Buscado Charles Bakalarczk
Espiados e indignados
Jânio Freitas
Vamos fingir que nos sentimos surpresos e indignados. Vamos à ONU
com um protesto
contra a espionagem com que o governo dos Estados Unidos
invadiu mensagens eletrônicas no Brasil. Vamos cobrar do governo americano
explicações sobre a central de espionagem instalada em Brasília pelo combinado
CIA-NSA.
Faz parte da boa educação cívica mostrar-se surpreso e indignado. Tal
como os franceses do presidente François Hollande, pouco antes de ele se
sujeitar aos EUA e proibir o sobrevoo da França pelo avião em que supunham
estar Edward Snowden, o revelador das espionagens americanas naquele, no nosso
e em numerosos outros países.
Cumprido o ritual da surpresa e da indignação, podemos reconhecer que
estamos entre os países de maior hospitalidade, senão a maior de todas, a
agentes de informação, de subversão antidemocrática e de espionagem dos EUA.
Qualidade nacional de que há provas sem conta. Mas, para ficar só em exemplos
poucos e notórios, lembremos que o golpe de 1964 foi articulado em três frentes
--a militar, a empresarial e a política.
A primeira foi montada pelo adido militar da embaixada dos EUA, general
Vernon Walters, especialista em golpes mandado ao Brasil para mais um.
A segunda foi executada pelo próprio embaixador Lincoln Gordon, junto ao
grande empresariado e a meios de comunicação. E a terceira ficou a cargo de uma
entidade da CIA chamada Ibad, montada e dirigida por um tal Ivan Hasslocher,
deslocado para a Suíça logo depois do golpe.
Antes disso, outro embaixador americano, Adolf Berle Jr., orientou, com
sua equipe, uma conspiração militar para derrubada de Getúlio.
Repórteres americanos como John Gerassi e ex-agentes da CIA como Phillip
Agee, entre muitos outros, publicaram artigos, reportagens e livros sobre a
atividade de agentes na América Latina e, em particular, no Brasil. Foram muito
pouco publicados aqui.
Não se esperariam atitudes, contra essa liberdade de invasão da CIA, por
parte dos seus aliados-beneficiários brasileiros, fossem ainda conspiradores ou
já governo. Mesmo os alvos da ação, porém, jamais usaram dos seus poderes
legais para contê-la. Todo o governo Jango sabia das atividades de Gordon e de
Walters. Em Pernambuco e em Goiás foram identificados agentes insuflando
lavradores. O governo nada fez. Desde sempre consta da legislação brasileira
que os militares são responsáveis pela soberania nacional. Nenhum dos seus
chefes se moveu contra as violações praticadas pelos americanos.
Mais recentemente, a criação do Sivam (Sistema de Vigilância da
Amazônia) foi entregue à Raytheon, empresa que presta serviços ao Departamento
de Defesa (nome do departamento que superintende o planejamento e a execução
dos ataques militares e invasões de países pelos EUA). A concorrência foi tão
limpa, que a precedeu até a invasão dos escritórios da então Thomson no Rio,
multinacional francesa que era a mais provável vencedora e teve todos os seus
estudos e projetos roubados.
Declarada "vencedora" a Raytheon, Fernando Henrique telefonou
ao presidente Bill Clinton para informá-lo a respeito. Depois explicaria o resultado
e o telefonema: "O Clinton pediu pela Raytheon...".
Desde então, todos os dados sobre espaço aéreo, solo e subsolo da
Amazônia são transmitidos, em rede e equipamentos criados pela Raytheon, para a
central do Sivam. Se você quiser, pode acreditar que a transmissão termina aí.
Os espiões e agentes de americanos são íntimos nossos. Mas cumpramos o
ritual de fingir-nos surpresos e indignados com a espionagem agora revelada.
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