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Durante o regime militar emergiram no Brasil o movimento LGBT
e grupos de contracultura que, mesmo com o AI 5, rompiam com a ordem
binária dos gêneros no espaço público
Por Marcelo Hailer
Nesta semana em que lembramos dos 50 anos do golpe militar que instituiu a ditadura por 21 anos no Brasil, inúmeros atos são realizados, principalmente aqueles que visam pedir justiça para aqueles que tombaram na luta contra o regime militar, muitos deles com seus corpos desaparecidos. Junto a isso, temos o advento da Comissão Nacional da Verdade (CNV) que tem, desde 2012, investigado arquivos do Exército e convocado torturadores para depor. E, recentemente, os membros da Comissão revelaram que vão investigar as perseguições contra a população LGBT durante o período militar. Isto é bom, pois pouco ou nada se sabe a respeito destas pessoas durante os Anos de Chumbo.
Porém, houve sim uma movimentação política dos sujeitos LGBT durante o regime militar e ela se deu nas áreas da arte, do movimento social e estudantil – principalmente nas universidades – e também na área da imprensa com meios alternativos que visavam romper a barreira da imprensa normativa e censurada. O principal exemplo, e muito provavelmente mais conhecido, é o jornal O Lampião de Esquina, fundado por João Silvério Trevisan, Darcy Penteado, Aguinaldo Silva, Peter Fry e João Antônio Mascarenhas.
Em formato tabloide, O Lampião causou furor no seu curto tempo de existência (1978-1981), pois, contra o establishment homossexual à época, o meio utilizava palavras como “bicha” e levou à sua capa figuras como Fernando Gabeira e Lula. Além das divergências editoriais, que se tornaram irreconciliáveis com o passar do tempo, o jornal passou a sofrer boicote das bancas que se recusavam a vender o impresso e também sofrer processos por parte do Estado, que era regido por militares.
Se por um lado, O Lampião de Esquina sobreviveu apenas três anos (mas, levemos em consideração de que ainda vivíamos sob regime militar), a sua rápida existência vai servir como mola propulsora daquilo que ficará conhecido como Movimento Homossexual Brasileiro (MHB). O ativista e escritor João Silvério Trevisan vai organizar o primeiro grupo de ativismo social gay, o Somos – Grupo de Afirmação Homossexual, que, para vários historiadores, marcou época por ser o primeiro grupo de ação política a tratar da questão gay no espaço público e com intervenção social.
Mas, em 1977, ano em que surge o Somos, tanto a esquerda quanto a direita eram hostis à pauta bicha. No lado esquerdista, dizia-se que, com a revolução, as questões de gênero seriam resolvidas e focar nesta pauta tratava-se de um desvio de luta, no caso, a derrubada do capitalismo; no lado dos direitistas, os homossexuais eram vistos com sujeitos “pervertidos” e “anormais”. Mesmo com estas limitações no campo da política clássica, o grupo avançou e influenciou outras pessoas e se organizarem em grupos.
De acordo com Trevisan (2007) há um fato histórico que pode ser considerado crucial para o nascimento do movimento homossexual (hoje LGBT). Trata-se de um debate que aconteceu na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (USP), em 8 de fevereiro, no ano de 1979. Trevisan relata que o auditório estava lotado de jovens militantes da esquerda universitária, mas que também havia um número considerável de bichas e lésbicas. O debate foi tenso, pois, como já colocado, a esquerda ainda não encarava como sério o debate de gênero, então, enquanto os ativistas homossexuais gritavam que tinham o direito de ir para a cama com quem quisessem, os jovens comunistas diziam que a luta de gênero “era coisa de quem não tinha o que fazer” (TREVISAN; 2007).
