quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

O Efeito Matilda


buscado no Informação Incorrecta 

 

O Muy Nobre Leitor Sergio envia e eu não apenas agradeço como também publico.
O artigo original encontra-se no blog Momentum Saga (link no fundo do texto), que agradeço também.
O assunto: o Efeito Matilda.

 por Informações Incorrectas


O Efeito Matilda
Matilda Joslyn Gage
O Efeito Matilda é uma daquelas coisas que você vê ou lê e não acredita que possa ser verdade. Imagina isso acontecer, ainda mais numa área tão séria quanto a ciência. Depois, é só procurar um pouquinho pelas "interwebs" que você logo acha as consequências deste efeito em várias áreas da ciência, em várias partes do mundo, em vários momentos da história. A principal e nefasta consequência dele é que mulheres ficam relegadas à posições secundárias na ciência e, muitas vezes, são acusadas de "não combinarem" com ela, tendo seus trabalhos considerados inferiores, baseados unicamente em sues gêneros.
O Efeito Matilda foi cunhado, em 1993, pela pesquisadora da história da ciência Margaret W. Rossiter, homenageando a ativista dos direitos das mulheres do século XIX, abolicionista, ativista dos nativos-americanos, Matilda Joslyn Gage, aquela simpática senhora que abre o post lá em cima, que já naquela época percebeu que ele ocorria. Basicamente, ele diz que as descobertas e contribuições científicas feitas por mulheres são negadas à elas e atribuídas a pesquisadores homens, com sua participação diminuída ou completamente negada. Isso não é novo e temos muitos casos no meio acadêmico e científico. Ele está relacionado com o Efeito Matthew, que diz que a contribuição de certos cientistas é valorizada mais do que o devido.

Mas por que isso acontece? Acho que é fácil de identificar a razão. Ciência é um campo que foi, por muito tempo, dominado por homens, desde os antigos mosteiros e academias até nos grandes laboratórios modernos dos dias de hoje. Com a democratização do ensino e com a popularização das ciências, temos áreas que são cada vez mais populares, atraindo mais e mais moças e mulheres para a ciência. Mas ainda somos vistas e muitas vezes avaliadas como "Maria Diplomas", em alusão a outros títulos machistas como "Maria Chuteira" e afins. É uma maneira de diminuir a capacidade intelectual de uma pessoa, baseada em seu gênero, achando que ela tem menor ou nenhuma capacidade do que seus colegas do sexo masculino.
Um dos primeiros casos relatados por Rossiter foi da Doutora Trotula de Salerno, que nos séculos XI e XII contribuiu significativamente para a saúde feminina e obstetrícia ao escrever vários livros sobre menstrução, ginecologia, menopausa, concepção, parto, puerpério, controle de natalidade, as doenças do útero e das vias urinárias. Já naquela época, ela considerava a prevenção a melhor maneira de se fazer medicina, impedindo que uma doença se instalasse para não ter que tratá-la depois. Toda a sua obra foi atribuída a autores homens posteriormente e seu nome foi esquecido nas faculdades de medicina.
Nettie Stevens
Nettie Stevens também foi uma que sofreu com o Efeito Matilda. Nascida em 1861, em Vermont, EUA, recebeu seu Ph.D. em biologia em 1903. Ela descobriu que os cromossomos determinam o sexo de um indivíduo ao estudar larvas. Foi Nettie quem apontou que indivíduos masculinos carregavam cromossomos X e Y, enquanto os femininos carregavam XX. A ideia de chamá-los de X e Y, inclusive, partiu dela. Nettie também explicou que o sexo é herdado como fator cromossômico e que os machos que determinam o sexo, por carregá-lo no momento da concepção. Para a época, era um avanço incrível para a ciência da concepção, pois acreditava-se que a mulher era quem determinava o sexo do bebê. Quantos homens se separaram de suas esposas por que elas "não tiveram filho homem"?
Porém, seu colega Thomas Hunt Morgan, com quem ela trabalhou durante este período, acabou levando o crédito de Nettie, junto de outro colega de profissão, Edmund Wilson, e os dois levaram o Prêmio Nobel pela descoberta.
Marietta Blau
Marietta Blau foi uma importante física austríaca. Ela se formou em Física e Matemática pela Universidade de Vienna, em 1918, com Ph.D. na mesma área em 1919. Marietta foi a responsável pela criação da emulsão nuclear que é a emulsão fotográfica destinada à fixação e observação da trajetória individual das partículas ionizantes. Além disso, ela estabeleceu um método acurado de estudar as reações causadas por raios cósmicos. Seu trabalho avançou o campo de física de partículas na época. Por conta da ascendência judia, Marietta deixou a Áustria em 1939, interrompendo sua carreira científica, até conseguir uma posição como professora no México e depois nos Estados Unidos. Por seu trabalho, Erwin Schrödinger a indicou ao Prêmio Nobel de Física, em 1950, mas infelizmente seu trabalho foi todo creditado a Cecil Frank Powell.

Cecilia Payne-Gaposchkin
Lise Meitner, física austríaca, trabalhou com radiatividade e física nuclear, foi responsável por descobrir a fissão nuclear. Em 1938, ela precisou abandonar a Alemanha, onde trabalhava no Instituto Max Planck com outro químico, Otto Hahn. Em 1944, Hahn ganhou o Nobel de Química e Meitner foi ignorada.
Cecilia Payne-Gaposchkin, astrônoma e astrofísica, com Ph.D. em astronomia, foi a responsável por descobrir do que o Sol e o universo inteiro são feitos. Determinou a temperatura das estrelas e a abundância de elementos químicos. Foi a primeira mulher a chefiar um departamento em Harvard. Sua tese de doutorado "Stellar Atmospheres, A Contribution to the Observational Study of High Temperature in the Reversing Layers of Stars" é considerada como a mais brilhante tese já escrita em astronomia. Seu trabalho foi creditado a Henry Norris Russell.
Rosalind Franklin é considerada a "mãe do DNA". Biofísica britânica, foi pioneira da biologia molecular onde, empregando a técnica da difração dos raios-X, concluiu que o DNA tinha forma helicoidal. Cartas descobertas alguns anos atrás mostram que o chefe do laboratório a odiava, a chamava de bruxa e fazia de tudo para dificultar seu trabalho. Em todas as aulas de biologia, aprendemos que o DNA foi descoberto por Watson e Crick, ganhadores do Nobel em 1962, sem reconhecer o trabalho de Rosalind, que morrera quatro anos antes, aos 37 anos, por câncer de ovário.

Eu poderia continuar aqui, falando e falando de várias mulheres brilhantes e aposto que muita gente vai dizer: "Ahhh, vai, que é isso, não é tão ruim assim. Elas foram injustiçadas, ok, mas isso é exagero." Pois então conheçam a história de Ben Barres. Ele é neurobiólogo, professor da Universidade Stanford. Seu estudo foca a interação entre os neurônios e as células gliais no sistema nervoso, tendo a cadeira do departamento de Neurobiologia na escola de Medicina de Stanford.

