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A vida de Tomizo Ishida, fabricante da kataná, a espada dos guerreiros, por Redação Carta Capital
Por Alexandre Aragão
Japão, 1615. Recém-che-ga-do ao poder, o clã dos Tokugawa combate a resistência do clã Toyotomi em uma série de confrontos conhecida como o Cerco de Osaka. No fim de novembro do ano anterior, o jovem samurai Kimura Shigenari comandara os Toyotomi na vitória na batalha de Imafuku. Antes de guerrear novamente, Kimura envia uma carta à amada: “A essa altura, abandonei toda esperança de termos um futuro juntos neste mundo. Eu estarei esperando você no fim da estrada a que chamam morte”. O guerreiro não voltou para casa.
O espírito dos samurais os impele à obstinação: é preciso cumprir sua razão de ser. Assim pensa o imigrante japonês Tomizo Ishida, de 88 anos, o mais velho e último ferreiro no Brasil a produzir katanás, espadas curvadas usadas pelos guerreiros nipônicos. Natural da província de Gunma, Ishida foi trabalhar ainda criança na lavoura de café da Fazenda Aliança, em Mirandópolis, no noroeste paulista. Aprendeu sozinho a lidar com ferro e fogo para forjar os sabres.
Durante os anos 1920, cerca de mil famílias, entre elas a de Ishida, aportaram em Mirandópolis. Apenas em 1935 seria fundada, porém, a comunidade nipônica mais famosa da região, batizada com o sobrenome do fundador, Isamu Yuba, e alicerçada até hoje no mesmo tripé: trabalhar, rezar e cultivar a arte. Ishida estudou com o irmão mais novo de Yuba, no qual via o espírito dos samurais e de quem pegou emprestada a primeira kataná que viu na vida. “Fiquei com ela por dois meses. Passei muito tempo admirando aquela espada. Copiei o formato até ficar idêntico.”
Décadas depois, ao passear pelo bairro paulistano da Liberdade, Ishida veria na vitrine de uma loja a kataná mais feia de todas. Obra de um brasileiro, a disforme espada na vitrine lhe deu o impulso que faltava. “Fiquei com vergonha. Eu, japonês, filho de japoneses, em um bairro japonês, não conseguia encontrar uma kataná (decente).”
Uma história paralela da imigração japonesa marcou a vida do ferreiro. Na mesma época em que a família Ishida chegou ao Brasil e se instalou no Sudeste, outro grupo de imigrantes japoneses desembarcava no meio da Floresta Amazônica, em Parintins. Em 11 de março de 1927, o então governador Efigênio Salles assinava um acordo com o governo do Japão e concedia terras para o cultivo de juta, fibra proveniente da Índia que serve, entre outras finalidades, para fazer sacas de café. Após algumas expedições de reconhecimento, surgiu na década seguinte, em uma área de 78 mil quilômetros quadrados, a Vila Amazônia.
De junho de 1931 a julho de 1937, cerca de 250 alunos da Escola Superior de Colonização, do Japão, desembarcariam no Amazonas. Ficariam conhecidos como koutakuseis, expressão derivada do nome em japonês da instituição de ensino. A Segunda Guerra Mundial mudaria a vida deles. Antes bem-vindos, os japoneses passaram a ser hostilizados por causa da aliança com a Alemanha nazista. Proibidos de fazer reuniões e de falar seu idioma, os -habitantes da Vila Amazônia acabariam despojados de suas terras: a colônia foi desapropriada pelo governo amazonense. A reparação só viria em 2011, um pedido formal de desculpas do estado.
Reconhecido como um dos maiores forjadores de katanás do mundo, mas há um ano sem fazer espadas, Ishida deseja produzir ao menos mais uma. “Quero gravar na lâmina o nome de todos os japoneses da Vila Amazônia”, afirma, enquanto rabisca com o dedo ideogramas imaginários em cima do tampo de pedra da mesa de sua sala. “Pode até ser meu último trabalho.”