Após três horas de debate, Trevisan conta (2007) que a sensação era de que o movimento homossexual estava definitivamente nas ruas e que ocupava o espaço que lhe pertencia de fato e que, emocionados, se beijavam em público já sem nenhum pudor ideológico. O racha definitivo entre uma linha mais anarquista e independente dos partidos de esquerda com os grupos ligados às correntes comunistas acontece no 1º de maio, de 1980, quando o movimento sindical organiza um ato no Estádio de Vila Euclides, em São Bernardo. Os grupos na órbita do Somos se dividem entre participar ou não do ato. De um lado, prevalecia a ideia de que o movimento homossexual seria instrumentalizado pelas tendências trotskistas; de outro, havia a ideia de que o movimento gay deveria se integrar à luta trabalhista, visto que, na época, muitos já estavam em torno da fundação do Partido dos Trabalhadores. Não houve acordo, parte foi para o ato e outra não e, este racha ideológico se reflete até hoje nas organizações LGBT.
Rachado ou não, a ascensão do grupo Somos incentivou a criação de outras organizações em várias regiões do Brasil. Portanto, no final dos anos 1970, além do Somos, outros grupos começavam a se articular: Eros – SP, SOMOS Sorocaca – SP, Libertos Guarulhos – SP, Somos – RJ, Auê – RJ, Beijo Livre Brasília – Brasília – DF, Grupo de Afirmação Gay – Caxias – RJ, Grupo 3 Ato – Belo Horizonte – MG. Assim, pode-se dizer que a ditadura chegava ao seu fim e com ele surgia o movimento LGBT.
Rompendo com o binarismo de gênero
Para além do movimento social LGBT que surgiu durante o regime militar no Brasil, há também um outro grupo que vai deixar os generais de cabelos em pé: Dzi Croquettes, trupe performática que vai romper com o binarismo de gênero nos palcos de teatro de São Paulo e Rio de Janeiro. E, ao contrário do que muita gente pensa, o Brasil viveu um “verdadeiro desbunde” durante os anos de 1960 e 1970 (FACCHINI; SIMÕES; 2009).
É fato que, simultaneamente ao surgimento do Dzi Croquetes, há também o grupo Secos e Molhados, que chamou atenção por conta do estilo andrógino de seu vocalista, Ney Matogrosso. Porém, o que vai diferenciar o Dzi do Secos e Molhados é que eles, mais do que chamarem a atenção dos militares e da sociedade, vão criar um estilo de vida e romper com os padrões de masculino e feminino. Como eles próprios diziam, “não eram nem homens, nem mulheres”. O movimento iniciado pelo Dzi será comparado com o movimento Genderfucker, ação desenvolvida nos Estados Unidos durante a década de 1960 e que tinha como ideologia a não representação dos gêneros em suas formas unitárias. Nem machos, nem fêmeas. Corpo.
Os Dzi Croquetes levaram esse ideal ao extremo e iniciaram uma revolução silenciosa que, à época, as “tietes”, como eram conhecidos os fãs que seguiam o grupo, se vestiam igual, ou seja, em plena ditadura homens circulavam de salto alto, calça justa e maquiagem. Porém, não se depilavam, mantinham os pelos e a barba. Por conta disso uma “família” foi construída em torno dos Dzi Croquetes, o que alguns consideram como um “surto dzi croquetteano”. A partir desse enorme sucesso, os militares passaram a monitorar o grupo e não demorou para que todas as suas apresentações fossem censuradas. Sem poder se apresentar, no fim do anos 1970 o grupo se exilou, porém, por uma ironia da vida, o Dzi Croquettes se tornou um fenômeno na Europa.
O ponto de encontro entre os ativistas e os grupos de contracultura na época da ditadura brasileira se dá justamente nesta quebra dos códigos binários de gênero e onde o corpo e o sexo eram entendidos como armas políticas. Porém, quando boa parte dos exilados retornaram ao Brasil já encontraram a cultura do “corpo saudável” disseminada. A “bicha porra louca” já não era legal, pois era associada à Aids, o código será o corpo malhado e a monogamia enquanto regra. Como se vê, se o Brasil não tivesse sofrido um golpe militar que dizimou com todos os grupos de contracultura, talvez hoje não estivéssemos vivendo esse surto machista que assola o país.
Referências:
TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. Rio de Janeiro: Record, 2007.
SIMÕES, Júlio Assis; FACCHINI, Regina. Na trilha do arco-íris: Do movimento homossexual ao LGBT. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009.
