Texto do livro 68, a geração que queria mudar o mundo – Relatos, pode ser baixado em http://migre.me/5qSr4. Em Urariano Mota: a história viva dos anos da ditadura tem uma bela apresentação do livro. Vale a leitura. leia ABAIXO
O Golpe Não Começou em 1964
Leoncio de Queiroz
Na
República Velha, o voto não era universal nem secreto. Analfabetos e
mulheres não votavam. Não havia urnas onde o voto fosse depositado em um
envelope fechado. O eleitor registrava seu voto em um livro, geralmente
sob a supervisão do cacique local. Além disso, depois de eleitos, os
candidatos tinham de passar por um crivo denominado,então, de
“reconhecimento dos poderes”, isto é, podiam ser aceitos ou
“degolados”conforme a conveniência da maioria da Assembleia Legislativa
ou do Congresso eleito. O resultado era uma imbatível oligarquia de
latifundiários – os “coronéis” –, dominada por Minas Gerais e São Paulo,
que se revezavam no poder. Não havia limite à jornada de trabalho, nem
proibição de trabalho infantil, nem estabilidade no trabalho, nem
férias,nem 13º salário, nem indenização trabalhista, nem aposentadoria.
A
revolução de 30 foi o principal marco na História do Brasil depois do
descobrimento. Representou uma transformação sem precedentes, muito mais
significativa do que a Independência ou a Proclamação da República. Com
ela, o coronelismo rural perdeu sua hegemonia e pôde esboçar-se um
início de industrialização. Foi Getúlio Vargas quem criou o Estado
brasileiro como ele existe hoje e lançou as bases ainda vigentes da
democracia burguesa. Embora o voto universal – que inclui os analfabetos
– só tenha sido incorporado na Constituição de 1988, a eleição para a
Assembleia Constituinte, em 1933, foi a primeira realizada com os votos
femininos e por meio de voto secreto, assim como a primeira em que as
mulheres puderam candidatar-se. O Governo do Getúlio criou a Legislação
Trabalhista e a Justiça do Trabalho para garanti-la. Instituiu as
férias, a estabilidade, a jornada de trabalho de oito horas, criou os
institutos de previdência e proibiu o trabalho infantil. Getúlio
nacionalizou o subsolo brasileiro (os recursos minerais) e fundou a
Companhia Vale do Rio Doce, a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e
aFábrica Nacional de Motores (FNM). A construção da CSN e da FNM foi
negociada com o governo de Franklin Roosevelt, que se comprometeu a
fornecer a tecnologia e os financiamentos necessários em troca da adesão
brasileira aos países aliados na Segunda Guerra Mundial e a permissão
para instalar uma base aérea dos Estados Unidos no RioGrande do Norte.
Nem
tudo foram rosas, porém. À esquerda dos revolucionários de 30,
organizados na Aliança Liberal, formou-se uma frente, em torno de um
programa de conteúdo antifascista e antiimperialista, liderada pelos
comunistas e pelos tenentes revoltosos da década de 20, chamada de
Aliança Nacional Libertadora (ANL). Luís Carlos Prestes havia liderado a
coluna de tenentes rebelados, que ficou conhecida como a Coluna Prestes
e que, de 1925 a 1927, percorrera grande extensão do país, pregando
reformas políticas e sociais e dando combate a tropas dos governos de
Artur Bernardes e de Washington Luís, para finalmente retirar-se,
invicta, para o território boliviano. Prestes, que passou a ser chamado
de Cavaleiro da Esperança, teve, no exílio, contato com comunistas
brasileiros e argentinos e passou a estudar o Marxismo. Quando retornou
ao Brasil, já membro do então denominado Partido Comunista do Brasil
(PCB), foi escolhido para a presidência da ANL. O crescimento
vertiginoso deste movimento assustou Getúlio, que o colocou na
ilegalidade. O PCB e parte do movimento tenentista passaram a planejar
uma insurreição popular contra o Governo. Em 1935, ocorreu,
prematuramente, em Natal, um levante detropas do Exército que contou com
o apoio do PCB local e teve grande adesão da população. Os comunistas e
os tenentes sediciosos, apanhados de surpresa, tentaram eclodir a
insurreição. Houve levantes em guarnições do Recife e do Rio de Janeiro,
mas todas essas revoltas foram rapidamente sufocadas. Desencadeou-se, a
seguir, uma grande caça aos comunistas, socialistas e membros da ANL.