Barres se chamava Barbara antes da cirurgia de redesignação sexual (comumente chamada de "cirurgia de mudança de sexo"). Barres foi o primeiro homem a levantar a bandeira do sexismo na ciência ao perceber a mudança de comportamento de revisores e revistas científicas com relação a seus artigos. Aqueles onde ele assinou como Barbara eram tidos como superficiais e pouco precisos, enquanto os de Ben eram muito mais concisos, sendo que eram trabalhos da mesma pessoa. Ele também denunciou a falta de respeito com mulheres cientistas, baseado unicamente em seus gêneros.

Ben Barres
Ben criticou abertamente o ex-presidente da Universidade Harvard, Lawrence Summers, que disse que a ausência de mulheres nos altos níveis da ciência e da pesquisa se deve às inatas diferenças biológicas entre as aptidões de homens e mulheres. Seríamos "menos aptas" às ciências, por isso que os homens as dominam. Ben disse que essa discussão é como uma "briga de rua", onde as mulheres estão levando a pior, pois somos consideradas intelectualmente inferiores por sermos mulheres. Para ele, existe uma gangue de cientistas homens que desencorajam moças ainda na graduação, pois foi o que aconteceu com ele, ainda como Barbara, quando foi desencorajada por um professor a ingressar no MIT.
Barres também apontou que, quando cientistas avaliam propostas de projetos, sem saber nomes, tanto homens quanto mulheres têm chances iguais. Mas quando o nome é apontado, as mulheres precisam apresentar uma produção científica três vezes maior que seus colegas homens, mesmo que tenham a mesma titulação e competência que eles.
Ou seja, parece que para alguns homens, ciência não é lugar de mulher. Mal sabem eles que o lugar de mulher é ONDE ELA QUISER. Seu trabalho deve ser avaliado independente de seu gênero. Não é de se espantar que a área acadêmica espante tantas mulheres, sendo que já desde a graduação somos desencorajadas por alguns professores e até pela família, cuja única função, muitas vezes, é apontar que a mulher ainda está solteira e que estudar não leva à nada. Que o futuro seja mais promissor e brilhante para as mulheres na ciência e que seus feitos sejam corretamente creditados.


Muito bem visto.

Todavia...todavia: quem foi que deu ouvido ao Diabo disfarçado de cobra? Quem comeu a maçã? Quem ofereceu a maçã ao homem, aquela inocente criatura que estava a portar-se tão bem?

Estes são factos, minhas amigas, esta é História e até temos uma fotografia disso, ao lado


 (autoria: Hendrick Goltzius).

Como é possível observar, Adão estava tranquilamente a comer uma azeitona e a pensar por qual razão tinha que ficar o dia todo com um ramo sobre as partes íntimas, quando Eva, sem cuidar-se do mau cheiro da cabra, oferece a maçã, a causa de todos os males.

Até o gato estava pacífico, nem se dava ao trabalho de caçar ratos: um verdadeiro paraíso.
Mas a mulher...enfim, sabemos o que aconteceu depois.

E contra factos, não há palavras.


por Informações Incorrectas
 

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Mauro Santayana: o torturador é covarde por natureza


 buscado no Gilson Sampaio  

 

Via RedeBrasil Atual


O guerreiro luta por uma causa. O torturador se distingue pela ausência de riscos. O torturado sempre está desarmado. O torturador brinca com o medo do outro, porque não consegue enfrentar o seu

Mauro Santayana
O que é a tortura? Como um ser humano pode conceber usar o corpo de outro ser humano, que possui a mesma pele, a mesma boca, os mesmos dentes, os mesmos ossos, os mesmos cabelos, os mesmos bilhões de neurônios, para punir-lhe com dor, desespero e medo? A convenção das Nações Unidas, de 1984, contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes, define a tortura como “qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido, ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação”.

São muitos os que buscam atribuir a tortura à natureza humana, como fazem com a guerra e outros crimes. Mas existe um enorme abismo entre quem luta e o torturador. O guerreiro luta por uma causa. Está sujeito a morrer por uma fonte de água, a carcaça de uma presa recém-abatida, por sua mulher e seus filhos. O combatente atávico que existe em cada um de nós sabe dos riscos que corre, em defesa de suas circunstâncias, de suas ideias, de sua condição. Pode morrer ou ser ferido em batalha.

O torturador se distingue pela ausência de riscos, de coragem. O torturado sempre está desarmado, ou amarrado e indefeso, frente a ele. O torturador brinca com o medo do outro, porque, dentro de si mesmo, não consegue enfrentar e encarar o próprio medo. Ele é covarde por natureza, é movido pelo mal e o sadismo, e por sua fraca e abjeta personalidade. Ele não precisa de uma ideia, de uma razão.

“A finalidade do terror é o terror. O objetivo da opressão, a opressão. A finalidade da tortura é a tortura. O objetivo da morte é a morte. A finalidade do poder é o poder. Você está começando a me entender?” explica, a um prisioneiro, um personagem de George Orwell, no livro 1984. Os torturadores são, antes de tudo, psicopatas. Dependendo do momento da história, irão torturar em nome de Deus, de uma bandeira, um uniforme, uma ideologia, uma religião. Use a roupa que usar, ocupe seja que cargo, o torturador não passa de criminoso vulgar.

Uma sociedade que abomina assassinos, ladrões, corruptos, estupradores, não pode aceitar conviver, em seu seio, com torturadores. Até mesmo porque o torturador quase sempre é, também, assassino, ladrão, corrupto e estuprador. A diferença entre a tortura e a lei é a mesma que existe entre a barbárie e o progresso. Aceitar a tortura como inerente à condição humana é o mesmo que negar que um povo, um Estado, uma nação, a humanidade possam evoluir.

Dostoiévski dizia que a melhor forma de medir o grau de civilização de um país­ era conhecer, por dentro, suas prisões. Nesse aspecto, a situação no Brasil é vergonhosa. Não apenas com relação às condições e superlotação de nossas cadeias, mas pela forma como nossa sociedade convive com a tortura e o torturador.

O brasileiro médio é falso, hipócrita e leniente com relação à tortura. As mesmas pessoas que se revoltam com o vídeo feito por uma vizinha, mostrando uma mulher espancando um cachorrinho na área de serviço, se regozijam quando veem um menino ou menina de 7, 8 anos – morador de rua e muitas vezes, já dominado pelo crack – ser agarrado pela orelha, e tomar uma surra de policiais ou seguranças. Param, a caminho do trabalho, para deleitar-se.
Corações e mentes
Passando a limpo

O agente do Estado, no Brasil, formado em uma longa tradição autoritária, que vem desde os capitães do mato, e dos diferentes hiatos ditatoriais de nossa história, acha que tem direito de vida ou morte sobre o suspeito. Isso está fartamente demonstrado não apenas nos milhares de casos de mortes por “auto de resistência”, mas também pelo que ocorre com os presos, muitos sem sequer terem passado por julgamento, no interior de nossas prisões. O mesmo vale para o outro lado da moeda.

