar a entender que as cotas não são
relevantes. O que desejo é chamar atenção para o fato de que a
análise do acesso da população preta à educação de terceiro
grau se define a partir de sua compreensão como resultado maduro das
lutas históricas em prol da ocupação de espaços destinados à
produção do saber científico e, portanto, ambientes elitizados e
profundamente excludentes em sua essência.
Transitar em terreno
político outrora restrito à classe privilegiada é consequência da
afirmação dos direitos fundamentais do negro – o qual foi
compulsoriamente, em boa parte de nosso processo histórico,
direcionado à realização de trabalhos braçais que se
caracterizavam por requisitar nenhuma ou pouquíssima competência
intelectiva para sua fiel execução .
Destaco ainda que, em
paralelo à dinâmica histórica evidenciada e em posição
desfavorável ao negro, se organizam todos os demais bloqueios
“invisíveis” e impeditivos a sua formação. Dentre eles, por
exemplo, podemos citar a conjuntura social e econômica, vez que
diversos alunos estudam com muita dificuldade e esforço justamente
por se encontrarem em condição de vulnerabilidade social.
Somado a isto, também
se verifica o contra-ataque do racismo institucional da sociedade
brasileira, identificado em várias ocorrências não-esporádicas e
não-isoladas. A título de exemplo, pontuo os casos mais recentes
como os da aluna Stephanie
Ribeiro, estudante de Arquitetura e Urbanismo na PUC-Campinas e o
de Mônica
Gonçalves, aluna da Faculdade de Saúde Pública da USP. Não é
difícil perceber que o efeito psicológico da violência em que se
constitui o racismo é o mais deletério possível na vida das
pessoas que passam por essa experiência. Ademais, a partir dos
depoimentos das alunas, podemos mensurar nitidamente todo o mal que
essa doença ocasiona na vida de suas vítimas.
Após esta breve
ambientação, já entendo ser oportuno raciocinar em torno de um
universo mais fechado, restringindo daqui por diante, a abrangência
do contexto. O cerne da questão não mais tratará da conjuntura
social relativa ao “ser negra e estudante universitária”, mas
sim, do “ser negra e estudante de Direito”.
A primeira consideração
que desejo tecer, neste segundo degrau, é aquela que vai ao encontro
da atmosfera elitizada e altamente classista que permeia o curso de
Direito. É preciso entender que – em se tratando de curso de nível
superior – o Direito é uma das graduações mais antigas no
Brasil. Uma rápida busca na internet acerca da polêmica no uso da
palavra “doutor” para advogados e toda a argumentação histórica
a favor de sua manutenção (assim como as dos que se manifestam
contra o seu emprego) muito bem corroboram a essência aristocrática
do curso. Ainda nessa esteira, se tiverem curiosidade de verificar a
história dos cursos de ensino superior no país, também comprovarão
facilmente que o bacharelado em ciência jurídica é um dos mais
antigos no país.
O Direito, entre muitas acepções possíveis, pode ser entendido como reflexo da vontade de quem manda. Direito, portanto, seria nesse sentido uma superestrutura desenhada com fins de atendimento aos anseios da classe dominante e, por isso mesmo, excludente e elitista em sua natureza ontológica.
O Direito, entre muitas acepções possíveis, pode ser entendido como reflexo da vontade de quem manda. Direito, portanto, seria nesse sentido uma superestrutura desenhada com fins de atendimento aos anseios da classe dominante e, por isso mesmo, excludente e elitista em sua natureza ontológica.