Os dirigentes do PCB foram todos presos. Prestes e sua mulher, a alemã
Olga Benário, caíram em março de 1936.
A nódoa
que denigre o Governo de Vargas consiste na perseguição à ANL e nos
maustratos e nas torturas infligidas aos comunistas e tenentes
aprisionados. Terríveis os relatos da tortura sofrida pelo alemão Harry
Berger e sua mulher, Elisa, enviados pela Internacional Comunista para
assessorar a direção do PCB. Preso embaixo de um vão de escada, Berger
ficava dias sem poder dormir, sendo torturado por meio de um arame
enfiado na uretra cuja outra ponta era aquecida até ficar em brasa. Era
tratado como um bicho, o que levou o famoso advogado Sobral Pinto a
requerer, em sua defesa, a aplicação da Lei de Proteção aos Animais.
Harry Berger enlouqueceu na prisão. Prestes passou nove anos em prisão
solitária. O mais hediondo crime do Governo, entretanto, foi deportar a
esposa grávida de Prestes, judia e comunista, entregando-a aos nazistas.
Olga foi executada em um campo de concentração. Leocádia, a mãe de
Prestes conseguiu resgatar e criar a neta – Anita Leocádia. O principal
responsável por todas essas atrocidades foi o chefe de 50 polícia
Filinto Müller, egresso do movimento tenentista. Getúlio, contudo,
poderia ter-se empenhado em poupar a companheira e a filha do adversário
vencido, mas não o fez.
Getúlio, portanto, foi
um protagonista controverso. Se por um lado perseguiu cruelmente os que
estavam à sua esquerda, por outro introduziu reformas profundas, iniciou
a industrialização e criou instituições que se consolidaram na vida
nacional. Tudo sem abalar a hegemonia do capital e do latifúndio.Os
Estados Unidos nunca lhe perdoariam a nacionalização do subsolo, que
antes era concessão da empresa estadunidense Farquhar, nem a criação da
Cia. Siderúrgica Nacional, que conferia relativa auto-suficiência
industrial ao Brasil.
Com o fim daSegunda
Guerra, surgiram duas campanhas antagônicas, ambas pela convocação de
uma Constituinte: uma por eleições sem Getúlio e outra, fortíssima, o
Queremismo, por eleições com Getúlio. Apesar de já haver convocado as
eleições, Getúlio foi deposto, em outubro de 1945, no auge de sua
popularidade, pelos mesmos chefes militares que sempre lhe deram apoio e
participaram de seu Governo: Góes Monteiro e Eurico Dutra. É pura
falácia a versão de que a ditadura de Vargas foi derrubada por um amplo
movimento de retorno à democracia. Getúlio foi removido por seus
ministros, que sempre participaram de suas decisões e que continuaram
dando as cartas. As eleições que se seguiram foram vencidas por Eurico
Dutra, unicamente devido ao apoio que este recebeu de Vargas. São
paradoxos da política brasileira: Getúlio apoiou o general que o depôs
e, anos mais tarde, recebeu o apoio de Prestes, a quem havia perseguido
tão implacavelmente.
Dutra teve um mandato
marcado pelo entreguismo, pela subserviência aos interesses dos Estados
Unidos, pelo desperdício das divisas acumuladas durante a guerra com
importação de Pirex e Cadilacs, pelo arrocho salarial, pela repressão
aos sindicatos e por uma feroz perseguição aos comunistas. Estes, que
haviam sido anistiados no fim do Governo do Getúlio e que puderam
participar das eleições, conquistando uma representação significativa na
Assembleia Constituinte e, inclusive, a maior bancada na Câmara
Municipal do Distrito Federal, foram novamente postos na ilegalidade e
tiveram seus mandatos cassados.
Em 1950, Getúlio
candidatou-se à reeleição. Carlos Lacerda, um ex-comunista recrutado
pela direita, lançava-se como líder do mais histérico golpismo, ao
escrever: “O Sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à
presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar
posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de
governar”.