Da mesma forma que um policial corrupto espanca, humilha e ameaça matar a mãe ou a filha de um suspeito, para saber – em interesse próprio – onde está escondido o produto de um assalto ou a droga recém-chegada, a violência extrema tem sido praticada, também, pelas novas gerações de marginais, que torturam e matam famílias, crianças e idosos, para tentar saber onde está um punhado de reais. Como controlar essa corrente de estupidez?

Um bom começo, do ponto de vista do Judiciário, seria perder o pudor de usar a lei e condenar alguém pelo crime de tortura. Raramente alguém que comete latrocínio com extrema violência tem a sua pena acrescida por tortura. É como se condenar alguém por esse crime fosse proibido, ou ela não existisse em nosso dicionário.

Nos portais e redes sociais ela nunca é citada por quem a defende. Ninguém, referindo-se a um suspeito, escreve ou afirma “tem de torturar esse cara”. Para que fique tudo mais íntimo e corriqueiro, banalizado, usam-se expressões como “tá precisando é de couro”, “se fosse meu filho, dava uma de criar bicho”, “comida de preso é paulada”, “pendura que ele canta”, “tinha que cortar na borracha” e outras do gênero.

A presidenta Dilma Roussef lançou, no último 12 de dezembro, o Sistema Nacional de Enfrentamento à Tortura, que prevê a instalação de um mecanismo autônomo que, por meio de peritos, terá autorização prévia para entrar em penitenciárias, instalações militares, delegacias, instituições de longa permanência de idosos, instituições de tratamento de doenças psíquicas ou similares, para constatar a existência de possíveis violações de direitos humanos nesses locais. Trata-se de importante iniciativa, considerando-se que o Brasil é signatário da Convenção Internacional Contra a Tortura desde 1989, e que, em 500 anos de história, é a primeira vez que a Nação está encarando, de forma direta, essa abominável questão.

Mas a verdadeira batalha não se dará apenas com a fiscalização do que está ocorrendo nas prisões, que poderia avançar com a instalação de delegacias de direitos humanos em todo o país. Ela será travada nos corações e mentes da população brasileira.

Não podemos nos considerar civilizados enquanto milhares de brasileiros defenderem a execução ilegal e a tortura como método de punição e investigação. Não podemos nos considerar civilizados enquanto juízes estabelecerem jurisprudência atribuindo à vítima de tortura o ônus de provar que foi torturada. Esse paradigma, estabelecido na ideologia escravocrata e repressora de parte considerável de nossa sociedade, só poderá ser alterado a partir do ensino, em todas as escolas, desde o primeiro grau, dos direitos e deveres consubstanciados na Constituição brasileira, atendo-se estritamente ao seu conteúdo, para não dar à direita fascista motivo para combater a iniciativa.

Só quando ensinarmos nossos filhos e netos que o mero ato de um policial espancar um manifestante, em uma situação de protesto – ou manifestantes espancarem um policial desarmado – é ilegal; que extrair dor de outro homem, mulher, criança, indefeso, humilhando-os, transformando-os, pelo medo, em animais ­irracionais, que gritam, sangram e choram, segundo a vontade de seu torturador, é crime abjeto e condenável, poderemos começar a mudar, de fato, a mentalidade a propósito da tortura, sua imagem e paradigmas, em nosso país.


domingo, 26 de janeiro de 2014

A covarde violação dos direitos humanos

 

buscado no Altamiro Borges

 

Por Leonardo Boff, no sítio da Adital:
Vivemos num mundo no qual os direitos humanos são violados, praticamente em todos os níveis, familiar, local, nacional e planetário.

O Relatório Anual da Anistia Internacional de 2013 com referência a 2012 cobrindo 159 países faz exatamente esta dolorosa constatação. Ao invés de avançarmos no respeito à dignidade humana e aos direitos das pessoas, dos povos e dos ecossistemas estamos regredindo a níveis de barbárie. As violações não conhecem fronteiras e as formas desta agressão se sofisticam cada vez mais.

A forma mais covarde é a ação dos "drones”, aviões não pilotados que a partir de alguma base do Texas, dirigidos por um jovem militar diante de uma telinha de televisão, como se estivesse jogando, consegue identificar um grupo de afegãos celebrando um casamento e dentro do qual, presumivelmente deverá haver algum guerrilheiro da Al Qaeda. Basta esta suposição para com um pequeno clique lançar uma bomba que aniquila todo o grupo, com muitas mães e crianças inocentes.
É a forma perversa da guerra preventiva, inaugurada por Bush e criminosamente levada avante pelo Presidente Obama que não cumpriu as promessas de campanha com referência aos direitos humanos, seja ao fechamento de Guantánamo, seja à supressão do "Ato Patriótico”(antipatriótico) pelo qual qualquer pessoa dentro dos USA pode ser detida por suspeita de terrorismo, sem necessidade de avisar a família. Isso significa sequestro ilegal que nós na América Latina conhecemos de sobejo. Verifica-se em termos econômicos e também de direitos humanos uma verdadeira latino-americanização dos USA no estilo dos nossos piores momentos da época de chumbo das ditaduras militares. Hoje, consoante o Relatório da Anistia Internacional, o país que mais viola direitos de pessoas e de povos são os Estados Unidos.

Com a maior indiferença, qual imperador romano absoluto, Obama nega-se a dar qualquer justificativa suficiente sobre a espionagem mundial que seu Governo faz a pretexto da segurança nacional, cobrindo áreas que vão de trocas de e-mails amorosos entre dois apaixonados até dos negócios sigilosos e bilionários da Petrobrás, violando o direito à privacidade das pessoas e à soberania de todo um país. A segurança anula a validade dos direitos irrenunciáveis.

O Continente que mais violações sofre é a África. É o Continente esquecido e vandalizado. Terras são compradas (land grabbing) por grandes corporações e pela China para nelas produzirem alimentos para suas populações. É uma neocolonização mais perversa que a anterior.

Os milhares e milhares de refugiados e imigrantes por razões de fome e de erosão de suas terras são os mais vulneráveis. Constituem uma subclasse de pessoas, rejeitadas por quase todos os países, "numa globalização da insensibilidade”, como a chamou o Papa Francisco. Dramática, diz o Relatório da Anistia Internacional, é a situação das mulheres. Constituem mais da metade da humanidade, muitíssimas delas sujeitas a violências de todo tipo e em várias partes da África e da Ásia ainda obrigadas à mutilação genital.

