buscado no Língua Ferina
Por Homero Fonseca*
Está no Houaiss:
“baderna – situação em que reina a desordem; confusão,
bagunça”. O dicionário localiza a origem da palavra no
antropônimo Marietta Baderna, dançarina italiana que esteve no Rio
em 1851, “causando certo frisson”. Durante a ditadura militar,
esta palavrinha foi estigmatizada, com seu derivado “baderneiro”
servindo para qualificar oposicionistas, líderes estudantis e
militantes sindicais.
Otto Lara Resende
perguntara, pelo Globo, em 1987, o que diabos a moça teria feito
para figurar nos dicionários com tal acepção. Moacir Werneck de
Castro respondera, dias depois, pelo Jornal do Brasil, inventando uma
biografia mirabolante da dançarina italiana. O escritor Silvério
Corvisieri, seu compatriota, resolveu pesquisar a sério,
publicando Maria Baderna – A Bailarina de Dois Mundos, livro
do qual emerge uma personagem fascinante e um exemplo do que o tempo
e as circunstâncias fazem com uma palavra.
Marietta Baderna nasceu
em Castelo San Giovanni, no Piemonte, em 1828. Seu pai, o médico
Antonio Baderna, era um liberal ligado aos ideais de Giuseppe
Mazzini, revolucionário que lutava contra a ocupação austríaca do
norte da Itália. Aos 12 anos, revelando talento para a dança
clássica, Marietta foi levada pelo pai para Milão, onde ingressou
no curso do professor Carlo Blasis. A partir daí, sua carreira foi
vertiginosa. Estreou no Scala em 1843, com sucesso de crítica e
público, tornando-se, quase menina, a primeira bailarina deste
teatro lírico. Apresentou-se em Londres e Trieste, arrancando
aplausos das plateias e suspiros apaixonados. Inteligente, culta,
impetuosa, entrou com gosto na roda viva do meio artístico, como
conta Corvisieri: “vivia dias de intensa paixão, dividindo-se
entre o engajamento político, o teatro e um bando de cortejadores”.
Vieram as revoltas de
1848, a derrota dos nacionalistas e o recrudescimento da repressão
austríaca. Perseguidos, Marietta e o pai abandonaram o país natal,
embarcando, com 55 artistas de uma companhia de canto e outra de
dança, rumo ao Brasil.
No Rio, a companhia
italiana apresentou-se no Teatro Imperial de São Pedro d’Alcântara.
Marietta estreou com o balé Il ballo delle Fate (O Balé
das Fadas), do coreógrafo Giuseppe Villa, na noite de 29 de setembro
de 1849. Fez furor. O jornal Correio Mercantil classificou-a como “a
rainha das fadas”. Em poucos meses, Marietta tornou-se uma espécie
de divindade pagã, musa da juventude romântica, admirada pelos
intelectuais, desejada pelos aristocratas.
O Correio Mercantil
registrou: daquele momento em diante, “baderna significaria dança
elegante; badernar, dançar elegantemente; badernador, apaixonado
profissional de dança baderna; badernistas, amantes sensatos;
baderneiros, amantes fanáticos”. O sucesso repercutia nos jornais
especializados da Itália e da Europa. Inúmeros artigos de Gonçalves
Dias, José de Alencar e José Maria Paranhos (futuro Barão do Rio
Branco), elogiavam a “sílfide etérea” que deflagrou uma “febre
dançante” no Rio oitocentista.
Em janeiro de 1850,
quando estreava o balé La Discepoladell’Amore, estourou uma
epidemia de febre amarela no Rio e, durante quatro meses, os
espetáculos foram suspensos. Seu pai caiu doente e morreu. Ela
contraiu a doença, ficou entre a vida e a morte, e sobreviveu. Nada
menos de 80% dos artistas que vieram com ela da Itália sucumbiram.
As mortes no Rio, que tinha 240 mil habitantes, chegaram a 16 mil. A
partir daí, sua vida daria uma guinada: ficou mais ligada ao
namorado, o bailarino francês Jean Tupinet, com quem passou a morar
– um escândalo para a sociedade da época. Sua amiga, a soprano
Augusta Candiani, largou o marido e foi viver com outro – mais um
escândalo. A fama das artistas italianas tornava-se cada vez mais
negativa. Ainda por cima, Marietta era aplicada devota do absinto e,
cúmulo dos cúmulos, frequentava, na companhia de jovens
intelectuais pálidos e barbudos, as praias e a Praça da Carioca,
onde negros e mestiços se exibiam em danças consideradas lascivas e
imorais.