GREEN, James N. Além do Carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora UNESP,
2000.
Por Marcelo Hailer
Nesta semana em que lembramos dos 50 anos do golpe militar que instituiu a ditadura por 21 anos no Brasil, inúmeros atos são realizados, principalmente aqueles que visam pedir justiça para aqueles que tombaram na luta contra o regime militar, muitos deles com seus corpos desaparecidos. Junto a isso, temos o advento da Comissão Nacional da Verdade (CNV) que tem, desde 2012, investigado arquivos do Exército e convocado torturadores para depor. E, recentemente, os membros da Comissão revelaram que vão investigar as perseguições contra a população LGBT durante o período militar. Isto é bom, pois pouco ou nada se sabe a respeito destas pessoas durante os Anos de Chumbo.
Porém, houve sim uma movimentação política dos sujeitos LGBT durante o regime militar e ela se deu nas áreas da arte, do movimento social e estudantil – principalmente nas universidades – e também na área da imprensa com meios alternativos que visavam romper a barreira da imprensa normativa e censurada. O principal exemplo, e muito provavelmente mais conhecido, é o jornal O Lampião de Esquina, fundado por João Silvério Trevisan, Darcy Penteado, Aguinaldo Silva, Peter Fry e João Antônio Mascarenhas.
Em formato tabloide, O Lampião causou furor no seu curto tempo de existência (1978-1981), pois, contra o establishment homossexual à época, o meio utilizava palavras como “bicha” e levou à sua capa figuras como Fernando Gabeira e Lula. Além das divergências editoriais, que se tornaram irreconciliáveis com o passar do tempo, o jornal passou a sofrer boicote das bancas que se recusavam a vender o impresso e também sofrer processos por parte do Estado, que era regido por militares.
Se por um lado, O Lampião de Esquina sobreviveu apenas três anos (mas, levemos em consideração de que ainda vivíamos sob regime militar), a sua rápida existência vai servir como mola propulsora daquilo que ficará conhecido como Movimento Homossexual Brasileiro (MHB). O ativista e escritor João Silvério Trevisan vai organizar o primeiro grupo de ativismo social gay, o Somos – Grupo de Afirmação Homossexual, que, para vários historiadores, marcou época por ser o primeiro grupo de ação política a tratar da questão gay no espaço público e com intervenção social.
Mas, em 1977, ano em que surge o Somos, tanto a esquerda quanto a direita eram hostis à pauta bicha. No lado esquerdista, dizia-se que, com a revolução, as questões de gênero seriam resolvidas e focar nesta pauta tratava-se de um desvio de luta, no caso, a derrubada do capitalismo; no lado dos direitistas, os homossexuais eram vistos com sujeitos “pervertidos” e “anormais”. Mesmo com estas limitações no campo da política clássica, o grupo avançou e influenciou outras pessoas e se organizarem em grupos.
De acordo com Trevisan (2007) há um fato histórico que pode ser considerado crucial para o nascimento do movimento homossexual (hoje LGBT). Trata-se de um debate que aconteceu na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (USP), em 8 de fevereiro, no ano de 1979. Trevisan relata que o auditório estava lotado de jovens militantes da esquerda universitária, mas que também havia um número considerável de bichas e lésbicas. O debate foi tenso, pois, como já colocado, a esquerda ainda não encarava como sério o debate de gênero, então, enquanto os ativistas homossexuais gritavam que tinham o direito de ir para a cama com quem quisessem, os jovens comunistas diziam que a luta de gênero “era coisa de quem não tinha o que fazer” (TREVISAN; 2007).