A situação de nosso país é preocupante dado o nível de violência que campeia em todas as partes. Diria, não há violência: estamos montados sobre estruturas de violência sistêmica que pesa sobre mais da metade da população afrodescendente, sobre os indígenas que lutam por preservar suas terras contra a voracidade impune do agronegócio, sobre os pobres em geral e sobre os LGBT, discriminados e até mortos. Porque nunca fizemos uma reforma agrária, nem política, nem tributária assistimos nossas cidades se cercarem de centenas e centenas de "comunidades pobres”(favelas) onde os direitos à saúde, educação, à infraestrutura e à segurança são deficitariamente garantidos. A desigualdade, outro nome para a injustiça social, provoca as principais violações.

O fundamento último do cultivo dos direitos humanos reside na dignidade de cada pessoa humana e no respeito que lhe é devido. Dignidade significa que ela é portadora de espírito e de liberdade que lhe permite moldar sua própria vida. O respeito é o reconhecimento de que cada ser humano possui um valor intrínseco, é um fim em si mesmo e jamais meio para qualquer outra coisa. Diante de cada ser humano, por anônimo que seja, todo poder encontra o seu limite, também o Estado.

O fato é que vivemos num tipo de sociedade mundial que colocou a economia como seu eixo estruturador. A razão é só utilitarista e tudo, até a pessoa humana, como o denuncia o Papa Francisco é feita "um bem de consumo que uma vez usado pode ser jogado fora”. Numa sociedade assim não há lugar para direitos, apenas para interesses. Até o direito sagrado à comida e à bebida só é garantido para quem puder pagar. Caso contrário, estará ao pé da mesa, junto aos cães esperando alguma migalha que caia da mesa farta dos ‘epulões’.

Neste sistema econômico, político e comercial se assentam as causas principais, não exclusivas, que levam permanentemente à violação da dignidade humana. O sistema vigente não ama as pessoas, apenas sua capacidade de produzir e de consumir. De resto, são apenas resto, óleo gasto na produção.

A tarefa além de humanitária e ética é principalmente política: como transformar este tipo de sociedade malvada numa sociedade onde os humanos possam se tratar humanamente e gozar de direitos básicos. Caso contrário a violência é a norma e a civilização se degrada em barbárie.
 
 

domingo, 19 de janeiro de 2014

white Dog , Cão branco



 



Jovem atriz atropela um cão e decide levá-lo para casa a fim de medicá-lo. Ela descobre, porém, que o animal foi treinado para atacar pessoas de pele negra e busca a ajuda de um especialista para curá-lo deste impulso assassino. Baseado no romance de Romain Gary.



sábado, 18 de janeiro de 2014

Mónica Ertl, “a mulher que vingou Che Guevara”


buscado no Gilson Sampaio 

 

 
Jurgen Schreiber é um jornalista alemão, de reconhecido prestígio como repórter investigativo, que publicou recentemente a biografia de uma compatriota sua, Mónika Ertl. Quem vê o título do livro “A mulher que vingou Che Guevara” pode até pensar que é uma obra de ficção, mas o relato narra uma história da vida real, ainda que desconhecida.
Mônica é filha de um dos grandes propagandistas do nazismo, Hans Ertl, que por muito tempo foi conhecido como o “fotógrafo de Hitler”. Ela nasceu em Munique, em 1937, mas nos anos 50 foi viver na Bolívia, para onde seu pai havia fugido depois da queda do Terceiro Reich. Criou-se num círculo fechado de racismo e violência, no qual brilhavam o seu pai e outro sinistro personagem a quem ela chamava de “tio”, e que não era outro senão Klaus Barbie, “o carniceiro de Lyon”.
Essa jovem e bela alemã cresceu nesse ambiente, dedicando-se a mesma profissão do seu pai: era fotógrafa e camarógrafa. Mas, tudo mudou no final dos anos 60, quando tomou conhecimento da proposta de Che Guevara naquele país, e acompanhou todo o episódio de sua morte na selva boliviana. O assassinato do guerrilheiro argentino provocou um rompimento de Mônica com suas raízes e num giro de 360 graus ela acabou militando nas fileiras do Exército de Libertação Nacional, o grupo guerrilheiro formado pelo próprio Che. Depois de viver na Alemanha ela acabou voltando para La Paz onde conheceu e se apaixonou por Osvaldo Peredo, irmão do então líder do ELN, que também era militante.
Pois é ela que, em 1971, cruza o Atlântico, volta para a terra natal, Alemanha, e lá, na cidade de Hamburgo, executa pessoalmente, com três tiros de uma pistola Colt 38, o cônsul boliviano daquela cidade. E quem era esse cônsul? Nada menos do que o coronel Roberto Quintanilla, o homem responsável pelo ultraje final a Guevara: a amputação de suas mão. Ela havia percorrido mais de 20 mil quilômetros, desde a cordilheira dos andes até Hamburgo para justiçar o militar.
Assim narra Jurgen, aquele dia especial. “Hamburgo, Alemanha, eram nove e quarenta da manhã do dia primeiro de abril de 1971. Uma bela e elegante mulher, de profundos olhos cor de céu entra no escritório do cônsul da Bolívia e espera pacientemente ser atendida. Enquanto aguarda, olha indiferente os quadros que adornam as paredes. Roberto Quintanilla, cônsul boliviano, vestido elegantemente com um traje de lã escuro, aparece e a cumprimenta, bastante impactado pela beleza da mulher que diz ser australiana e que há poucos dias havia pedido uma entrevista. Por um instante fugaz, ambos se encontram frente a frente. A vingança então aparece encarnada no rosto feminino e atrativo. A mulher, de beleza exuberante, o olha fixamente nos olhos e sem dizer palavra extrai um revólver e dispara três vezes. Não houve resistência, nem luta. Os impactos deram na parede. Na fuga, ela deixou para trás a peruca, o Colt 38 e um pedaço de papel no qual se lia “Vitória ou morte. ELN”.
Depois de matar Quintanilla, Mônica foi alvo de uma feroz caçada pelas forças de segurança bolivianas, que atravessou países e mares, e só terminou quando a jovem finalmente caiu morta em uma emboscada montada justamente pelo seu “tio”, o sanguinário Barbie, no dia 12 de maio de 1973, em La Paz. Mônica tinha 32 anos e seu corpo nunca foi encontrado.
Essa história incrível e aventurosa é contada pelo jornalista Jürgen Schreiberm, e faz parte da história de nuestra América. Monica Ertl. Presente! 

Veja o vídeo, com narrativa em espanhol sobre o dia em Mônica vingou El Che.



 

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

HANNAH ARENDT: A DIGNIDADE E A CORAGEM DE UMA PENSADORA

 

buscado no Náufrago da Utopia


por Celso Lungaretti

Para minha satisfação, o filme Hannah Arendt foi rapidamente disponibilizado no Youtube, completo e legendado; era um dos que eu mais queria trazer para este espaço. 

Não que eu o considere uma obra-prima da sétima arte. Estou longe de ser um admirador da diretora alemã Margarethe von Trotta, a quem considero inferior a outros cineastas que costuma(va)m incursionar pelo cinema político, como Costa Gravas, Giuliano Montaldo, Francesco Rosi e o falecido Gillo Pontecorvo. 

