buscado no Gilson Sampaio
Via Jornal do Brasil
por Mauro Santayana
A Folha de S.Paulo
revelou, ontem, que 22 agentes e policiais militares estiveram, por
vários dias, em treinamento, para atividades “antiterroristas”. O curso
foi ministrado pela Blackwater, hoje Academi, uma organização
“terceirizada” de mercenários, que é conhecida, justamente, por ter
auxiliado os Estados Unidos, em vários países do mundo, em atividades de
terrorismo de Estado.
Ora, nossos agentes e
soldados não têm absolutamente nada a aprender com os EUA a propósito da
“luta contra o terror”. Primeiro, porque não possuímos — como eles, que
a criaram, interessadamente — uma doutrina “antiterrorista”, e também
porque não temos por que adotar uma no futuro. Nem consideramos como
terroristas os povos e grupos que os norte-americanos acusam de
terrorismo, como os iranianos ou os palestinos.
O
Brasil democrático — é duro ter que lembrar isso todo o tempo — não
invade nem rouba territórios alheios, não apoia golpes em terceiros
países, nem possui inimigos no mundo. A não ser, claro, aqueles — como é
o caso justamente dos EUA — que querem voltar aos velhos tempos em que
tinham quase que total domínio sobre o nosso destino. E que para isso
ficam inventando histórias da carochinha para enganar o bando — sempre disponível — de néscios embasbacados, ao longo de anos, pelos seminários de “segurança” estilo Escola das Américas;
tapinhas, nas costas, dos adidos militares “ocidentais”; e pelas séries
policiais de TV e os filmes de espionagem norte-americanos.
É
incompreensível, para não dizer inaceitável — mesmo considerando-se
toda a pressão advinda da oposição e da própria administração pública —
que um governo que se diz nacionalista e de “ centro-esquerda” aceite
“ajuda”, em treinamento, de uma potência hegemônica estrangeira.
E,
menos ainda, que forças brasileiras de segurança sejam “adestradas” por
uma quadrilha de mercenários, pertencentes a uma “empresa” conhecida
pela prática do assassinato e da tortura em países como o Iraque, em
conflito, no qual, o Brasil esteve, desde o início, radicalmente contra a
posição norte-americana.
Afinal — mesmo que justificável fosse esse tipo de “treinamento” — a Blackwater é mais
conhecida por sua estupidez e trapalhadas do que por sua eventual
competência em uma área em que se costuma valorizar mais a inteligência
que a brutalidade e o gatilho. Ela é apenas uma unidade de “seguranças”,
e não uma tropa de elite.
O Brasil não invade nem rouba terras alheias, não apoia golpes em terceiros países, nem possui inimigos
Não
se conhece uma única operação em que a Blackwater tenha detido algum
importante “terrorista”, como são chamados os que se insurgem,
normalmente em seu próprio solo, contra a Otan e os Estados Unidos.Mas
seus homens são sobejamente conhecidos por atirar em pessoas inocentes e
por outras situações que não exigem nenhum tipo de coragem pessoal.
Entre elas, ficou famosa uma simples missão de proteção de um comboio
que levava pessoal do Departamento de Estado para uma reunião com
funcionários da Agência de Desenvolvimento Internacional dos Estados
Unidos, no Iraque, no dia 16 de setembro de 2007.
A
incompetência dos homens da Blackwater Personal Security Detail
transformou uma simples missão de escolta em um tiroteio descontrolado, e
não justificado, contra uma multidão desarmada de civis iraquianos, que
deixou um saldo de 17 mortos e dezenas de feridos, na Praça Nisour, em
Bagdá.
Entre outras falhas de segurança e de
autocontrole e disciplina, um dos assassinos da empresa continuou
atirando nos civis mesmo depois de o fogo ter sido suspenso, e só deixou
de disparar quando um “colega” se aproximou e, apontando a arma para
sua cabeça, ameaçou abatê-lo, se continuasse a fazê-lo.
O
massacre indignou o governo e a população iraquiana, e o episódio foi
determinante para a posterior saída das tropas norte-americanas, e da
própria Blackwater, do país.
Pressionado,
o Departamento de Estado foi obrigado — só então — a baixar uma lei
colocando sob a jurisdição dos tribunais norte-americanos crimes
passíveis de punição cometidos por mercenários de empresas
“terceirizadas”, em território estrangeiro; uma investigação da Câmara
dos Deputados dos EUA determinou que os homens da Blackwater
estavam envolvidos em vários episódios de “uso excessivo de força”, com
mortes, no Iraque, e que em 80% dos casos disparavam sem ter sido
previamente atacados.
O deputado
norte-americano Henry Waxman declarou, após pesquisa, que a controvérsia
sobre a Blackwater era uma infeliz demonstração dos “perigos do
relaxamento excessivo”, na contratação de seguranças privados pelo
sistema de defesa dos Estados Unidos.
No mesmo
ano, a ONU divulgou um estudo, declarando que a contratação de empresas
privadas como a Blackwater não passa de nova forma de encobrir
“atividades mercenárias”, o que é claramente ilegal sob as leis
internacionais.
Os EUA — que se apresentam como
os paladinos da defesa da Lei e da Ordem — não são signatários da
Convenção das Nações Unidas de 1989, que proíbe o uso de mercenários.
Também não aderiram ao protocolo adicional de 1977 à Convenção de
Genebra, que classifica os mercenários como civis “que participam
diretamente de combates, com o intuito de ganhos privados”.
Para
o governo brasileiro, o episódio do treinamento de forças de segurança
nacionais por uma empresa ilegal, aos olhos da legislação internacional,
sediada nos Estados Unidos, é uma vergonha.
Primeiro,
porque, se o governo tinha conhecimento disso no mais alto escalão,
sabia do papelão que estava fazendo junto a parte da opinião pública, e a
parceiros do Brics e da América do Sul. Em segundo lugar, porque se a
decisão foi tomada de forma independente pela “Secretaria de Segurança
para Grandes Eventos” é preciso reforçar, por lei, o conceito, de que a
aceitação de “ajuda” de terceiros países para treinamento de policiais
brasileiros de qualquer escalão ou organização, é assunto de segurança
nacional e deve ser de exclusiva atribuição da Presidência da
República, ouvida a Comissão de Relações Externas, no Congresso.
Não é preciso ser expert
para saber que sob o manto desses programas de “cooperação”, os Estados
Unidos não buscam nada mais do que cooptar — como fizeram no passado —
técnica e ideologicamente nossos agentes e oficiais, para a defesa de
seus interesses e de sua visão de mundo. Com a esperança, até, de obter
apoio ou facilitação, eventualmente, para futuras ações de espionagem,
em território brasileiro.
Para efeito de
comparação, o que não estaria ocorrendo, se, por decisão de uma comissão
qualquer — sem eventual conhecimento do Itamaraty e da Presidência da
República — no lugar de ir para Moyock, na Carolina do Norte, esse pessoal tivesse viajado para um centro de treinamento em Cuba, ou na Rússia?
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