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Sanguessugado do Boitempo
O humor de Henfil contra quem oprime
Dênis de Moraes*
Para Janio de Freitas
Este
artigo relembra o momento marcante do cartunista Henfil (1944-1988) no
veículo pioneiro da imprensa alternativa dos últimos decênios, o saudoso
semanário Pasquim. Foi lá, em plena ditadura militar, que este
notável artista do traço se projetou nacionalmente viveu uma das fases
mais criativas da carreira. O seu humor debochado, cortante e feroz se
ajustou como uma luva ao espírito indomável de um jornal que desafiava a
cara feia de censores e ditadores e sabia, a cada edição, aquecer
nossas esperanças e utopias. Entre Henfil e Pasquim houve a
junção das forças demolidoras do sarcasmo e da ironia para “oxigenar as
mentes oprimidas pelo pesadelo diuturno da boçalidade ditatorial”, como
magistralmente definiu Janio de Freitas no prefácio de meu livro O rebelde do traço: a vida de Henfil.
Além
do espaço precioso para dar vazão ao inconformismo com as injustiças e
preconceitos sociais, Henfil ressaltava sempre o valor das
transformações de linguagem, de estilo e de conteúdo que o semanário
introduziu na cena jornalística. “O Pasquim foi a Lei Áurea da imprensa”, avaliaria em depoimento a Jorge Ferreira (GAM,
julho de 1976). “O jornal modificou a linguagem; a gente podia escrever
e desenhar de uma maneira muito pessoal – foi essa a chave do negócio –
e muito irreverente. Tínhamos liberdade para usar palavrões, se fosse o
caso, nos textos. O Pasquim ousava na crítica política no
momento em que a imprensa estava toda calada, e fazia crítica de
costumes. Era um exercício muito grande de democracia: ninguém pensava
igual ao outro, ninguém concordava com ninguém (…), houve, inclusive,
grandes paus dentro do próprio jornal.”
Mesmo censurado pelo regime e acossado, até a asfixia, por dificuldades financeiras, o Pasquim
impôs-se pela imaginação incontrolável e por alvos claros: a ditadura, a
classe média moralista, a imprensa reacionária, os coniventes de
plantão. E ainda ocupou o vácuo existente entre a cultura oficial e a
tradição de esquerda, discutindo modos de vida, padrões de comportamento
e até ecologia. A diagramação valorizava ilustrações, desenhos,
caricaturas e montagens fotográficas. As frases no cabeçalho da capa
aturdiam: “Pasquim, ame-o ou deixe-o”, “Um jornal que tem a
coragem de não se definir”, “O papel da grande imprensa: papelão”,
“Imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”.
Henfil começou a destacar-se na galáxia de gênios do Pasquim
(Ziraldo, Jaguar, Millôr Fernandes, Fortuna, entre tantos outros) com
as tiras da dupla de frades dominicanos Baixinho e Cumprido. A série
havia sido publicada originalmente de julho a dezembro de 1964, na
revista Alterosa, em Belo Horizonte, quando o cartunista tinha 20
anos. O diabólico Baixinho arrastava o comedido Cumprido em suas
estripulias nada puritanas. Chutavam latas de lixo pelas ruas; tocavam
campainha nas casas e saíam correndo; cuspiam nos pedestres que passavam
embaixo das árvores em cujos galhos se escondiam.
Os
contornos dos Fradinhos espelhavam um conflito de personalidades que,
na realidade, era do próprio Henfil: o lado careta, carola e
conservador, representado por Cumprido; e o lado revolucionário,
anarquista e utópico, encarnado pelo Baixinho. O primeiro herdado da
formação familiar mineira e católica; o segundo inspirado na pregação
libertária dos dominicanos e agudizado pela consciência de viver numa
sociedade de desigualdades e imposturas.
