sexta-feira, 18 de abril de 2014

Sejamos machos: falemos do medo de avião. Por Gabriel García Márquez

buscado no Gilson Sampaio


do Sociaista Morena


Cynara Menezes

(Jorge Amado e Gabo, dois medrosos de avião, em Nice, 1974. Foto:Zélia Gattai)

Gosto de tudo que li de Gabriel García Márquez (1927-2014), dos textos jornalísticos aos romances –principalmente. Recomendo todos. Se você está se iniciando na arte de ler Gabo, aconselho que comece com Crônica de Uma Morte Anunciada. Se você prefere mergulhar de vez em emoções fortes, vá logo de Cem Anos de Solidão, uma obra-prima da literatura. García Márquez contagia com o vírus da fantasia, assim como o brasileiro José Mauro de Vasconcelos, tão maltratado pela crítica, contagia com ternura.

Conheci Cem Anos de Solidão no primeiro ano de faculdade, aos 17. Tive a sorte de, vinda do interior da Bahia, cair numa turma de malucos geniais na Escola de Comunicação da UFBA. Um deles me contou que, enquanto estava lendo o livro febrilmente, de um tirão só, na Residência dos Estudantes (lindo casarão no corredor da Vitória, em Salvador, que a especulação imobiliária adoraria arrancar da Universidade), caiu uma ratazana do teto bem no meio das páginas. Cataploft. Imediatamente comprei Cem Anos de Solidão, e a saga dos Buendia me hipnotizou. É inesquecível.

Mas tem um texto menos ambicioso de García Márquez que me divertiu muito e tampouco consegui esquecê-lo. Li em um exemplar da revista Nossa América, do Memorial da América Latina, em 1991. E me lembro perfeitamente até hoje. Nele aparecem alguns coadjuvantes brasileiros que também sofriam de pavor de voar: Niemeyer, Jorge Amado… Traduzi do texto texto original, publicado pelo jornal espanhol El Pais em 1980. Para curtir já com saudades do nosso colombiano favorito. Gracias, maestro.




Sejamos machos: falemos do medo de avião

Por Gabriel García Márquez

O único medo que nós, latinos, confessamos sem vergonha e até com um certo orgulho machista é o medo de avião. Talvez porque seja um medo diferente, que não existe desde nossas origens, como o medo do escuro ou o próprio medo de que se perceba que sentimos medo. Pelo contrário: o medo de avião é o mais recente de todos, pois só existe a partir do momento que se inventou a ciência de voar, há apenas 77 anos. Eu padeço dele como ninguém, com muita honra, e além disso com uma gratidão imensa, porque graças a ele pude dar a volta ao mundo em 82 horas, a bordo de todo tipo de aviões, e pelo menos dez vezes. Não; ao contrário de outros medos que são atávicos ou congênitos, o de avião se aprende. Lembro com nostalgia os vôos líricos da época do segundo grau, naqueles aviões de bimotores que viajavam entre os pásaros, espantando vacas, assustando as florzinhas amarelas do campo com o vento de suas hélices, e que às vezes se perdiam para sempre entre as nuvens, se espatifavam e era preciso sair à meia-noite buscar suas cinzas do modo mais natural: no lombo de uma mula.

Uma vez, sendo repórter de um jornal de Bogotá, numa época irreal em que todo mundo tinha 20 anos, me mandaram, com o fotógrafo Guillermo Sánchez, perseguir uma má notícia em um daqueles Catalinas anfíbios que tinham sobrado da guerra. Voávamos sobre a selva de Urabá sentados em cima de sacos de vassoura, porque assentos não havia naquele sepulcro voador, nem uma aeromoça de consolação a quem pedir o número do telefone no paraíso, e logo o avião se meteu por onde não era e se extraviou em um aguaceiro bíblico. Não só chovia fora, como também dentro. Agarrando-se a duras penas, o co-piloto nos levou um jornal para que cobríssemos a cabeça e vimos, com assombro, que mal podia falar e que suas mãos tremiam.