Paralelamente, estouram
escândalos de corrupção na administração do Teatro São Pedro
d’Âlcantara, provocando a criação de uma CPI no Congresso, a
demissão do diretor Manuel Araújo, briga com e entre artistas,
disputas dos “partidos”, repercussão na imprensa, culminando com
o fechamento temporário do teatro. Ela decidiu fazer uma temporada
no Recife, onde havia sido inaugurado “um esplêndido teatro
lírico”, para onde Augusta Candiani e o maestro Giannini já
tinham ido.
Marietta chegou ao
Recife em princípios de 1851 e apresentou-se no Teatro de Santa
Isabel. Repetiram-se as cenas de Milão, Triste, Londres, Rio:
aplausos, flores, poemas de admiradores. Então, um desses
admiradores publicou um “a pedido” no Diário de Pernambuco (28
de janeiro), elogiando a sedutora exibição da bailarina italiana
no pas-des-deux do Lago delle Fate e perguntando,
provocadoramente, por que razão alguns obstinavam-se em manter fora
dos palcos “os nossos fados, lunduns e bahianos, que são danças
brasileiras”; “por que razão estas danças são rotuladas como
indecentes e imorais”? (…) “Qual o passo, qual o bamboleio, o
rebolado do lascivo lundum que poderia ser comparado aos trechos em
que a delicada Baderna, leve como uma sílfide, abre as pernas como
se desejasse se dividir em duas”?
Fiel ao seu
temperamento, Marietta aceitou o desafio. No mês seguinte
(fevereiro), apresentou no palco do Santa Isabel o espetáculo Lundum
d’Amarroa. O público se dividiu violentamente: na platéia, os
estudantes de Direito aplaudiam e, nos camarotes, a elite açucareira
vaiava. Em maio, ela repetiu a dose com o balé Negri, de título
inequívoco. Novas confusões na platéia. A palavra baderna começava
a ganhar um novo significado. Nos jornais, entretanto,
multiplicavam-se as poesias de fãs ardorosos.
De volta ao Rio, Marietta torna a ocupar o centro das atenções. Novas companhias italianas e francesas aportaram no Rio e logo os costumes desinibidos dos artistas provocaram a reação irada dos conservadores. Seu porta-voz, o Jornal do Commercio desencandeou uma violenta campanha moralizadora, denunciando “a indecência das danças”, identificando a arte como “uma escola de prostituição”. Marietta é citada nominalmente como “vivendo uma vida desregrada”.
Novamente no Rio, sua
carreira começa a oscilar. Cada vez mais fica sem contrato, até
desaparecer completamente da cena teatral da cidade. Durante algum
tempo, seus admiradores provocaram tumulto nos teatros, exigindo sua
presença. E o termo baderna ganhou definitivamente, ao que parece,
sua concepção moderna. Ela ainda tentaria uma minitemporada
malsucedida em Bordeaux, na França, na qual, ao que consta, deixou
de comparecer a uma sessão, tendo o público atribuído a ausência
ao álcool. O fiasco repercutiu na imprensa italiana, que lamentou o
fato de ter abandonado uma brilhante carreira para transferir-se para
o Brasil, “o túmulo de seu talento”. Depois disso, nunca mais se
falou em Marietta Baderna. A “graciosa sílfide que sempre
aplaudimos” (José de Alencar) saiu de cena e entrou para os
dicionários.
O último registro
sobre ela parece ter sido colhido por Rejane Bonomi Schifino, que em
recente dissertação de mestrado na Unicamp, afirma ter se tornado
professora de dança nas escolas femininas do Rio em 1870, vivendo em
precárias condições financeiras. Além das teses acadêmicas, a
memória dessa extraordinária bailarina está registrada num
curta-metragem dirigido por André Francioli, em 2004, e,
recentemente, na homenagem de sua cidade natal, Castel San Giovanni,
que lançou em março passado um concurso de poesia com o seu nome.
*Publicado em Homero
Fonseca com o título "A baderna e o dicionário"
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