O trabalho no campo impediu Ishida de concluir os estudos. “Como imigrante, a gente trabalhava pior que escravo.” Frustrado por não progredir, resolveu deixar Mirandópolis em busca de outras oportunidades. Aos 25 anos, estabeleceu-se em Londrina e conseguiu um emprego como aprendiz de fotógrafo.
Nos fins de semana, viajava ao interior paranaense para registrar casamentos. “Pegava minha moto e ia para os lugares onde não tinha luz elétrica. Conseguia ganhar bem porque nenhum fotógrafo ia até lá.” De volta a Londrina, revelava as fotos e as retocava, aproveitando a habilidade manual inerente: na sala de sua casa, ele exibe com orgulho um retrato, feito a lápis, de um de seus três filhos.
A prole é fruto do casamento de 62 anos com a numeróloga Luzia Misao Ishida, de 85 anos, nascida na região de Yamagata. Eles se conheceram no Paraná. Poucos anos depois, determinado a regressar a São Paulo, Ishida mudou de profissão pela segunda vez na vida: virou relojoeiro e instalou-se em Mairiporã, na região metropolitana. A pedido de um patrício dono de uma relojoaria, tentou consertar algumas peças. “Ele me deu dez relógios. Consertei todos em uma noite.”
O leve derrame sofrido no último ano afetou a noção de profundidade da visão, mas não a memória. Com os olhos amendoados, Ishida mira por cima das lentes espessas dos óculos, a cabeça levemente inclinada. Ato contínuo, coloca a mão esquerda em concha ao lado da orelha, na qual está fixado um aparelho de surdez. A audição foi afetada pelo barulho constante, durante o molde das lâminas.
Na casa que ocupa “um quarteirão”, nas palavras de Luzia, Ishida guarda três espadas. E recorda a primeira fundida para o filho Luiz. “Ele abriu uma indústria e estava passando por dificuldades. Disse: ‘Vamos fazer kataná para te proteger, vai aumentar o lucro’.” Luiz tem atualmente duas fábricas, uma em São Paulo, onde fica exposta a espada, e outra no Amazonas, terra dos koutakuseis.
Japão, 1615. Recém-che-ga-do ao poder, o clã dos Tokugawa combate a resistência do clã Toyotomi em uma série de confrontos conhecida como o Cerco de Osaka. No fim de novembro do ano anterior, o jovem samurai Kimura Shigenari comandara os Toyotomi na vitória na batalha de Imafuku. Antes de guerrear novamente, Kimura envia uma carta à amada: “A essa altura, abandonei toda esperança de termos um futuro juntos neste mundo. Eu estarei esperando você no fim da estrada a que chamam morte”. O guerreiro não voltou para casa.
O espírito dos samurais os impele à obstinação: é preciso cumprir sua razão de ser. Assim pensa o imigrante japonês Tomizo Ishida, de 88 anos, o mais velho e último ferreiro no Brasil a produzir katanás, espadas curvadas usadas pelos guerreiros nipônicos. Natural da província de Gunma, Ishida foi trabalhar ainda criança na lavoura de café da Fazenda Aliança, em Mirandópolis, no noroeste paulista. Aprendeu sozinho a lidar com ferro e fogo para forjar os sabres.
Durante os anos 1920, cerca de mil famílias, entre elas a de Ishida, aportaram em Mirandópolis. Apenas em 1935 seria fundada, porém, a comunidade nipônica mais famosa da região, batizada com o sobrenome do fundador, Isamu Yuba, e alicerçada até hoje no mesmo tripé: trabalhar, rezar e cultivar a arte. Ishida estudou com o irmão mais novo de Yuba, no qual via o espírito dos samurais e de quem pegou emprestada a primeira kataná que viu na vida. “Fiquei com ela por dois meses. Passei muito tempo admirando aquela espada. Copiei o formato até ficar idêntico.”
Décadas depois, ao passear pelo bairro paulistano da Liberdade, Ishida veria na vitrine de uma loja a kataná mais feia de todas. Obra de um brasileiro, a disforme espada na vitrine lhe deu o impulso que faltava. “Fiquei com vergonha. Eu, japonês, filho de japoneses, em um bairro japonês, não conseguia encontrar uma kataná (decente).”