Após três horas de debate, Trevisan conta (2007) que a sensação era de que o movimento homossexual estava definitivamente nas ruas e que ocupava o espaço que lhe pertencia de fato e que, emocionados, se beijavam em público já sem nenhum pudor ideológico. O racha definitivo entre uma linha mais anarquista e independente dos partidos de esquerda com os grupos ligados às correntes comunistas acontece no 1º de maio, de 1980, quando o movimento sindical organiza um ato no Estádio de Vila Euclides, em São Bernardo. Os grupos na órbita do Somos se dividem entre participar ou não do ato. De um lado, prevalecia a ideia de que o movimento homossexual seria instrumentalizado pelas tendências trotskistas; de outro, havia a ideia de que o movimento gay deveria se integrar à luta trabalhista, visto que, na época, muitos já estavam em torno da fundação do Partido dos Trabalhadores. Não houve acordo, parte foi para o ato e outra não e, este racha ideológico se reflete até hoje nas organizações LGBT.
Rachado ou não, a ascensão do grupo Somos incentivou a criação de outras organizações em várias regiões do Brasil. Portanto, no final dos anos 1970, além do Somos, outros grupos começavam a se articular: Eros – SP, SOMOS Sorocaca – SP, Libertos Guarulhos – SP, Somos – RJ, Auê – RJ, Beijo Livre Brasília – Brasília – DF, Grupo de Afirmação Gay – Caxias – RJ, Grupo 3 Ato – Belo Horizonte – MG. Assim, pode-se dizer que a ditadura chegava ao seu fim e com ele surgia o movimento LGBT.
Rompendo com o binarismo de gênero
Para além do movimento social LGBT que surgiu durante o regime militar no Brasil, há também um outro grupo que vai deixar os generais de cabelos em pé: Dzi Croquettes, trupe performática que vai romper com o binarismo de gênero nos palcos de teatro de São Paulo e Rio de Janeiro. E, ao contrário do que muita gente pensa, o Brasil viveu um “verdadeiro desbunde” durante os anos de 1960 e 1970 (FACCHINI; SIMÕES; 2009).
É fato que, simultaneamente ao surgimento do Dzi Croquetes, há também o grupo Secos e Molhados, que chamou atenção por conta do estilo andrógino de seu vocalista, Ney Matogrosso. Porém, o que vai diferenciar o Dzi do Secos e Molhados é que eles, mais do que chamarem a atenção dos militares e da sociedade, vão criar um estilo de vida e romper com os padrões de masculino e feminino. Como eles próprios diziam, “não eram nem homens, nem mulheres”. O movimento iniciado pelo Dzi será comparado com o movimento Genderfucker, ação desenvolvida nos Estados Unidos durante a década de 1960 e que tinha como ideologia a não representação dos gêneros em suas formas unitárias. Nem machos, nem fêmeas. Corpo.
Os Dzi Croquetes levaram esse ideal ao extremo e iniciaram uma revolução silenciosa que, à época, as “tietes”, como eram conhecidos os fãs que seguiam o grupo, se vestiam igual, ou seja, em plena ditadura homens circulavam de salto alto, calça justa e maquiagem. Porém, não se depilavam, mantinham os pelos e a barba. Por conta disso uma “família” foi construída em torno dos Dzi Croquetes, o que alguns consideram como um “surto dzi croquetteano”. A partir desse enorme sucesso, os militares passaram a monitorar o grupo e não demorou para que todas as suas apresentações fossem censuradas. Sem poder se apresentar, no fim do anos 1970 o grupo se exilou, porém, por uma ironia da vida, o Dzi Croquettes se tornou um fenômeno na Europa.
O ponto de encontro entre os ativistas e os grupos de contracultura na época da ditadura brasileira se dá justamente nesta quebra dos códigos binários de gênero e onde o corpo e o sexo eram entendidos como armas políticas. Porém, quando boa parte dos exilados retornaram ao Brasil já encontraram a cultura do “corpo saudável” disseminada. A “bicha porra louca” já não era legal, pois era associada à Aids, o código será o corpo malhado e a monogamia enquanto regra. Como se vê, se o Brasil não tivesse sofrido um golpe militar que dizimou com todos os grupos de contracultura, talvez hoje não estivéssemos vivendo esse surto machista que assola o país.
Referências:
TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. Rio de Janeiro: Record, 2007.
SIMÕES, Júlio Assis; FACCHINI, Regina. Na trilha do arco-íris: Do movimento homossexual ao LGBT. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009.
GREEN, James N. Além do Carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora UNESP,
2000.
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