Getúlio elegeu-se e pôde, mais uma
vez, governar a favor do progresso. Criou a Petrobrás, instituiu a SUMOC
(precursora do Banco Central), debelou o desequilíbrio cambial através
da Instrução 70, limitou a 10% as remessas de lucros das empresas
estrangeiras, e aumentou em 100% o salário mínimo. Tudo isso exaspera a
direita, desatina as classes patronais, enfurece o imperialismo e
enlouquece os militares golpistas. Estes soltam o hidrofóbico Carlos
Lacerda, que dá continuidade a uma campanha difamatória contra o governo
de Getúlio. Ocorre, naquele torvelinho, o atentado contra Carlos
Lacerda em quemorre o major da aeronáutica Rubens Vaz. Embora Getúlio
nada tenha tido a ver com esse fato e a polícia tenha rapidamente
elucidado o crime e prendido os culpados, os ataque a ele e o clima
golpista se acirram cada vez mais. Pressionado a renunciar, Getúlio
prefere o suicídio, em 24 de agosto de 1954, causando, assim, grande
comoção nacional e profunda consternação no seio do povo. O movimento
que articulava a deposição do presidente foi, de um dia para o outro,
abafado por um sentimento geral antigolpista e getulista. O suicídio de
Vargas atrasou em dez anos a tomada do poder tramada pela direita.
Novo
golpe de Estado foi tentado contra a posse dos novos presidente e
vice-presidente eleitos: Juscelino Kubitschek e João Goulart. O êxito
dessa conspiração foi evitado pela decisiva intervenção do Ministro da
Guerra, o general legalista Henrique Lott. Juscelino fez um governo de
conciliação nacional e grande prosperidade. Estimulou o investimento
estrangeiro, que resultou no desabrochar da indústria automobilística
brasileira, construiu Brasília e obteve um elevado ritmo de crescimento
econômico. Realizou ou iniciou grandes obras, como as barragens e usinas
hidrelétricas de Furnas e de Três Marias e a estrada Belém-Brasília. No
entanto, foi também odiado pela direita furibunda que sentia falta da
repressão às lutas populares e sentia-se sufocada no clima de liberdade
existente.
Duas revoltas ocorreram durante esse
período – a de Jacareacanga, em 1956, e a de Aragarças, em 1959. Na
primeira, dias depois da posse de Juscelino, dois majores da Aeronáutica
desertaram, roubaram um avião e tomaram a localidade de Jacareacanga,
no sul do Pará. A rebelião foi debelada em alguns dias, seu principal
chefe foi preso e os demais fugiram para a Bolívia. Pouco depois, foram
todos anistiados por Juscelino e reintegrados ao serviço ativo, sem
sofrerem nenhuma execração raivosa por parte deseus colegas direitistas,
bem ao contrário do que ocorreu anos mais tarde com o capitão Lamarca.
Na segunda, Haroldo Veloso, o líder da primeira, já tenente-coronel,
desertou juntamente com o tenente-coronel João Paulo Burnier e outros
oficiais. Eles furtaram três aviões da aeronáutica e tomaram à força um
avião da Panair, que se constituiu no primeiro sequestro de avião
ocorrido no Brasil. Depois ocuparam a localidade de Aragarças, em Goiás.
A revolta durou 36 horas. Seus líderes fugiram nos aviões para o
Paraguai, Bolívia e Argentina. Posteriormente, foram todos anistiados e
reintegrados a suas carreiras.
Findo o Governo
de Juscelino, as forças populares e nacionalistas, juntamente com
socialistas e comunistas, apresentaram as candidaturas de Lott, para
presidência, e de João Goulart – o Jango –, para a vice-presidência.
Lott, general legalista, cumpridor dos regulamentos, introdutor no
Exército da promoção exclusivamente por mérito segundo a folha de
serviço, católico praticante e nacionalista, era um homem honrado. Era
incapaz de perseguir qualquer de seus inimigos, de direita ou de
esquerda. Durante todo o tempo em que foi Ministro da Guerra, nunca
promoveu nenhum de seus filhos ou genros que seguiam a carreira militar,
mesmo que estes estivessem na vez. Como não fazia promessas, nem se
comprometia a distribuir nem cargos nem verbas em troca de apoio, foi
aos poucos sendo abandonado por aqueles políticos clientelistas que
povoam os partidos brasileiros e controlam os currais eleitorais.