No Pasquim,
Henfil injetou uma overdose de sadismo no Baixinho, reforçando-lhe a
índole anárquica. A marca indelével era o gesto obsceno da mão esquerda
fechada, formando o punho, e a direita, espalmada, batendo sobre a
esquerda. O efeito sonoro – “top, top, top” – equivalia a uma maneira
pouco ortodoxa de dizer que o outro estava ferrado. Sem abdicar do
hábito dominicano, Baixinho atropelava os mais transcendentes pruridos.
Tirava meleca e grudava no corrimão da escada; colocava casca de banana
para alguém se arrebentar no chão; atraía um esfomeado cãozinho com um
osso e o abatia com um porrete; empesteava um velório com uma essência
fétida para espantar os amigos do morto, esperava uma criança na descida
do escorrega com uma gilete… A cada crueldade, inacreditavelmente
sorria.
Outra etapa culminante de Henfil no Pasquim
foi o Cemitério dos Mortos-Vivos, por ele idealizado no auge da
repressão do governo do general Médici. Nele, o cartunista enterrava,
com sete palmos de desacato e desprezo, personalidades que, a seu juízo,
colaboravam ou simpatizavam com a ditadura, se omitiam politicamente ou
eram porta-vozes do conservadorismo. Nessa espécie de “tribunal da
causa justa”, Henfil pôs a nu cumplicidades, falhas de caráter,
oportunismos de toda ordem e desvios ideológicos. Ele não chegou a
explicitar os critérios para expor determinadas figuras à condenação
ético-política. “Caráter não dá cupim”, era a sua frase favorita ao
exigir máxima coerência das pessoas.
A relação
das celebridades enterradas no Cemitério foi extensa e eclética: os
cantores Wilson Simonal e Don e Ravel; o dramaturgo Nelson Rodrigues; o
sociólogo Gilberto Freyre; os economistas Roberto Campos e Eugênio
Gudin; o ensaísta Gustavo Corção; os escritores Rachel de Queiroz e
Josué Montello; os apresentadores de TV Flávio Cavalcanti, Hebe Camargo e
J. Silvestre; o técnico de futebol Zagalo; os jornalistas David Nasser e
Samuel Wainer; os compositores Sérgio Mendes e Carlos Imperial; o
maestro Erlon Chaves; o humorista José de Vasconcelos; os bispos
direitistas Dom Vicente Scherer e Dom Geraldo Sigaud; o presidente da
Confederação Brasileira de Desportos e depois da Fifa, João Havelange;
parlamentares da Arena, o partido da ditadura; os atores Jece Valadão e
Bibi Ferreira; o conjunto Os Incríveis; o fotógrafo Jean Manzon; o líder
integralista Plínio Salgado; Plíno Corrêa de Oliveira, fundador da
Tradição, Família e Propriedade (TFP); o astro de futebol Pelé; o
empresário da comunicação Adolpho Bloch; “The Globe” (alusão a O Globo), entre outros.
Dentro
e fora do meio literário, houve protestos quando Clarice Lispector
figurou entre os Mortos-Vivos. Henfil teria se excedido ao nivelar a
escritora, sem vínculos com a ditadura, a papa-hóstias de reconhecida
subserviência ao regime. Em depoimento a O Jornal (20/7/73), Henfil tentou justificar o severíssimo (e injusto) castigo imposto à autora de Felicidade clandestina:
“Eu
a coloquei no Cemitério dos Mortos-Vivos porque ela se coloca dentro de
uma redoma de Pequeno Príncipe, para ficar num mundo de flores e de
passarinhos, enquanto Cristo está sendo pregado na cruz. Num momento
como o de hoje, só tenho uma palavra a dizer de uma pessoa que continua
falando de flores: é alienada. Não quero com isso tomar uma atitude
fascista de dizer que ela não pode escrever o que quiser, exercer a arte
pela arte. Mas apenas me reservo o direito de criticar uma pessoa que,
com o recurso que tem, a sensibilidade enorme que tem, se coloca dentro
de uma redoma.”
