Minha capacidade de ver, sentir deu um pinote com a entrada do computador em minha vida. Este blogue é sem duvida uma canalização para o meu dia a dia dentro do passado e presente do meu trabalho. Com certeza dará continuidade a minha eterna insatisfação, sei que nunca deixarei de ser migrante mas é o resultado do meu jeito de ser.
sábado, 29 de junho de 2013
Ouro de tolo
Por Luiz Lima
“Imagine que não exista nenhum país/ (…) Nada por que matar ou morrer/ Nenhuma religião também”. Nos célebres versos de “Imagine”, John Lennon anunciava uma sociedade utópica. E ele iria além da canção: em manifesto, concebeu a tal nação fictícia, batizada de Nutopia. “Sem terra, sem fronteiras, sem passaportes, só pessoas. Nutopia não tem leis que não as cósmicas”, declaravam o ex-beatle e sua esposa, Yoko Ono, em 1973.
No ano seguinte, um roqueiro brasileiro apresentava ao público sua versão da “Sociedade Alternativa”: “Faze o que tu queres, pois é tudo da lei”, cantou Raul Seixas.
Não era coincidência. Cada um à sua maneira, Lennon e Raul bebiam da mesma fonte, que seduzia jovens no mundo inteiro em tempos de descrença nos poderes e nas instituições: a contracultura. Dos hippies aos anarquistas, os anos 1970 abrigaram diversas experiências de rejeição a todos os sistemas políticos estabelecidos, e propostas de comunidades alternativas que colocassem o ser humano como centro da vida social.
No Brasil, esses ventos de contestação coincidiram com o período mais grave do regime militar. No momento em que se prendia, torturava e eliminava quem ousasse se opor ao governo e a censura tomava conta dos meios de comunicação, eis que surge no Rio de Janeiro um jovem baiano tocando rock ‘n’ roll legítimo, ironizando os valores vigentes e pregando coisas estranhas como o egoísmo, o amor livre e a liberdade incondicional do ser humano. Quem era aquele sujeito?
Os agitos de roqueiro haviam começado ainda Salvador, no início da década de 1960, quando o jovem Raulzito fundou a banda Relâmpagos do Rock, depois chamada de The Panthers. Eram as primeiras guitarras elétricas de que se tinha notícia na conservadora capital baiana. Aos 17 anos, fã de Elvis Presley, Raulzito não queria saber de escola, repetiu de ano várias vezes, mas em casa teve acesso à cultura, isolado por horas e dias a fio na biblioteca do pai. Chegou a prestar vestibular, mas abandonou o curso de Direito para se dedicar apenas à música. Em 1967, foi convencido por Jerry Adriani – integrante do já famoso movimento Jovem Guarda, de Roberto e Erasmo Carlos – a ir ao Rio de Janeiro gravar um disco. Convite aceito, naquele mesmo ano foi lançado “Raulzito e Os Panteras”, um fracasso de vendas. O grupo ainda acompanhou Jerry Adriani em alguns shows, mas se desfez, o que obrigou Raul a voltar para Salvador. Em 1970 surgiu nova chance: agora um emprego de produtor-executivo na gravadora CBS. Ele tinha 24 anos e chegava ao Rio para ficar.
Na capital cultural do país, alguns conterrâneos de Raul já chamavam atenção no terreno da arte alternativa. Enquanto Gilberto Gil, Caetano Veloso e Tom Zé comandavam o Tropicalismo, Baby Consuelo, Moraes Moreira e Pepeu Gomes fundavam uma libertária experiência de vida comunitária dedicada à música que resultou no grupo Novos Baianos. Como o roqueiro que chegava, eram todos adeptos do experimentalismo formal, da guitarra misturada a ritmos nacionais, da adoção de novos comportamentos sociais e sexuais e, finalmente, do não-engajamento político. Por isso a contracultura era acusada de “alienada” pela juventude de esquerda, que pegava em armas para lutar contra a ditadura. Acusação um tanto injusta. “Era preciso muita vontade e alguma coragem para ser hippie numa ditadura militar boçal e truculenta. Visados pela polícia, muitos foram confundidos com militantes da resistência armada, presos e torturados por engano”, comenta o produtor musical Nelson Motta no livro Noites tropicais.