Seu Rosa Luxemburgo, p. ex., ficou muito aquém da magnitude da personagem histórica que antecedeu Trotsky na firme rejeição dos componentes autoritários que acabariam por descaracterizar completamente a revolução soviética.  

Mas, o quarto de século transcorrido entre um e outro filme lhe fez bem (assim como à atriz Barbara Sukowa, muito melhor no de 2012 que no de 1986). 

Se na biografia cinematográfica da Rosa vermelha ela quis abarcar acontecimentos demais e não soube separar o fundamental do dispensável, em Hannah Arendt tomou a sábia decisão de restringir-se ao que realmente importava: a cobertura do julgamento de Adolf Eichmann e o fogo amigo que Arendt enfrentou por não ter abdicado do seu espírito crítico.

Judia alemã, ela se refugiara nos EUA e por lá ficou, tendo se tornado uma respeitada professora de filosofia,  autora de um livro famoso: Origens do totalitarismo.

Quando agentes israelenses sequestraram o criminoso de guerra nazista na Argentina, em 1960, Arendt convenceu o jornal New Yorker a designá-la para a cobertura do julgamento de cartas marcadas que o Estado judeu encenaria para dourar a pílula da execução, confundindo justiça com uma vendetta subsequente a um ato de pirataria (as bestas-feras da Operação Condor agiriam da mesmíssima maneira, mas sem o cinismo de tentarem legitimar a lei das selvas).  

Embora não tivesse denunciado a ilegalidade e imoralidade intrínsecas àquela farsa judicial, Arendt recuperou-se ao destoar da linha justa israelense, que erigia Eichmann num monstro, com redobrado furor em função da má consciência: perseguidos durante milênios, os judeus, lá no fundo, sabiam muito bem que haviam cometido um erro terrível ao desrespeitarem a soberania de um país que nem inimigo era (a Argentina), bem como que, não tendo sido capturado em território israelense, Eichmann só poderia ser julgado por um tribunal internacional como o de Nuremberg.
Vilificavam-no ao máximo, da forma mais estridente possível, para abafar os tímidos posicionamentos discordantes. Começavam a incidir nas mesmas práticas que tanto haviam recriminado nos nazistas. 

Arendt, contudo, teve a coragem moral de, nos seus artigos para o New Yorker (depois reunidos no livro Eichmann em Jerusalém - um relato sobre a banalidade do mal) apresentar o réu apenas como um burocrata medíocre, um pau mandado, um elo a mais da engrenagem totalitária.
[É como sempre vi os Ustras, Curiós e delegados Fleury: tão primários e tacanhos que nem sequer aquilatavam o quanto seus atos eram hediondos. Mereciam expiar seus crimes em longo cativeiro, claro, mas muito mais culpados foram os que tinham plena consciência do que faziam ao abrirem as portas do inferno. Oportunistas como o Delfim Netto, que lhes retiraram as focinheiras ao assinarem o AI-5.]

Outra heresia de Arendt foi apontar a cumplicidade de alguns judeus com os carrascos: os chamados conselhos judaicos, na Alemanha e na Polônia, haviam ajudado os nazistas a confiscarem bens, arrebanharem as vítimas e as enviarem para os campos de concentração. Era uma informação que preferiam esconder, por motivos propagandísticos óbvios.

Foi o suficiente para desabar uma tempestade de críticas sobre Arendt, que passou a ser tão estigmatizada pelos judeus (inclusive os progressistas), como, digamos, Joaquim Barbosa pelos petistas.

Ela foi de uma dignidade exemplar, não recuando um milímetro. 

Daí merecer hoje nosso enfático reconhecimento, não só por pela relevância e atualidade de sua obra, mas também por haver sido uma pensadora que teve o vislumbre do ovo da serpente e se manteve fiel a tal visão, resistindo às fortíssimas pressões oriundas do seu círculo. Se dependesse dela, Israel continuaria sendo o dos kibutzim, não o dos pogrons.



sábado, 11 de janeiro de 2014

CORPOS CRUZADOS



autor: Jader Resende

    Maldita hora em que subi naquele pau de arara, é nisso que dá sonhar acordada. Foram duas semanas de dura viaje, uma grande lona cobria toda carroceria do caminhão, arriávamos as laterais para nos proteger da chuva ou vento. Em pouco tempo as crianças se ambientaram, sempre com a boca cheia de farinha, rapadura, cana, laranja e tudo que podiam alcançar ou davam a elas, rastejavam por baixo dos bancos esmiuçando tudo a procura de num sei o que? Eram as únicas no caminhão e todos redobravam os cuidados para não caírem. Às vezes vomitavam de tanto comer. Minhas orelhas ficavam vermelhas e a cara inchada de vergonha, não estava acostumada a ver tanta gente junta, só na festa da padroeira, mesmo assim por pouco tempo e devoção.  À noite parávamos na beira da estrada, todos se acomodavam como podiam nos bancos, e assoalho. O motorista abria embaixo da carroceria  uma caixa de madeira, a tampa formava uma mesa onde cozinhava feijão com carne seca e ali mesmo armava sua rede. De madrugada, ocupávamos os bancos de madeira atravessados na carroceria e voltávamos para a estrada. Éramos uma desconhecida família, sempre repartíamos o pouco que tínhamos, o mais leve mal estar logo era combatido por ervas aparecidas de algum embornal e o motorista parava para fazer chá no seu fogareiro. Vários destinos e um só rumo. No fim da estrada cada um seguira seu rumo sem destino. Não se falava do passado ou futuro,  um só corpo e só aquele momento importava,  como se estivéssemos escondendo o passado de vergonha e futuro de o medo. Em todas as cidades que parávamos, descia aquele monte de gente retraída dentro de si, visto como leprosos, evitavam chegar perto, existia sempre alguém cochichando e debochando dos condenando por fugir da caatinga calcinada, onde o sol nada deixa apodrecer, onde tão logo morre vira pedra. A seca empurrou à agente para aqueles poucos dias de pura união.

O arrependimento sempre acompanhou Marialva. Largaram a casinha de taipa sem porta e janela naquela terra esvaziada dentro do nada, e deste nada, sobreviviam. O fogão de lenha improvisado no terreiro, às panelas de barro cosido, era tudo que tinham. Ao nascer do sol caçavam animais no caminho para a cacimba, com sorte traziam na volta cobra, lagarto ou sarigê e um pouco de água, as dez já se tornava impossível caminhar sob o sol, à tardinha saiam pra caça ou voltavam à cacimba. Muitas vezes não conseguia pegar água por vários dias a espera que ela voltasse a brotar. Quase nunca se falavam ou nada tinham pra falar, sempre foi assim, não havia presente, passado, futuro. Os dias eram iguais. O sol estuporando tudo pela frente, sem uma nuvem no céu, somente pés de mandacarus e galhos secos, achava que as plantas cresciam sem folhas e depois morriam sem ela perceber.