Clarice, ofendida, fez
chegar ao cartunista a sua contrariedade: “Se eu topasse com o Henfil, a
única coisa que eu lhe diria é: ouça, quando você escrever a meu
respeito, é Clarice com ‘c’, não com dois ‘s’, está bem?”
Outra
inclusão que gerou controvérsias foi a da cantora Elis Regina, após ter
cantado o Hino Nacional no show de abertura da Olimpíada do Exército de
1972. Quarenta e cinco dias depois, Henfil emitiu um sinal de que
havia se arrependido do vitupério – inclusive porque admirava a
intérprete Elis. No número 154, elogiou o novo disco de Elis, com um
resquício de mordacidade: “Fiquem certos de uma coisa: Elis Regina é
melhor que a Elis Regente!” O episódio foi esquecido pelos dois, tanto
que namoraram na década seguinte.
Henfil
edificou jazigos para economistas que se converteram em tecnocratas a
soldo do regime; para arquitetos que se aliaram à especulação
imobiliária; para medicos e advogados que cobravam fortunas dos
clientes; para cientistas que punham os cérebros a serviço da corrida
armamentista.
E o que dizer da repulsa de Henfil ao Festival Internacional da Canção (FIC), promovido anualmente pela TV Globo na passagem dos anos 1960 e 1970? Primeiro, ele achava que o festival era uma “armação” da TV Globo
para desviar a atenção dos desmandos da ditadura. Segundo, que o evento
favorecia a divulgação massiva da música estrangeira, relegando a
música popular brasileira à subalternidade. Henfil considerava adesão
ao sistema qualquer participação no FIC – o que o impedia de considerar,
por exemplo, que cantores e compositores estavam exercendo seu ofício
em evento com similares em vários países, além de prestigiado pelo
grande público. Para tripudiar do “Galo de Ouro”, símbolo do FIC
difundido pela Globo, Henfil inventou o “Urubu de Prata”, conferido a personalidades da MPB, como Pixinguinha e Chico Buarque.
Em
entrevista que me concedeu, o jornalista e escritor Zuenir Ventura
relembrou o choque causado na área cultural com o Cemitério dos
Mortos-Vivos: “Havia uma quase unanimidade em relação a determinadas
pessoas estarem no cemitério, mas em relação a outras, não. Era uma
coisa muito forte e agressiva, até irritante.” Para Zuenir, a
radicalidade das cobranças de Henfil não pode ser vista como uma mera
patrulha, muito menos como uma expressão de ressentimento ou vingança.
“Por trás daquele humorista cáustico e radical, havia em Henfil uma
pessoa amorosa, incapaz de ódios.” O Cemitério dos Mortos-Vivos, no
entender de Zuenir, traduzia “um desesperado, às vezes injusto e
extremado gesto de conclamação à resistência democrática”:
“Henfil
tinha razão ao achar que vivíamos um período em que não dava para você
ficar em cima ou atrás do muro. Era importante, no processo de
reconquista da democracia, a mobilização da sociedade civil e da
intelectualidade. Henfil sabia que era indispensável ter todo mundo que
se opunha à ditadura dentro de um mesmo saudável saco-de-gatos. O que
nos levou à abertura? Foi o fato de que se conseguiu
dividir o país, maniqueisticamente (e tinha que ser assim), entre as
trevas e as luzes, entre o bem e o mal. Hoje, a minha leitura daquele
sectarismo aparente do Henfil leva-me a crer que o Cemitério dos
Mortos-Vivos embutia uma metáfora: quem não está lutando e resistindo
está morrendo ou já morreu. Ele ressaltava essa morte simbólica e nos
dizia: precisamos resistir de alguma maneira.”
O
próprio Henfil, sem conhecê-la, validou a linha interpretativa de
Zuenir Ventura. “Na ditadura, eu acentuava muito a agressividade do
humor. Tínhamos que encontrar um jeito de obrigar as pessoas a
refletirem sobre o que estava acontecendo.” Aqui e ali, o cartunista
cometeu erros de avaliação – mas é indiscutível que muitas de suas
estocadas aclaravam a consciência crítica, expunham mazelas das elites e
classes dominantes e destilavam indignação cívica contra o
colaboracionismo e o adesismo à ditadura. Um humor de combate,
fundamentalmente.