Muito importante
ressaltar que esta reflexão tudo tem a ver com o ser negra e
estudante de Direito. Você, caro leitor, perguntará: “De que
forma o que já foi dito se relaciona com a mulher negra e as
reivindicações do feminismo negro?”. Eu, de pronto, posso
responder a você: “considerando que o Direito se impõe nos
espaços decisórios como instrumento concretizador de uma vontade, o
sujeito que exerce o uso da habilidade jurídica com fins de
argumentar, sentenciar, condenar e absolver pessoas; tem em suas mãos
o poder decisório”. Historicamente, o manejo da verve forense
sempre foi feito por aqueles que estavam em condição social mais
privilegiada. Assim, mediante este raciocínio, conclui-se que nem o
negro e tampouco a mulher negra, participaram do processo de tomada
das decisões políticas e fundamentais no qual se inscreveu o
Direito na História.
Quando ocorreram as
reivindicações iniciais do feminismo branco cujo objetivo se
assentou em seus primórdios na luta para que mulheres brancas
tivessem o direito de trabalhar, fas mulheres negras já trabalhavam.
Nós trabalhamos desde sempre. Fomos forçadas ao trabalho
compulsório ainda cedo. Mulheres negras ao lado de homens negros
foram os braços e as pernas que ajudaram a construir a economia
deste país.
Além disso, na ocasião
da “libertação dos escravos”, momento em que os negros se viram
completamente desamparados pelo Governo e alijados de chance na
obtenção de emprego, foram as mulheres negras que proveram o
sustento de suas casas por meio de trabalhos domésticos. É por isso
que a mulher negra não luta para ter o direito de trabalhar, pois
isso já nos impuseram a fazer desde sempre. Nossa luta é para que
tenhamos o acesso a espaços monopolizados pela classe mais
privilegiada e dessa forma possamos fazer uso dos instrumentos
acadêmicos que possibilitam a mobilidade social e o engrandecimento
pessoal da mulher negra.
Daí é que se
descortina toda a pertinência da temática, já que é uma conquista
significativa e substanciosa dos pontos de vista político,
histórico, social e pessoal para esta mulher historicamente
oprimida, violentada e explorada, seu ingresso em um curso de nível
superior reconhecidamente elitista assim como o Direito. Já escutei,
inclusive, várias pérolas a respeito disso ao longo da minha
trajetória: “Faculdade de Direito não é coisa para neguinha” e
“Quem nasceu para o trabalho duro não deveria se aventurar em
fazer Direito”…
Eu até entendo (mas
não aceito, é claro!) as observações apontadas, uma vez que ser
mulher, negra, pobre e, ainda por cima, aluna do curso de Direito em
instituição de ensino público federal –por si só – já é uma
tremenda afronta ao orgulho dessa sociedade racista!
E ainda haverá quem
fale: “Amanda Beatriz, que exagero; isso é só pode ser piada de
mau gosto!”. E eu então lhe responderei: “Lamento profundamente,
mas, ainda nos dias de hoje, encontramos pessoas com este tipo de
pensamento. Isso é mais recorrente do que se imagina e só alguns
dos casos extremos de racismo ganham visibilidade nos grandes meios
de comunicação. Os episódios que a gente ouve no noticiário são
apenas a ponta do iceberg”.
Em 1984, Luislinda
Valois Santos, neta de escravos, filha de mãe lavadeira e costureira
e de pai motorneiro de bonde, tornou-se a primeira juíza negra do
Brasil. Proferiu, em 1993, a primeira sentença brasileira contra o
racismo na qual condenou o supermercado Olhe Preço a indenizar a
empregada doméstica Aíla de Jesus, acusada injustamente por furto.
O futuro, por sua vez, se delineou na vida da magistrada Luislinda a
partir de um acontecimento bastante emblemático em sua trajetória
pessoal.
Anos atrás, em uma escola de Salvador, uma menina negra de nove anos não pôde comprar o material de desenho conforme o determinado pelo professor. Para que melhor seja entendido por todos, o episódio ocorreu mais ou menos assim:
Anos atrás, em uma escola de Salvador, uma menina negra de nove anos não pôde comprar o material de desenho conforme o determinado pelo professor. Para que melhor seja entendido por todos, o episódio ocorreu mais ou menos assim:
Professor: – Mais
isso não foi o que eu pedi!