Apesar da semelhança estética, Raulzito não entrou na onda de nenhum dos baianos que chegaram antes dele. Sua idéia de “Sociedade Alternativa” seria muito mais radical, e ganharia fortes conotações místicas. Tudo começou em 1971, quando conheceu Paulo Coelho, editor da revista alternativa 2001. Fã de discos voadores, o roqueiro encontrou na revista um artigo sobre o assunto e gostou tanto que resolveu procurar seu autor. Aquelas duas cabeças criativas e alucinadas mergulhariam num mar de referências para conceber canções com temas até então inéditos por aqui. Além da Nutopia de Lennon e Yoko, inspiravam-se em autores clássicos do anarquismo e do individualismo, como Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) e Max Stirner (1806-1856).
Mas o grande guru da dupla foi o mago inglês Aleister Crowley (1875-1947). É dele a frase “Faze o que tu queres, pois é tudo da Lei” — a “lei” concebida por Crowley chamava-se Thelema, palavra grega que significa “vontade”. Segundo ele, os desejos humanos não deviam sofrer nenhum tipo de restrição. Considerado satanista por desdenhar as noções de bem e mal e louvar Deus e o Diabo na mesma proporção, Crowley fez a cabeça de várias bandas de rock famosas na época, como Iron Maiden e Led Zeppelin. E também dos Beatles, que estamparam sua foto no meio das celebridades da capa do revolucionário disco Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967).
Uma inusitada estratégia de marketing proposta por Paulo Coelho levou as primeiras idéias da Sociedade Alternativa aos lares de todo o Brasil. No dia 7 de junho de 1973, Raul Seixas convocou a imprensa para registrar sua aparição em plena Avenida Rio Branco, no Centro do Rio, violão em punho, cantando a música “Ouro de Tolo”. Deu certo: a cena foi exibida no “Jornal Nacional”, horário nobre da TV. A canção era uma bofetada no conformismo nacional diante das vantagens ilusórias oferecidas pela ditadura:
Eu devia estar contente porque eu tenho um emprego
Sou o dito cidadão respeitável e ganho quatro mil cruzeiros por mês
Eu devia agradecer ao Senhor por ter tido sucesso na vida como artista
Eu devia estar feliz porque consegui comprar um Corcel 73
(…)
Eu devia estar contente por ter conseguido tudo que eu quis
Mas confesso abestalhado que eu estou decepcionado!
(…)
É você olhar no espelho e se sentir um grandessíssimo idiota
Saber que é humano, ridículo, limitado
E que só usa 10% de sua cabeça animal
E você ainda acredita que é um doutor, padre ou policial
Que está contribuindo com sua parte
Para o nosso belo quadro social…
“Ouro de tolo” é o nome que se dava na Idade Média às promessas de falsos alquimistas. Transpondo a idéia para a década de 1970, Raul Seixas reduz a nada as aspirações da classe média que apoiou o milagre econômico da ditadura: a euforia regada pela estabilidade social do cidadão respeitável e por uma visão religiosa conformista era simplesmente um “ouro de tolo”.
A música virou sucesso instantâneo. Contratado pela gravadora Philips, Raul Seixas juntou “Ouro de Tolo” a outras nove canções para lançar seu primeiro LP solo: “Krig-Ha, Bandolo!”, ainda em 1973. O ano seguinte marca uma escalada no projeto de construção da Sociedade Alternativa. Paulo Coelho publica na Revista Planeta uma análise crítica dos movimentos de contestação juvenil da década de 1960, principalmente o dos hippies. Argumenta que, através da poderosa influência dos meios de comunicação, os valores fundamentais dos hippies propagaram-se pelo mundo e foram absorvidos pelo sistema de maneira deformada: sua revolução de valores transformou-se em moda. Citando John Lennon e seu famoso desabafo “O sonho acabou”, Paulo afirma que “a decadência do movimento hippie provocou a mais importante e a mais radical transformação da contracultura: o nascimento das sociedades alternativas”.
