buscado no Gilson Sampaio
do Sociaista Morena
Cynara Menezes
Cynara Menezes
(Jorge Amado e Gabo, dois medrosos de avião, em Nice, 1974. Foto:Zélia Gattai)
Gosto
de tudo que li de Gabriel García Márquez (1927-2014), dos textos
jornalísticos aos romances –principalmente. Recomendo todos. Se você
está se iniciando na arte de ler Gabo, aconselho que comece com Crônica de Uma Morte Anunciada. Se você prefere mergulhar de vez em emoções fortes, vá logo de Cem Anos de Solidão,
uma obra-prima da literatura. García Márquez contagia com o vírus da
fantasia, assim como o brasileiro José Mauro de Vasconcelos, tão
maltratado pela crítica, contagia com ternura.
Conheci Cem Anos de Solidão
no primeiro ano de faculdade, aos 17. Tive a sorte de, vinda do
interior da Bahia, cair numa turma de malucos geniais na Escola de
Comunicação da UFBA. Um deles me contou que, enquanto estava lendo o
livro febrilmente, de um tirão só, na Residência dos Estudantes (lindo
casarão no corredor da Vitória, em Salvador, que a especulação
imobiliária adoraria arrancar da Universidade), caiu uma ratazana do
teto bem no meio das páginas. Cataploft. Imediatamente comprei Cem Anos de Solidão, e a saga dos Buendia me hipnotizou. É inesquecível.
Mas
tem um texto menos ambicioso de García Márquez que me divertiu muito e
tampouco consegui esquecê-lo. Li em um exemplar da revista Nossa América,
do Memorial da América Latina, em 1991. E me lembro perfeitamente até
hoje. Nele aparecem alguns coadjuvantes brasileiros que também sofriam
de pavor de voar: Niemeyer, Jorge Amado… Traduzi do texto texto original, publicado pelo jornal espanhol El Pais em 1980. Para curtir já com saudades do nosso colombiano favorito. Gracias, maestro.
Sejamos machos: falemos do medo de avião
Por Gabriel García Márquez
O
único medo que nós, latinos, confessamos sem vergonha e até com um
certo orgulho machista é o medo de avião. Talvez porque seja um medo
diferente, que não existe desde nossas origens, como o medo do escuro ou
o próprio medo de que se perceba que sentimos medo. Pelo contrário: o
medo de avião é o mais recente de todos, pois só existe a partir do
momento que se inventou a ciência de voar, há apenas 77 anos. Eu padeço
dele como ninguém, com muita honra, e além disso com uma gratidão
imensa, porque graças a ele pude dar a volta ao mundo em 82 horas, a
bordo de todo tipo de aviões, e pelo menos dez vezes. Não; ao contrário
de outros medos que são atávicos ou congênitos, o de avião se aprende.
Lembro com nostalgia os vôos líricos da época do segundo grau, naqueles
aviões de bimotores que viajavam entre os pásaros, espantando vacas,
assustando as florzinhas amarelas do campo com o vento de suas hélices, e
que às vezes se perdiam para sempre entre as nuvens, se espatifavam e
era preciso sair à meia-noite buscar suas cinzas do modo mais natural:
no lombo de uma mula.
Uma vez, sendo repórter de
um jornal de Bogotá, numa época irreal em que todo mundo tinha 20 anos,
me mandaram, com o fotógrafo Guillermo Sánchez, perseguir uma má
notícia em um daqueles Catalinas anfíbios que tinham sobrado da guerra.
Voávamos sobre a selva de Urabá sentados em cima de sacos de vassoura,
porque assentos não havia naquele sepulcro voador, nem uma aeromoça de
consolação a quem pedir o número do telefone no paraíso, e logo o avião
se meteu por onde não era e se extraviou em um aguaceiro bíblico. Não só
chovia fora, como também dentro. Agarrando-se a duras penas, o
co-piloto nos levou um jornal para que cobríssemos a cabeça e vimos, com
assombro, que mal podia falar e que suas mãos tremiam.