Ele odiava o humor pelo humor e
arremessava dardos contra o que classificava de “a ditadura do riso,
que leva todo mundo a rir de qualquer bobagem”. Em 1985, por exemplo,
torpedeou os humoristas do Casseta e Planeta: “Esse pessoal pensa
que está fazendo humor. Não está. Eles apelam para o besteirol, com
piadas preconceituosas até contra deficientes físicos.”
Para Henfil, o único humor que contribui para o esclarecimento da cidadania é “aquele que dá um soco no fígado de quem oprime”.
Henfil jamais afastou-se do Pasquim.
Reaparecia quando menos se esperava. O jornal seguia em instável
equilíbrio, como se a qualquer minuto pudesse despencar da corda bamba.
Já não pontificava sozinho na imprensa alternativa, pois tinham
aparecido o Opinião, o Movimento e o EX para dividir os leitores progressistas. No Pasquim
Henfil publicou, em capítulos semanais, os relatos dos dois anos em que
viveu em Nova York e da épica viagem à China. Lá criou tipos famosos
como o Delegado Flores (um policial que protegia os oprimidos e reprimia
os corruptos). Em abril de 1976, lançou Ubaldo, o Paranóico, que
refletia os medos coletivos na lúgubre atmosfera de perseguições e
violências praticadas pelo governo do general Geisel contra organizações
de esquerda, notadamente o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e o
Partido Comunista do Brasil (PC do B).
Em 1978,
Henfil reaqueceu as vendas do semanário ao abrir polêmica com os baianos
Caetano Veloso, Gilberto Gil e Glauber Rocha, aos quais acusava de
“alienados” por externarem simpatias, em maior ou menor grau, com a
abertura “lenta, gradual e segura” do general Geisel. Na contenda,
Henfil cunhou a expressão “patrulha odara” como contraponto às
“patrulhas ideológicas”, expressão usada pelo cineasta Cacá Diegues para
definir o que ele considerava equívocos de esquerda patrocinados pelo
sectarismo ideológico. Os patrulheiros odaras exigiam criações
apolíticas e atitudes escapistas.
Nas páginas do Pasquim,
Henfil participou das memoráveis campanhas pela anistia ampla, geral e
irrestrita, pelo restabelecimento das eleições diretas para governadores
e pela convocação da Assembléia Nacional Constituinte. E defendeu a
criação de um partido de esquerda combativo e ético, tendo sido depois
um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), ao lado de seu
amigo Luiz Inácio Lula da Silva e outros companheiros.
A agonia final do Pasquim,
na segunda metade da década de 1980, coincidiu com a doença e a morte
de Henfil, por complicações decorrentes da Aids, depois de contrair o
vírus HIV em transfusões de sangue exigidas por sua condição de
hemofílico. Nos derradeiros anos, o ganha-pão de Henfil vinha das
charges que publicava diariamente em O Globo e O Estado de S. Paulo.
Por ironia, empregos em jornalões que sempre combatera ideologicamente –
e nos quais procurou, a todo custo, preservar os conteúdos críticos de
seus desenhos.
A eventual válvula de escape era o combalido Pasquim,
no qual publicou uma de suas últimas tiras, tão reveladora da genuína
rebeldia que caracteriza seu extraordinário legado. Baixinho e Cumprido
caminham juntos. Cumprido discursa: “Meu papel histórico é estancar o
pus dos sofredores, absorver o sangue dos injustiçados.” Baixinho
vira-lhe as costas, rebatendo: “Isto não é um papel histórico, isto é um
Modess…”
* Este texto é uma versão revista e condensada de capítulo de meu livro O rebelde do traço: a vida de Henfil (José Olympio, 1996).
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