Adstrito apenas ao eleitorado consciente, Lott foi derrotado pelo
candidato da UDN, Jânio Quadros. Este era um político demagogo e
histriônico que ganhou fama de varredor do serviço público. Pode-se
traçar um paralelo entre ele e o Collor, muitos anos mais tarde – o
Caçador de Marajás. É incrível como a História se repete. A direita, na
impossibilidade de usar a submissão aos interesses do capitalismo e do
imperialismo como argumento, levanta sempre o fantasma da corrupção, que
tenta imputar aos governos que lhe caem em desgraça.
Já
que, naquele tempo, as eleições para presidente e para vice-presidente
eram desvinculadas, Jango, que tinha sido Ministro do Trabalho de
Getúlio e possuía forte apoio no movimento sindical, foi eleito para
vice. Da mesma forma que Collor, Jânio não conseguiu terminar o mandato.
Logo no primeiro ano, tentou dar um golpe que lhe saiu pela culatra.
Renunciou para tentar voltar mais forte, mas seu ato foi aceito sem
maiores problemas. Ou com apenas um problema. O vice era o Jango,
inaceitável para a direita reacionária. Tentaram impedir a sua posse,
aproveitaram-se de que ele estava em viagem pelo mundo e se encontrava
na China quando se deu a renúncia. Nesse momento, entrou em ação Leonel
Brizola, governador do Rio Grande do Sul. Brizola era o homem que havia
tido a coragem de encampar a empresa de força e luz de Porto Alegre,
subsidiária da Bond & Share, dos Estados Unidos, pagando segundo seu
valor histórico, como mais tarde fez com subsidiária da ITT que detinha
o controle da telefonia. Depois do golpe militar de 1964, ambas as
empresas foram milionariamente indenizadas pelo governo de Castelo
Branco. Na crise da posse de Jango, Brizola, orientado por Lott, entrou
em contato com o General Machado Lopes e ambos resolveram resistir e
garantir o cumprimento da Constituição. Criou-se, no rádio, a Cadeia da
Legalidade. Jango desembarcou em Porto Alegre. Constituído o impasse e
iminente a guerra civil, fez-se um acordo: Jango tomaria posse, mas o
regime mudaria do presidencialismo para o parlamentarismo. O Brasil teve
três primeiros ministros, enquanto Jango foi presidente
parlamentarista. Depois, realizou-se um plebiscito que decidiu o retorno
ao presidencialismo.
Jango caracterizou-se por
preconizar as Reformas de Base: agrária, educacional, fiscal,
administrativa, bancária e urbana. Instituiu o 13º salário, nacionalizou
as telecomunicações e criou a Embratel e fundou a Eletrobrás. Autorizou
a Petrobrás a entrar no mercado nacional de distribuição de derivados
do petróleo, antes restrito às empresas estrangeiras.
Lançou
uma Campanha Nacional de Alfabetização, baseada no método criado por
Paulo Freire, com o objetivo de erradicar o analfabetismo no Brasil.
Esse Governo progressista, nacionalista e de elevada preocupação social,
despertou a ira da direita raivosa e do capitalismo internacional.
Essas forças retrógradas aproveitaram o clima de rebeldia existente no
meio dos sargentos e marinheiros para acirrar a reação da oficialidade
ao “clima de indisciplina” e conseguir a adesão de setores vacilantes
das forças armadas.
Com o apoio decisivo dos
serviços de inteligência dos Estados Unidos, levaram a cabo o golpe de
Estado que foi, ironicamente, apelidado, pelo inesquecível humorista
Sérgio Porto, de “Revolução Redentora”.
Iniciou-se um trágico período da História do Brasil.
PUXADINHO DO JADER
BUSCADO NO PORTAL VERMELHO
O livro “68 a geração que queria mudar o mundo” é um calhamaço
de 690 páginas que, em vez de assustar pelo peso e volume, deixa em
toda a gente um fascínio. Explico, ou tento explicar. De agora em
diante, ele será um volume de consulta obrigatória, para que não se
cometam mais tantos atentados à história e à verossimilhança em
telenovelas, peças e filmes no Brasil, quando o assunto for ditadura.