Agora morava num apartamento com água, luz e conforto que nunca tinha visto, mas sentia falta de acordar antes do sol raia, meter os pés no chão, caminhar até a cacimba vendo o dia nascer, encontrar os visinhos que nem mesmo sabia onde moravam. Lá pelo menos não veria esse monte de coisas que não podiam ter, é tudo proibido, nem uma soneca de tarde existe, aqui ninguém se dá conta que gente come gente e gente é comida de gente.

Lá fora caia uma garoa fina, o frio entrava pelas frestas dos janelões misturado ao barulho dos carros que seguiam lentamente na avenida numa procissão interminável, buzinadas de desesperados motoristas, sirene de ambulâncias e viaturas da policia entravam e saiam pelo portão da casa quebrando a monotonia.

Passos apressados, choros engasgados, a opacidade de uma dor calada e o estalar abafados de portas e gavetas davam cadencia a tristeza impregnada no ar. Às flores dos azulejos iam até o teto numa sequência repetitiva, cansativa e enjoada. Em uma das salas estaria seu marido sem vida, frio como tudo ao redor. Nunca mais o ouviria protestar contra o governo, falar mal do esfomeado supermercado ou ficar revoltado com seu time que foi rebaixado. Funcionários passavam apressados em direção a saída. Por um instante pensou no jantar dos filhos que ficaram na casa da vizinha. À medida que a noite chegava os carros diminuíam, podia-se ouvir através da parede vozes e passos medidos e pausados. As viaturas e ambulâncias se amontoavam nos gramados daquela grande casa. É tão grande que se esqueceram de mim, não importa, não tenho pressa. Falava com seus pensamentos. Da janela podia ver o movimento das pessoas apressadas.

Do outro lado da sala uma mulher envelhecida pela vida, com o corpo curvado como se quisesse penetrar em si mesma, suas roupas demonstravam extrema pobreza. Pequena como era chamada permanecia de olhar firme no mármore raiado a seus pés, passeava por sua vida sem olhar pros lados. Não via Marialva, não tinha forças para conduzir o presente, às vezes mexia o corpo e despertava dentro de um pesadelo. Não sentia o frio da sala. O vestido de chita surrado, empalidecido e a blusa de crochê aos poucos se desmanchava sem perceber. O pensamento parecia ter pernas, corria aqui e ali numa velocidade alucinante, estava perdida num labirinto de problemas. Às vezes acreditava que iria colocar os filhos na escola e quem sabe até, comprar uma televisão pra assistir novelas.

Com o emprego do Severino a vida iria melhorar. Pensava nele com carinho, homem esforçado, aprendeu a ler, arranjava a pagina policial de jornal dormido pra se exibir lendo manchetes, sabia tudo que era de coisa da policia, ficava orgulhoso lendo pra gente. Prestou exame numa firma de segurança e foi aprovado, começou hoje cedo e já foi promovido defunto. Deus o tenha. No sertão um marmanjo forte e destemido sempre morre de emboscada. Depois do café, correu para vestir a farda nova e se mostrar, andou de um lado pro outro estufando o peito e pisando duro, dava pra ver que sentia os pés protestarem dentro do coturno novo.                                                                                   —Mulher! Estou bonito?  Vou tirar um retrato no lambe-lambe da praça e mandar pro nosso povo. Pequena, desta vez vamos tirar o pé da merda. Primeiro vamos morar na Vila das Belezas. Botar os meninos na escola prá não passar o que passamos. Foi pro quarto e voltou cabisbaixo dobrando a farda com todo cuidado, colocou peça por peça numa sacola, não podia andar fardado pela favela, seria morto e sua família expulsa.

Pequena tinha vontade de abraçá-lo, beijá-lo como na noite de São João quando se conheceram, pularam fogueira e trocaram juras de amor, mas não acreditava em nada. Depois que saíram da roça, sentiu o que é pobreza, descriminação e desumanidade, tinha tantas magoas que já não acreditava  em quase nada, estava fria e o Zé não se dava conta. Não sabia mais beijar ou abraçar, às vezes acontecia de se abraçarem quando fazia amor, mas era só prá se acomodarem melhor. Mesmo assim sentia-se bem com a felicidade do Zé. Era o que procuravam quando saíram do sertão. Talvez a vida não mudasse, mas pelo menos tirariam os filhos da rua.  O ano passou rápido desde que chegaram a São Paulo, a vida cheia de dificuldades ficou pior, uma barulheira dos pecados, o ar abafado cheirando a coisa ruim e esse montão de gente querendo tomar o que agente não tem, um querendo engolir o outro, pensava com raiva. Na roça, o silencio da noite era iluminado pelas estrelas e vigiado por São Jorge na lua. Desde que chegou nem o céu via. Lembrava do caçula que deram a Nego D’água pra batizar, sabiam de sua vida, mas ele gostava de crianças, vivia dizendo. —Dona Pequena, o próximo branquinho eu quero batizar e assim foi. Teve festinha com bolo e batuque a noite toda, agora estava preso por assalto à mão armada. De vez em quando levavam o menino pra ele ver e ele dizia

-—Dona Pequena, meu afilhado não ta precisando de nada? Eu estou preso, mas não estou morto, ainda mando no morro, já dei ordem pro meu pessoal levar dinheiro todo mês pra educar esse bacuri e a senhora não aceitou. Sou padrinho, pela lei de Deus ele é meu protegido, vocês deviam aceitar esse dinheiro. Quero ver esse moleque doutor advogado pra não andar de trabuco na mão, até preso agente tem que dormir de olho aberto, botar a turma no batente, pagar a organização, dar na mão pra esse e aquele, sem besta com o advogado que leva o seu todo mês. A labuta dobra. Se dormir de olho fechado amanhece defunto.

Logo que chegaram à favela, duas mulheres acompanhadas pelo líder comunitário subiram o morro, iam de casa em casa perguntando:

 —Quantos filhos a senhora têm?

 —Dois, respondeu tentando esconder o rasgo no vestido que deixava aparecer suas coxas mal tratadas, mas bonitas.

Sem que decidisse nada, marcaram pra comparecer no outro dia ao hospital, disseram que iria fazer um tal controle de alguma coisa que não entendia, dariam alimentos pra família, uma vez por mês durante um ano. As vizinhas falaram de uma operação pra pessoa não ter filho. É certo que tinha uma vida miserável, mas rezava muito e confiava em Deus, mas também não queria ter mais filhos pra virar bandidos.

Dias depois estava de volta do hospital com remédios e caixas de comidas, não resolveriam a vida, mas ajudaria a viver mais um pouco.

Silenciosamente uma porta abre e um homem magro de cavanhaque e bigode fino entrou na sala e perguntou:

Seu nome moça? Virou-se e lá estava um olhar duro e voz sem vida, o cabelo caído na testa dava-lhe um jeito desprotegido atrás daquela avental branco em seu corpo.