E eles não queriam ficar no plano da utopia. Em terreno cedido pela sociedade ocultista Argentum Astrum (ligada à Thelema do mago Crowley), instalam em Paraíba do Sul (RJ) a “Cidade das Estrelas”, para concretizar o sonho libertário. Enquanto isso, saía o segundo disco-solo de Raul, “Gita”, com o hino “Sociedade Alternativa”, a mística Gîtâ (inspirada no texto hindu Bhagavad Gita) e a apoteótica “Trem das sete”, que profetizava “o Mal de braços e abraços com o Bem num romance astral”.
Mas sua primeira canção a despertar a censura viria de outro disco lançado naquele ano: a trilha sonora da novela “O Rebu”, composta por Raul e Paulo Coelho. Na música “Como vovó já dizia”, dois versos foram considerados subversivos – “quem não tem papel dá recado pelo muro” e “quem não tem presente se conforma com o futuro” (substituídas por “quem não tem filé come pão em osso duro” e “quem não tem visão bate a cara contra o muro”).
Em maio de 1974, o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) finalmente fechou o cerco. Raul Seixas foi preso e torturado. “Tudo para eu poder dizer os nomes das pessoas que faziam parte da Sociedade Alternativa, que, segundo eles, era um movimento revolucionário contra o governo”, contaria mais tarde.
Nessa fase da ditadura as prisões eram secretas, ao contrário do que costumava ocorrer com as detenções na segunda metade da década de 1960. Após o fim da luta armada, a repressão se voltou contra a resistência cultural ao regime, perseguindo pessoas que expunham suas opiniões através da música e da imprensa. Foi o caso do roteirista e jornalista Vladimir Herzog, torturado e morto em 1975.
Segundo Sylvio Passos, presidente do Raul Seixas Oficial Fã-Clube, o trauma da prisão e da tortura foi duro para Raul, que sempre chorava ao narrar esses episódios, em conseqüência dos quais desenvolveu uma paranóia que o fez sofrer muito. Depois de libertados, ele e Paulo Coelho exilaram-se nos Estados Unidos. Mas o estrondoso sucesso alcançado por “Gita” – que vendeu 600 mil cópias em todo o Brasil – os animou a voltar.
Ano novo, disco novo, cheio de contundentes mensagens ideológicas. No LP de 1975, “Novo Aeon”, Raul canta a poligamia em “A Maçã”, provoca com o “Rock do Diabo” e radicaliza o individualismo com “Eu sou egoísta”. As composições com Paulo Coelho agora dividem espaço com outros parceiros, como Marcelo Motta. Em breve o mago seguiria seu caminho longe de Raul, para se tornar o maior best-seller brasileiro de todos os tempos. Já o Maluco Beleza não abriria mão de defender suas crenças até o fim. No penúltimo disco que gravou (“A Pedra do Gênesis”, em 1988), um Raul já debilitado pelo alcoolismo revela manter a crença em Crowley na canção “A Lei” – pura transcrição de frases do mestre ocultista. “Todo homem tem direito de pensar o que quiser/ Todo homem tem direito de amar a quem quiser/ Todo homem tem direito de viver como quiser”. Assim viveu Raul Seixas, cuja estrada chegaria ao fim no ano seguinte.
Se hoje a liberdade de expressão é um valor sagrado, muito se deve à abertura proporcionada por livres pensadores como Raul Seixas, que ousaram defender a criação de uma sociedade alternativa à que era imposta pelo sistema político estabelecido num momento em que tal atitude implicava altos riscos.
Luiz Lima é doutor em História Social pela USP e autor do livro Vivendo a sociedade alternativa: Raul Seixas e o seu tempo (Terceira Margem Editora, 2007).
Fonte: Revista de História
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