Esse
dia aprendi algo muito alentador: os pilotos também sentem medo, só que
neles, como nos toureiros, não se nota tanto no tremor das mãos quanto
nas superstições. Um amigo espanhol –tão temeroso de avião que nunca
viajava sentado– descobriu isso numa noite ruim de inverno em que o
convidaram a presenciar a decolagem na cabine de comando. Era em Nova
York, durante uma tempestade de neve, e a tripulação permaneceu muito
serena na cabeça da pista, até que deram a ordem de decolar. Então, como
se fosse um requisito técnico imprescindível, todos fizeram o sinal da
cruz ao mesmo tempo. Meu amigo, compreendendo que, no fundo da alma,
também os pilotos têm medo, perdeu para sempre o medo de avião.
Eu
tive uma prova ainda mais sutil voando entre as estrelas sobre o oceano
Atlêntico. Falando de tudo, perguntei ao comandante por outro piloto
amigo que havia sido meu companheiro de escola. Eu ignorava, claro, que
ele havia se espatifado no aeroporto de Tenerife quando tentava
aterrissar no meio de uma borrasca. O comandante me contou de outra
maneira, mais reveladora:
–Se retirou da companhia faz três anos, nas ilhas Canárias.
No
entanto, o bom medo de avião não tem nada a ver com as catástrofes
aéreas. Picasso disse muito bem: “Não tenho medo da morte, e sim do
avião”. Digo mais: muitos medrosos perderam o medo de avião depois que
sobreviveram a um desastre. Eu o contraí como uma infecção incurável
voando à meia-noite de Miami a Nova York, em um dos primeiro aviões a
jato. O tempo era perfeito e o avião parecia imóvel no céu, levando a
seu lado essa estrela solitária que acompanha sempre os bons aviões, e
eu a contemplava pela janela com a mesma ternura com que Saint-Exupéry
via as fogueiras do deserto do seu avião de alumínio. Então, na lucidez
da vigília, tive a consciência da impossibilidade física de um avião se
sustentar no ar, e jurei a mim mesmo nunca mais voar.
Cumpri
a promessa durante dez anos, até que a vida me ensinou que o verdadeiro
medroso de avião não é o que se nega a voar, mas o que aprende a voar
com medo. É uma espécie de fascinação. De todos os temerosos célebres
que conheço, o único que não voa de jeito nenhum é o arquiteto Oscar
Niemeyer. Já o seu compatriota Jorge Amado, que é um timorato aéreo dos
grandes, teve a audácia poética de voar em um Concorde de Paris até Nova
York, para ali pegar um navio até o Rio de Janeiro. O escritor
venezuelano Miguel Otero Silva e o diretor de cinema brasileiro Ruy
Guerra, por diferentes caminhos, chegaram à conclusão que a única
maneira de combater o medo de avião é voando com medo, e o combatem
quase todos os meses. Carlos Fuentes, que não voou durante quinze anos e
fazia umas viagens épicas de oito dias, mudando de trens, do México até
Nova York, não só voltou a voar como, na semana passada, foi fazer uma
conferência na Universidade de Indiana em uma avioneta monomotor. Não
há, porém, entre os grandes especialistas do medo de avião, nenhum
melhor que dom Luis Buñuel, que aos 80 anos continua voando impávido,
mas morto de medo. Para ele, o verdadeiro terror começa quando tudo está
perfeito no vôo, e, de repente, aparece o comandante em mangas de
camisa e recorre a aeronave em passos lentos, saudando cada um dos
passageiros com um sorriso radiante.
Minha mãe
não voou mais que duas vezes em sua longa vida. Nunca sentiu medo, mas
conhece muito bem o de seus filhos –que são doze–, de modo que mantém
sempre uma vela acesa no altar doméstico para proteger a qualquer um de
nós que esteja no ar. Sua fé é tão grande, que faz pouco tempo a
escavadeira de um de seus filhos –engenheiro civil– caiu numa vala.
Minha mãe ouviu falar que o resgate podia custar mais de 100 mil pesos, e
disse a meu irmão que não gastasse nem um centavo, pois ela ia acender
uma vela para tirar a escavadeira do buraco. Meu irmão a repreendeu: “Só
mesmo a senhora para achar que uma vela pode tirar uma escavadeira de
uma vala”. Minha mãe, impassível, lhe respondeu:
–Como que não pode tirar, se consegue segurar um avião no ar!
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