—Meu? Respondeu meio sonâmbula.

—Sim, senhora.

—Maria das Dores Ferreia..

—E da senhora? Virou-se para Marialva.

—Marialva dos Reis Silva.

—Por favor, esperem um minuto. Saiu com passos lentos e silenciosos.

Marialva e Pequena se olharam timidamente. Marialva atravessa a sala e senta-se ao lado de pequena e pergunta.

—Era seu parente?

—Sim meu marido.

—Também perdi o meu hoje de manha. Suspirou vagando o olhar pela sala.

—Tinha só vinte e cinco anos. Marialva falava como se não houvesse ninguém na sala.

— Quando chegamos à cidade foi trabalhar de entregador, terminou o primário e o ginásio em menos de um ano num tal de supletivo. 

Passou por diversos empregos sempre ganhando pouco, junto com o pouco de Marialva deram uma pequena entrada e vinte anos de prestações num pequeno apartamento. Desempregado a mais de um ano e processo de despejo por quase um ano de atraso nas prestações.

—Desde ontem notei algo estranho. Pela manha estava eufórico, olhar tenso e penetrante, não resmungou contra políticos e do seu desemprego, como sempre fazia na hora do café. Antes de sair foi até o quarto dos meninos, levou mais tempo do que de costume olhando os garotos dormir.

Da porta do quarto pensava. Prometo que arranjo um bom dinheiro, largo está porcaria de apartamento financiado e a gente volta pra nossa terrinha compramos uma fazendinha e vou plantar pra comer. Lá ninguém vai pisar na gente como aqui.

Vestiu sua melhor roupa, saiu dizendo que ia apresentar-se para um novo emprego.

A rua ainda molhada pela garoa da madrugada deixava o ar úmido e fresco, pessoas andando apressadas a caminho do trabalho, a fumaça dos carros começavam a deixar um rastro pesado e criminoso no ar. Assim eram todos os dias, mas para ele  estava diferente, não conseguia medir as conseqüências ou ver o futuro, era como se caminhasse pra dentro do nada, sentia-se vazio mas determinado.

Pegou o ônibus e foi para o outro lado da cidade, não podia ser reconhecido. Com um revolver na cintura sentia-se superior, gostava desta sensação de poder que a arma lhe dava. Da janela do ônibus viu o banco passar, seguiu por mais três paradas e desceu, voltou caminhando lentamente. Parou em um bar pediu um rabo de galo e ficou olhando o banco do outro lado da rua, bebeu a cachaça e ficou imaginando. Vou agir rápido, talvez não dê tempo de levar muito dinheiro, pensou.

Já ia saindo quando o garçom grita:

Hei moço, o senhor esqueceu-se de pagar. Falou meio sem jeito, ao ver o olhar duro e estranho daquele homem com as mãos no bolso do paletó.

Deu sua única nota e não esperou o troco.

—Só dá maluco, primeiro sai sem pagar, depois deixa o troço. Retrucou o garçom.

Afastou-se do bar e voltou pelo outro lado em direção ao Banco, andava apressado, subiu de uma só vez os três degraus. Abriu a porta de vidro e parou. Suas pernas não mais o obedeciam. Tremia todo o corpo, a mão suada no bolso do paletó apertava o revolver, quando surgiu em sua frente uma moca perguntando.

—Posso ajudar?

Assustado e possuído pelo desespero gritou:

—Isso é um Assalto, todo mundo quietinho, só quero o dinheiro do banco. Zeferino não conseguia pensar. Rapidamente sacou da arma.

Frente a frente, dois tiros e um só estampido. Cambalearam. Novos tiros foram dados, caídos, ainda trocaram tiros a esmo.

Zeferino pensou na mulher, nas crianças, viveu toda vida naquele instante, ainda com a arma apontada pro assaltante praguejou:

—Desgraçado, me acertou logo no primeiro dia.

Zé, ainda lúcido arrasta-se pelo chão na tentativa de continuar, tentou passar sobre o corpo de Zeferino atravessado no caminho e não conseguiu. Já sentindo que a morte o espreitava amaldiçoa.

—Guarda de merda, até morto o sacana me atrapalha.

A farda nova de Zeferino manchada de sangue seu e do Zé não mais brilhava como de manha.

Logo uma multidão se junta ao redor dos corpos, nada falavam, se limitavam a levar sua parcela de culpa para casa diante da brutalidade e indiferença da sociedade.

A porta se abriu, o homem de bigode fino chamou as duas senhoras:

—Por favor, queiram me acompanhar. Passaram por diversas portas e num grande salão encontraram duas macas de ferro, ali estavam os Zes de terras distante que morrem cedo.

Marialva e Pequena olharam os corpos sem nenhuma expressão.

—Por favor, senhoras, queiram confirmar a morte dos seus maridos e assinar esta declaração e esperar a liberação dos corpos.

Abraçaram-se e um choro abafado sai de dentro de suas almas.

Com a morte do Zé, o apartamento passa a pertencer à viúva sem nenhuma divida ou prestação, a firma onde Zeferino começou a trabalhar pagou um seguro para pequena. Juntas resolveram vender o apartamento e compraram uma casa na vila das Belezas com três quartos, um para os meninos, outro para as meninas e um para elas. Trabalhavam como diaristas e lavavam roupas para fora e no frio da noite esquentavam-se debaixo de um cobertor, trocando segredos e se amando ternamente.

—Depois de amanha faz um ano lembra-se? A voz de Pequena ressoa com a força da paixão no silencio da noite, ouvi-se o barulho da chuva batendo nas telhas de barro cozido. Sonharam com aquela casa, um pequeno jardim de margaridas e bem-me-quer, um quintal nos fundos onde pudesse estender roupa,  as crianças brincarem e sentir a terra em contato com os pés.

—Não fique encafifando coisas. Amanha encomendamos uma missa e festejamos nosso primeiro aniversário na sexta.

—Nosso primeiro encontro foi no mesmo dia, ainda fico aturdida só de pensar. Recordou os ladrilhos, o ar pesado e úmido, os corpos sobre as duas mesas cobertos de sangue. Pareciam indefesos, indiferentes, pela primeira vez na vida sentia-me sem saída.

—Eu sei, devemos prestar homenagem, e comemorar com alegria nosso encontro. Falou com tristeza.

—O que importa é que estamos bem. Assistiremos a missa e na sexta ficaremos até tarde comemorando nosso primeiro encontro.

—Será que não faz mal comemorar? Eram nossos maridos, trabalhadores, gostavam das crianças, só não deram sorte.

—Não fique aperreada, eles estão mortos. Foi à vontade de Deus, estamos educando nossos filhos, temos esta casa, trabalhamos duro, é certo, mas estamos felizes. Marialva procurava não se levar pelas lembranças tristes.

—Morreram na mesma hora  e lugar. Deu até no jornal: “Assaltante e segurança morrem duelando”.