Esse dia aprendi algo muito alentador: os pilotos também sentem medo, só que neles, como nos toureiros, não se nota tanto no tremor das mãos quanto nas superstições. Um amigo espanhol –tão temeroso de avião que nunca viajava sentado– descobriu isso numa noite ruim de inverno em que o convidaram a presenciar a decolagem na cabine de comando. Era em Nova York, durante uma tempestade de neve, e a tripulação permaneceu muito serena na cabeça da pista, até que deram a ordem de decolar. Então, como se fosse um requisito técnico imprescindível, todos fizeram o sinal da cruz ao mesmo tempo. Meu amigo, compreendendo que, no fundo da alma, também os pilotos têm medo, perdeu para sempre o medo de avião.

Eu tive uma prova ainda mais sutil voando entre as estrelas sobre o oceano Atlêntico. Falando de tudo, perguntei ao comandante por outro piloto amigo que havia sido meu companheiro de escola. Eu ignorava, claro, que ele havia se espatifado no aeroporto de Tenerife quando tentava aterrissar no meio de uma borrasca. O comandante me contou de outra maneira, mais reveladora:

–Se retirou da companhia faz três anos, nas ilhas Canárias.

No entanto, o bom medo de avião não tem nada a ver com as catástrofes aéreas. Picasso disse muito bem: “Não tenho medo da morte, e sim do avião”. Digo mais: muitos medrosos perderam o medo de avião depois que sobreviveram a um desastre. Eu o contraí como uma infecção incurável voando à meia-noite de Miami a Nova York, em um dos primeiro aviões a jato. O tempo era perfeito e o avião parecia imóvel no céu, levando a seu lado essa estrela solitária que acompanha sempre os bons aviões, e eu a contemplava pela janela com a mesma ternura com que Saint-Exupéry via as fogueiras do deserto do seu avião de alumínio. Então, na lucidez da vigília, tive a consciência da impossibilidade física de um avião se sustentar no ar, e jurei a mim mesmo nunca mais voar.

Cumpri a promessa durante dez anos, até que a vida me ensinou que o verdadeiro medroso de avião não é o que se nega a voar, mas o que aprende a voar com medo. É uma espécie de fascinação. De todos os temerosos célebres que conheço, o único que não voa de jeito nenhum é o arquiteto Oscar Niemeyer. Já o seu compatriota Jorge Amado, que é um timorato aéreo dos grandes, teve a audácia poética de voar em um Concorde de Paris até Nova York, para ali pegar um navio até o Rio de Janeiro. O escritor venezuelano Miguel Otero Silva e o diretor de cinema brasileiro Ruy Guerra, por diferentes caminhos, chegaram à conclusão que a única maneira de combater o medo de avião é voando com medo, e o combatem quase todos os meses. Carlos Fuentes, que não voou durante quinze anos e fazia umas viagens épicas de oito dias, mudando de trens, do México até Nova York, não só voltou a voar como, na semana passada, foi fazer uma conferência na Universidade de Indiana em uma avioneta monomotor. Não há, porém, entre os grandes especialistas do medo de avião, nenhum melhor que dom Luis Buñuel, que aos 80 anos continua voando impávido, mas morto de medo. Para ele, o verdadeiro terror começa quando tudo está perfeito no vôo, e, de repente, aparece o comandante em mangas de camisa e recorre a aeronave em passos lentos, saudando cada um dos passageiros com um sorriso radiante.

Minha mãe não voou mais que duas vezes em sua longa vida. Nunca sentiu medo, mas conhece muito bem o de seus filhos –que são doze–, de modo que mantém sempre uma vela acesa no altar doméstico para proteger a qualquer um de nós que esteja no ar. Sua fé é tão grande, que faz pouco tempo a escavadeira de um de seus filhos –engenheiro civil– caiu numa vala. Minha mãe ouviu falar que o resgate podia custar mais de 100 mil pesos, e disse a meu irmão que não gastasse nem um centavo, pois ela ia acender uma vela para tirar a escavadeira do buraco. Meu irmão a repreendeu: “Só mesmo a senhora para achar que uma vela pode tirar uma escavadeira de uma vala”. Minha mãe, impassível, lhe respondeu:

–Como que não pode tirar, se consegue segurar um avião no ar!



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