Uma história paralela da imigração japonesa marcou a vida do ferreiro. Na mesma época em que a família Ishida chegou ao Brasil e se instalou no Sudeste, outro grupo de imigrantes japoneses desembarcava no meio da Floresta Amazônica, em Parintins. Em 11 de março de 1927, o então governador Efigênio Salles assinava um acordo com o governo do Japão e concedia terras para o cultivo de juta, fibra proveniente da Índia que serve, entre outras finalidades, para fazer sacas de café. Após algumas expedições de reconhecimento, surgiu na década seguinte, em uma área de 78 mil quilômetros quadrados, a Vila Amazônia.
De junho de 1931 a julho de 1937, cerca de 250 alunos da Escola Superior de Colonização, do Japão, desembarcariam no Amazonas. Ficariam conhecidos como koutakuseis, expressão derivada do nome em japonês da instituição de ensino. A Segunda Guerra Mundial mudaria a vida deles. Antes bem-vindos, os japoneses passaram a ser hostilizados por causa da aliança com a Alemanha nazista. Proibidos de fazer reuniões e de falar seu idioma, os -habitantes da Vila Amazônia acabariam despojados de suas terras: a colônia foi desapropriada pelo governo amazonense. A reparação só viria em 2011, um pedido formal de desculpas do estado.
Reconhecido como um dos maiores forjadores de katanás do mundo, mas há um ano sem fazer espadas, Ishida deseja produzir ao menos mais uma. “Quero gravar na lâmina o nome de todos os japoneses da Vila Amazônia”, afirma, enquanto rabisca com o dedo ideogramas imaginários em cima do tampo de pedra da mesa de sua sala. “Pode até ser meu último trabalho.”
O trabalho no campo impediu Ishida de concluir os estudos. “Como imigrante, a gente trabalhava pior que escravo.” Frustrado por não progredir, resolveu deixar Mirandópolis em busca de outras oportunidades. Aos 25 anos, estabeleceu-se em Londrina e conseguiu um emprego como aprendiz de fotógrafo.
Nos fins de semana, viajava ao interior paranaense para registrar casamentos. “Pegava minha moto e ia para os lugares onde não tinha luz elétrica. Conseguia ganhar bem porque nenhum fotógrafo ia até lá.” De volta a Londrina, revelava as fotos e as retocava, aproveitando a habilidade manual inerente: na sala de sua casa, ele exibe com orgulho um retrato, feito a lápis, de um de seus três filhos.
A prole é fruto do casamento de 62 anos com a numeróloga Luzia Misao Ishida, de 85 anos, nascida na região de Yamagata. Eles se conheceram no Paraná. Poucos anos depois, determinado a regressar a São Paulo, Ishida mudou de profissão pela segunda vez na vida: virou relojoeiro e instalou-se em Mairiporã, na região metropolitana. A pedido de um patrício dono de uma relojoaria, tentou consertar algumas peças. “Ele me deu dez relógios. Consertei todos em uma noite.”
O leve derrame sofrido no último ano afetou a noção de profundidade da visão, mas não a memória. Com os olhos amendoados, Ishida mira por cima das lentes espessas dos óculos, a cabeça levemente inclinada. Ato contínuo, coloca a mão esquerda em concha ao lado da orelha, na qual está fixado um aparelho de surdez. A audição foi afetada pelo barulho constante, durante o molde das lâminas.
Na casa que ocupa “um quarteirão”, nas palavras de Luzia, Ishida guarda três espadas. E recorda a primeira fundida para o filho Luiz. “Ele abriu uma indústria e estava passando por dificuldades. Disse: ‘Vamos fazer kataná para te proteger, vai aumentar o lucro’.” Luiz tem atualmente duas fábricas, uma em São Paulo, onde fica exposta a espada, e outra no Amazonas, terra dos koutakuseis.
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