Organizado por Eliete Ferrer,
editado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, no livro
participam 100 autores em 170 relatos. Em mensagem coletiva no grupo da
internet “os amigos de 68”, Eliete informa que nele se encontram
“histórias reais ocorridas desde 1964 até a abertura política - nas
reuniões, na militância, nas manifestações, nas discussões, na prisão,
nas ações armadas ou não, nos treinamentos, na clandestinidade, no
Brasil ou no exterior, no exílio. O diferencial do nosso livro
caracteriza-se pela revelação do lado humano e afetivo daqueles que não
aceitaram a prepotência do Golpe de 64, concebido e engendrado nos
Estados Unidos”.
De fato, se em alguns relatos individuais as angústias e o heroísmo de militantes socialistas nem sempre se acham realçados, na maioria dos textos e no seu quadro geral se depreende uma história rica da vida de jovens, de homens e mulheres na última ditadura, que, setores à direita queiram ou não, está na agenda do mundo político do Brasil. O livro vem numa luta que exige resposta da civilização brasileira aos assassinatos até hoje encobertos. Mais precisamente, na batalha incansável dos familiares dos mortos que continuam a busca dos corpos dos filhos, pais e irmãos. “68 a geração que queria mudar o mundo” é parte ativa da consciência do país que deseja uma punição exemplar para crimes contra a humanidade, que são imprescritíveis por todas as convenções internacionais do Direito.
O melhor e mais agradável em “68 a geração que queria mudar o mundo” é que ele não é um volume de teses. Em seu conjunto lêem-se relatos plenos de frescor, isso quer dizer, de sangue vivo, da hora, recuperado com o frescor da memória. É um livro necessário, porque nele estão as chamadas fontes primárias, as pessoas fora dos arquivos, contando o que viveram, penaram ou mesmo imaginaram nos anos do terror da ditadura brasileira. Delas vêm os documentos primários da luta dos malditos anos. É um livro urgente, para ser lido e divulgado.
Nele hão de se debruçar historiadores, roteiristas, cineastas, teatrólogos e jovens de todo o gênero e escolas para que compreendam o mundo que ainda lhes é desconhecido, de pessoas iguais a eles, que viveram, morreram ou escaparam por um triz, em situação-limite. São relatos da vida clandestina, de acontecimentos inimagináveis de “expropriações revolucionárias”, ou como a repressão as chamava, de assaltos a bancos por terroristas. Histórias de treinamento de guerrilha no Brasil, um documento vivo e inédito, e de amor, do amor que sobrevivia entre as porradas e tensões.
O curioso, para muitos, é que nele há também lugar para o humor, pois que os tempos eram duríssimos, mas os homens além do terror e crimes sofridos, também possuíam ou procuravam motivos para rir. Como neste caso, digno de Stanislaw Ponte Preta, o grande humorista que desmontou o ridículo da ditadura brasileira. Copio trecho do depoimento de Emílio Myra e Lopez:
“Um colega seu de ofício (do advogado Lino Ventura) defendia uma mulher e durante o seu processo ocorre o fato, verídico e registrado em seus autos. O advogado de sua defesa inquire o sargento, sua testemunha de acusação.
- Senhor sargento, por que o senhor acusa minha cliente de ser subversiva?
- Pelo material apreendido em sua casa – responde.
- Mas, especificamente, que material?
- Umas cartas...
O advogado prossegue.
- Sargento, seriam estas castas, às quais se refere?
- Sim, senhor, são estas cartas.
- Mas sargento, estas cartas estão escritas em idioma francês, o senhor tem conhecimento do idioma francês?
- Não senhor – responde o sargento para espanto e risos no plenário.
Insiste o advogado.
- Senhor sargento, se o senhor não conhece o idioma francês, como pode, por estas cartas, acusar minha cliente de ser subversiva?
- Mas é claro – prossegue convicto o sargento – eu li nas entrelinhas”.
Há outros, muitos outras histórias, casos, depoimentos, poemas, entre o drama, o trágico e a comédia. Há pelo menos 169 outros relatos. Mas tenham pena deste digitador. Leiam o livro.
Urariano Mota: a história viva dos anos da ditadura
O livro “68 a geração que queria mudar o mundo” é um calhamaço
de 690 páginas que, em vez de assustar pelo peso e volume, deixa em
toda a gente um fascínio. Explico, ou tento explicar. De agora em
diante, ele será um volume de consulta obrigatória, para que não se
cometam mais tantos atentados à história e à verossimilhança em
telenovelas, peças e filmes no Brasil, quando o assunto for ditadura.
