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Capital
Em um país incapaz de
explicar o passado, torturadores e financiadores da repressão
continuam a distorcer a história e a justificar as barbáries do
regime
por Vladimir Safatle,
Carta
Capital
02/04/2014
A mais brutal de todas
as violências é, sem dúvida, a violência da inexistência. Esta é
uma forma muito pior de extermínio, pois não se trata apenas da
eliminação física. Ela é uma eliminação simbólica, desta que
afirma que nada existiu, que a violência não deixou traços e
indignação. Neste exato momento, o Brasil é vítima, mais uma vez,
dessa forma mais brutal de violência.
Talvez ninguém
esperasse que, em 2014, 50 anos após o golpe militar, estaríamos em
um embate para saber se, no fim das contas, existiu ou não uma
ditadura no País, com todas as suas letras. Era de se esperar que
neste momento histórico estivéssemos a ler cartas abertas das
Forças Armadas com pedidos de perdão por terem protagonizado um dos
momentos mais infames da história brasileira, cartas de desculpas de
grupos empresariais que financiaram fartamente casas de torturas e
operações de crimes contra a humanidade. Todos esses atores não se
veem, no entanto, obrigados a um mínimomea-culpa.
Há de se perguntar
como chegamos a esse ponto. Uma resposta-padrão consiste em dizer
que os setores progressistas da sociedade brasileira não tiveram
força suficiente para impor aos governos exigências de dever de
memória e justiça de transição. A história brasileira recente é,
em larga medida, uma história de transformações abortadas.
Já a luta pela anistia
foi abortada quando o regime militar conseguiu impor sua própria lei
da anistia, que livrava os funcionários de Estado responsáveis por
crimes contra a humanidade, isso enquanto ainda deixava na cadeia
integrantes da luta armada que participaram de assaltos a bancos e
ações com mortes. Àqueles que têm o despudor de afirmar que a lei
da anistia foi fruto de acordo nacional, devemos lembrar que a
votação que aprovou a referida legislação no Congresso Nacional
foi de 206 votos a favor e 201 contrários, sendo os votos favoráveis
saídos todos das fileiras do então partido governista (a Arena).
Faz parte das ditaduras a criação de uma novilíngua, na qual os
termos ganham sentidos contrários. No Brasil, a imposição da sua
vontade por meio da coerção é chamada de “acordo”.
Depois, a luta por
eleições diretas para presidente da República foi abortada em
famosa votação no Congresso, o afastamento de líderes ligados ao
regime militar foi abortado com a elevação de José Sarney à
Presidência do Brasil, seguido de Fernando Collor. Em todos esses
processos não foi a sociedade brasileira que se mostrou fraca, mas o
poder que se demonstrou suficientemente astuto para se perpetuar sob
o manto da transformação. Falamos de uma ditadura que conseguiu
permanecer no governo mesmo depois de seu fim, graças a uma manobra
transformista que alçou o então PFL a fiador da República.
Da mesma forma, as
Forças Armadas conseguiram criar a ilusão de ser um ator que
deveria ser deixado em paz, sob o risco de maiores instabilidades
institucionais. Essa lógica levou os primeiros governos realmente
pós-ditadura (Fernando Henrique Cardoso e Lula) a nunca adotar uma
política efetiva de criminalização da ditadura. Assim, chegamos em
2014 sem um torturador punido, sem um general obrigado a reconhecer a
experiência terrível dos anos de chumbo.
Dentro desse quadro
desolador, o governo Dilma Rousseff resolveu criar uma Comissão da
Verdade, que deve entregar o relatório de suas atividades ainda
neste ano. Composta de alguns nomes de inquestionável valor e
dedicação, indivíduos com largo histórico de defesa dos direitos
humanos e intervenções na mídia em favor de uma política efetiva
de memória, a comissão teve condições mínimas de trabalho.
Dos sete integrantes
iniciais, ela agora funciona com cinco. Mesmo ao levantar novos
dados, principalmente a respeito da repressão no campo e contra
indígenas, ela não conseguiu mobilizar a opinião pública, talvez
por ter preferido não divulgar parcialmente resultados ou
encaminhá-los diretamente às cortes internacionais de Justiça
(pois as cortes brasileiras estão açodadas devido à decisão
canalha do Supremo Tribunal Federal a respeito da perpetuação das
leituras correntes a respeito da lei da anistia). Caso tivesse optado
pela ampla divulgação e enviado os resultados às cortes
internacionais, uma situação jurídica nova teria sido criada e
obrigaria o governo a sair de sua política de minimização de
conflitos. Foi graças a uma intervenção exterior, lembremos, que o
Chile conseguiu, enfim, começar a enfrentar a brutalidade de seu
passado. Se Augusto Pinochet não tivesse sido preso na Inglaterra
por causa de um pedido do juiz espanhol Baltasar Garzón, há de se
imaginar que o Chile estaria em situação muito diferente.
A Comissão da Verdade
brasileira deveria assumir experiências de outras comissões e, ao
menos, desenvolver um procedimento parecido àquele aplicado na
África do Sul. Nesse caso, antigos funcionários
do apartheid tiveram seus crimes perdoados se os
confessassem abertamente diante das vítimas ou familiares das
vítimas, pedindo publicamente perdão. Certamente, no Brasil, algo
dessa natureza teria, neste momento, grande força, certamente muito
maior do que aquela que o procedimento demonstrou na própria África
do Sul. Pois, entre nós, o verdadeiro problema é interromper, de
uma vez por todas, a violência produzida pela tentativa de jogar o
sofrimento social do período militar à condição de inexistência.
Creio ser útil
partilhar um fato pessoal. Depois de escrever um artigo a respeito da
tendência de negação predominante em parte de nossa historiografia
recente, com seu desejo de apagar os traços da ditadura, recebi uma
mensagem singela de alguém que dizia que a ditadura não existiu
para ele, cidadão ordeiro e trabalhador. Ela existiu apenas para os
indivíduos que queriam transformar este país em uma nova União
Soviética. Eu diria que ele tem razão. De fato, a ditadura não
existiu para ele, pois esse senhor, como vários outros, fez parte da
ditadura. Não haveria ditadura sem cidadãos como este, que hoje não
temem em demonstrar claramente suas escolhas.
Não há ditadura sem
um conjunto de “carrascos voluntários”, que, mesmo não
trabalhando diretamente nos aparatos repressivos, atua indiretamente
no suporte e na reprodução das justificativas de suas ações. Há
de se apontar para os carrascos voluntários da ditadura brasileira.
Por isso, o País nunca conseguirá encerrar o legado ditatorial sem
um processo de culpabilização coletiva. Quem votou na Arena foi um
carrasco voluntário da ditadura e há de se tratar tais indivíduos
dessa forma. Muito mais gente deveria estar no banco dos réus. Pois
devemos lembrar, mais uma vez: só há perdão quando há, do outro
lado, reconhecimento do crime. Você não pode perdoar o que não
existiu. Então, se para certas parcelas da população, a ditadura
não existiu, não há razão alguma para perdoá-los. O Brasil segue
e seguirá em conflito, como quem vive uma história em suspenso.
*É professor de
Filosofia da USP e colunista de CartaCapital
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