Luislinda: – Bom, isso foi o que meus pais puderam comprar.
Professor: – Menina, se seus pais são tão miseráveis assim, vou lhe dar um conselho: pare de estudar e vá aprender a fazer feijoada na casa da branca. Você será mais feliz.
A garotinha da nossa história correu para o pátio, chorou, enxugou as lágrimas, retornou para sala de aula e disse ao professor:
- Não vou aprender a fazer feijoada na casa da branca. Vou ser juíza e voltar aqui para prender o senhor!
Luislinda: – Bom, isso foi o que meus pais puderam comprar.
Professor: – Menina, se seus pais são tão miseráveis assim, vou lhe dar um conselho: pare de estudar e vá aprender a fazer feijoada na casa da branca. Você será mais feliz.
A garotinha da nossa história correu para o pátio, chorou, enxugou as lágrimas, retornou para sala de aula e disse ao professor:
- Não vou aprender a fazer feijoada na casa da branca. Vou ser juíza e voltar aqui para prender o senhor!
Dito e feito. A
primeira parte da declaração profética, ela cumpriu. Aos 39 anos,
Luislinda formou-se em Direito pela Universidade Católica de
Salvador – UCSAL. Em 2009, A magistrada lançou seu primeiro
livro: “O negro no século XXI”. No ano de 2011, depois de oito
anos de espera e às vésperas de completar 70 anos, foi promovida a
desembargadora titular do Tribunal de Justiça da Bahia. Quando
indagada sobre a existência do racismo no Brasil, em entrevista
concedida à Revista Visão Jurídica, a juíza declarou: “Quem
quiser saber o que é ser negro, fique negro por apenas 24 horas”.
Esta é sua máxima para quem duvida que ocorra discriminação
racial no país.
Já com relação ao
Judiciário, eis algumas considerações importantes de Luislinda:
1) Em 2009, na
reportagem da Revista Visão Jurídica:
- O Judiciário é preconceituoso? Por quê?
- O Judiciário não é preconceituoso, apenas nos seus quadros existem, como em todas as esferas, profissionais preconceituosos.
Vale dizer que o Judiciário brasileiro não tem o histórico de grande número de magistrados negros integrarem seus quadros. A situação fica mais difícil quando constatamos que durante a sua existência, pelo menos que eu saiba, nenhum Tribunal pátrio teve um presidente negro, mas já é perceptível que a situação está mudando até porque o negro está mais unido e lutando pelos seus direitos, sem esquecer suas obrigações e deveres.
- O Judiciário é preconceituoso? Por quê?
- O Judiciário não é preconceituoso, apenas nos seus quadros existem, como em todas as esferas, profissionais preconceituosos.
Vale dizer que o Judiciário brasileiro não tem o histórico de grande número de magistrados negros integrarem seus quadros. A situação fica mais difícil quando constatamos que durante a sua existência, pelo menos que eu saiba, nenhum Tribunal pátrio teve um presidente negro, mas já é perceptível que a situação está mudando até porque o negro está mais unido e lutando pelos seus direitos, sem esquecer suas obrigações e deveres.
Todavia, quero crer que
muito em breve teremos mais negros não apenas ocupando espaços de
execução e apoio mas exercendo cargos de ministros de Estado,
presidentes de Tribunais, governadores, prefeitos, presidentes da
República, senadores, executivos de empresas multinacionais,
procuradores etc., até porque também somos competentes; falta-nos
apenas oportunidade. O Judiciário está mudando. Aqui, ali e
alhures já nos deparamos com magistrados negros (ministros,
desembargadores, juízes) atuando nesse grandioso e indispensável
Poder.
2) No IV Congresso
Estadual dos Servidores do Judiciário, promovido em Porto Alegre, em
2011: “É o Poder menos democrático. Não evolui em termos da
democracia que vivenciamos hoje no Brasil. Há uma orquestração de
inclusão no Brasil, mas isso não aconteceu no Judiciário”.