Por Urariano Mota
Organizado por Eliete Ferrer,
editado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, no livro
participam 100 autores em 170 relatos. Em mensagem coletiva no grupo da
internet “os amigos de 68”, Eliete informa que nele se encontram
“histórias reais ocorridas desde 1964 até a abertura política - nas
reuniões, na militância, nas manifestações, nas discussões, na prisão,
nas ações armadas ou não, nos treinamentos, na clandestinidade, no
Brasil ou no exterior, no exílio. O diferencial do nosso livro
caracteriza-se pela revelação do lado humano e afetivo daqueles que não
aceitaram a prepotência do Golpe de 64, concebido e engendrado nos
Estados Unidos”. De fato, se em alguns relatos individuais as angústias e o heroísmo de militantes socialistas nem sempre se acham realçados, na maioria dos textos e no seu quadro geral se depreende uma história rica da vida de jovens, de homens e mulheres na última ditadura, que, setores à direita queiram ou não, está na agenda do mundo político do Brasil. O livro vem numa luta que exige resposta da civilização brasileira aos assassinatos até hoje encobertos. Mais precisamente, na batalha incansável dos familiares dos mortos que continuam a busca dos corpos dos filhos, pais e irmãos. “68 a geração que queria mudar o mundo” é parte ativa da consciência do país que deseja uma punição exemplar para crimes contra a humanidade, que são imprescritíveis por todas as convenções internacionais do Direito.
O melhor e mais agradável em “68 a geração que queria mudar o mundo” é que ele não é um volume de teses. Em seu conjunto lêem-se relatos plenos de frescor, isso quer dizer, de sangue vivo, da hora, recuperado com o frescor da memória. É um livro necessário, porque nele estão as chamadas fontes primárias, as pessoas fora dos arquivos, contando o que viveram, penaram ou mesmo imaginaram nos anos do terror da ditadura brasileira. Delas vêm os documentos primários da luta dos malditos anos. É um livro urgente, para ser lido e divulgado.
Nele hão de se debruçar historiadores, roteiristas, cineastas, teatrólogos e jovens de todo o gênero e escolas para que compreendam o mundo que ainda lhes é desconhecido, de pessoas iguais a eles, que viveram, morreram ou escaparam por um triz, em situação-limite. São relatos da vida clandestina, de acontecimentos inimagináveis de “expropriações revolucionárias”, ou como a repressão as chamava, de assaltos a bancos por terroristas. Histórias de treinamento de guerrilha no Brasil, um documento vivo e inédito, e de amor, do amor que sobrevivia entre as porradas e tensões.
O curioso, para muitos, é que nele há também lugar para o humor, pois que os tempos eram duríssimos, mas os homens além do terror e crimes sofridos, também possuíam ou procuravam motivos para rir. Como neste caso, digno de Stanislaw Ponte Preta, o grande humorista que desmontou o ridículo da ditadura brasileira. Copio trecho do depoimento de Emílio Myra e Lopez:
“Um colega seu de ofício (do advogado Lino Ventura) defendia uma mulher e durante o seu processo ocorre o fato, verídico e registrado em seus autos. O advogado de sua defesa inquire o sargento, sua testemunha de acusação.
- Senhor sargento, por que o senhor acusa minha cliente de ser subversiva?
- Pelo material apreendido em sua casa – responde.
- Mas, especificamente, que material?
- Umas cartas...
O advogado prossegue.
- Sargento, seriam estas castas, às quais se refere?
- Sim, senhor, são estas cartas.
- Mas sargento, estas cartas estão escritas em idioma francês, o senhor tem conhecimento do idioma francês?
- Não senhor – responde o sargento para espanto e risos no plenário.
Insiste o advogado.
- Senhor sargento, se o senhor não conhece o idioma francês, como pode, por estas cartas, acusar minha cliente de ser subversiva?
- Mas é claro – prossegue convicto o sargento – eu li nas entrelinhas”.
Há outros, muitos outras histórias, casos, depoimentos, poemas, entre o drama, o trágico e a comédia. Há pelo menos 169 outros relatos. Mas tenham pena deste digitador. Leiam o livro.
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