3) Em entrevista
concedida ao Portal R7 Notícias, em 08/03/2014:
“Nos Tribunais, os cargos de comando são ocupados por homens brancos e de famílias tradicionais e, eu sou negra, pobre, periférica, nordestina, e divorciada. Foi muito difícil pra mim”. O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) determinou que a juíza baiana Luislinda Valois fosse promovida ao cargo de desembargadora do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA). O CNJ utilizou como argumento principal o critério de antiguidade para a concessão da promoção. O relator do caso, Jorge Hélio Chaves de Oliveira, e todos os demais conselheiros decidiram de forma unânime em prol do requerimento.
“Nos Tribunais, os cargos de comando são ocupados por homens brancos e de famílias tradicionais e, eu sou negra, pobre, periférica, nordestina, e divorciada. Foi muito difícil pra mim”. O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) determinou que a juíza baiana Luislinda Valois fosse promovida ao cargo de desembargadora do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA). O CNJ utilizou como argumento principal o critério de antiguidade para a concessão da promoção. O relator do caso, Jorge Hélio Chaves de Oliveira, e todos os demais conselheiros decidiram de forma unânime em prol do requerimento.
“Para ser
desembargadora eu tive que recorrer a um processo junto ao CNJ. É
difícil ser negra neste país, a situação é muito difícil”. Na
sequência, a desembargadora Luislinda Valois ainda disse que para a
mulher conquistar um espaço com visibilidade na sociedade, ela
precisa ousar e lutar pelos seus direitos.
Concluo, então,
mediante a conjuntura esmiuçada ao longo do texto, que em se
tratando da mulher negra e estudante de Direito, é perceptível já
ter havido alguma evolução na inserção desta mulher no bojo
institucional forense. Entretanto, apesar dos passos largos dados na
direção ao empoderamento da mulher negra, ainda assim,
identificamos muita estrada pendente por avançar.
A despeito da dificuldade e dos diversos obstáculos: culturais, sociais, econômicos e políticos que se impõem – sendo todos estes fatores, consequências diretas do andar da carruagem histórica – a mulher negra, a cada dia, luta com afinco para conquistar o seu espaço na sociedade.
A despeito da dificuldade e dos diversos obstáculos: culturais, sociais, econômicos e políticos que se impõem – sendo todos estes fatores, consequências diretas do andar da carruagem histórica – a mulher negra, a cada dia, luta com afinco para conquistar o seu espaço na sociedade.
Embora o Direito possua
– em seus domínios de existência – uma essência subjetiva e
extremamente conservadora, sendo, portanto, bastante refratária a
mudanças; muitas de nós, mulheres negras, temos logrado êxito nos
embates políticos em prol de nossa inserção no arcabouço do
Judiciário.
Por fim, gostaria de
destacar que o grande desafio e principal objetivo é a “conquista”
do nosso lugar nas Escolas de Direito. Desejo faculdades mais
plurais, inclusivas e coloridas. Quero centros de produção do saber
jurídico onde existam muitas Luislindas Valois, Amandas Beatrizes,
Alessandras Gabriellas, Marjores Janis, Márcias Vasconcelos,
Stephanies Ribeiro, Mônicas Gonçalves, Anas, Ritas, Marias e
Franciscas e não apenas um ou outro caso isolado. Desejo ver
empoderadas todas as mulheres negras universitárias e aqui, em
especial, as negras do Direito. Sonho com o futuro próximo em que
mulheres negras sejam respeitadas e protegidas no pleno exercício do
seu direito social à educação.
É estudante de
Direito; negra em construção; mulher em intenso processo de
individuação; humanista por excelência e partidária inveterada de
um mundo em que todas as pessoas, sem distinção, sejam respeitadas
em sua plenitude de autonomia e escolha.
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