—Foi esse destino que nos deu vida nova. Isto nós devemos a eles. Não se esqueça de que no sertão eles também estariam mortos e nós, viúvas,  nem enterro teriam. As viúvas da seca que passam á vida esperando que seus homens voltem, criam os filhos sozinha e Deus, sem chance de encontrar outro amor, entra dia e sai dia e nada, nunca mais dão noticias. E elas só labutanda e se masturbando abafado embaixo do cobertor pra ninguém ouvir.

—Conheci muitas, minha mãe era uma.

—Eu sei, a minha também. A labuta era grande, elas tinham garra, participavam de tudo, nas festas da padroeira eram pura alegria, quando alguém morria, ficavam tristes, até choravam.  Na caatinga enterro de gente um pouco mais graúda é coisa festiva, lá estavam elas, tinha velório a noite toda com viola, café, cuscuz e inhame cosido, muita ladainhas e excelência com cantadores e sabedores de versos cantavam suas rimas encomendando a alma do defunto que muitos nem conhecia, estas mulheres sofridas e calejadas sempre se lembravam dos maridos e resmungavam pelos cantos. —Os desavergonhados pelo menos devem estar vivos em algum lugar desse mundo de Deus.  Os homens que ficam morrem antes dos trinta, mas ninguém mata ninguém sem ser inimigo. Aqui, colocam gente pra matar gente sem mesmo se conhecerem.

—É triste, eles nem trinta anos tinham. O enterro nem parecia ser de gente, só eu, você e as crianças.  Não choramos um pingo de lagrimas, ninguém para encomendar a alma, não deu tempo de fazer uma reza, nem alça tinha o caixão, se agente não fosse ao enterro nenhuma diferença faria, seriam jogados, como foram, naquele palmo de terra numerado, ninguém ao seu redor tinha nome, só numero.  Diziam que ali enterravam os indigentes, fazer o que?Além de retirante, pobre era também indigente e eu nem sabia que agente era tanto assim.

—Eu lembro, foi preciso Nego D’água de dentro de a prisão dar ordens ao advogado pra fazer alguma coisa, só dessa forma conseguimos colocar nomes e flores de plástico.

—Chega pra cá e deixa a tristeza prá lá, minha pequena. Como uma gata manhosa procura o calor do corpo de Marialva e beija seu rosto carinhosamente.

—Vamos falar de outras coisas, beber um pouco de conhaque e olhar em frente.  Amanha é feriado e podemos dormir até tarde.

—A cachola esta fervilhando de coisas, parece ter sido ontem. A vida tem dessas coisas, se eles não morressem nunca nos conheceríamos.

Marialva levanta-se vai à cozinha e volta com uma garrafa e diz.

—Quando senti nossos caminhos cruzarem, um clarão cegou-me por um instante, pensei que fosse raiva estivesse tentando culpá-la, virei-me de costa e continuei com sua imagem em meu pensamento, sentia um apertume no coração que você nem imagina. Sentia-me só, desamparada numa cidade grande, demorou um pouco pra me ver em você, éramos iguais naquele momento. Mesmo sem saber, sua presença naquele banco me provocava. Seu vestido um pouco rasgado mostrava suas coxas, um frio corria meu corpo quando olhava suas pernas.

—Aquilo era hora de secar minhas coxas. Oxente! Sorriu fingindo estar bronqueada. Só pensava em voltar pro Sertão, criar meus filhos queria ver o rio Doce outra vez, ainda me lembro de suas águas.  Nunca tinha visto tanta água na vida, haja Deus de tamanha beleza. O rio descia mancinho na mesma direção do pau de arara, dava a impressão que nos seguia ou indicava o caminho pra terra prometida, seguia dando voltas sem sentido como se quisesse banhar com suas águas toda a sua volta sem perder o rumo do mar.  Algumas vezes se distanciava da estrada me deixava aflita. Qualquer morrinho o deixava lá embaixo fino e frágil de dar dó. Quando nos desviávamos ou contornávamos morros em direção oposta, ficava ansiosa para vê-lo, surgia calmo, sereno seguindo indiferente. Na entrada das cidades o perdia de vista, ficava ansiosa em seguir viajem para vê-lo. Aproveitávamos para ir ao banheiro, encher vasilhames de água e ficar dentro do caminhão com medo dos olhares agressivos do povo.  Não tirava o rio do pensamento, numa única vez quando saímos de uma cidade sem menos esperar atravessamos uma ponte, passamos sobre ele e esta foi a ultima vez que o vi. Gostaria de tê-lo seguido até o mar.

—Também não via outro jeito, ia voltar pra minha terra. Estamos bem aqui mesmo, não é? Marialva deu uma entonação meiga e carinhosa a pergunta, passando a mão pelos seus cabelos. Um dia, quando as crianças forem donas dos seus narizes vamos conhecer o mar. Como você ganhou este apelido que eu gosto tanto.

—Eu sempre fui miúda, ele foi meu primeiro namorado e só me chamava de Pequena e logo, logo, todo mundo passou a me chamar assim. Eu gosto de te chamar de alva.

—Você me chama com tanto jeito. Conversavam na cama sempre que podiam dormir até tarde. Bebiam lentamente, o calor do conhaque aos poucos tomava conta do ambiente. Seus corpos vão se tocando suavemente.

—Alva, eu nunca pensei em tocar no corpo de outra mulher.

—Nem eu. Não sei como aconteceu. Acho que estávamos desamparadas e o melhor que fizemos foi nos unir para sobreviver nesta cidade.

—Acho que o destino nos deu esta oportunidade e a ela nos agarramos. ——Não acredito que estivéssemos num desamparo desesperador, São Paulo é fria, chega a ser repulsiva, mas tenho certeza que encontraríamos uma forma de sobrevivência. Alem do mais eu gosto daqui, gosto de passear no Ibirapuera, na praça da republica e aqui é bem melhor do lugar onde nasci.

—Quer mais conhaque? Vou fritar um pouco de tira-gosto pra nós, Sem esperar resposta levantou-se, pouco depois regressou com um prato de torresmo e se recostou à cabeceira da cama.

—Adorei encontrar a minha Pequena.

—Naquela primeira noite que fizemos amor, estava assustada, não sabia o que fazer ou como fazer, fechei os olhos e procurei não pensar em nada e quanto menos eu pensava, mais eu sentia sua pele quente ir aos poucos tomando conta do meu corpo, naquele momento não conseguia controlar meus movimentos, estava fixada em seu calor.Seus movimentos tinham vontade própria estavam me levaram à loucura, suas mãos iam dos meus lábios a minha chota, seus carinhos ao me tocar sempre me deixam tomada de desejos  

 Beijou Pequena, foi roçando os lábios no seu rosto, mordiscado sua carne lisa, enfiou a língua em seu ouvido e sussurrou: Eu ti amo.

Pequena deu um grito surdo e suave. Gemeu prazerosamente e disse: Estou arrepiada e molhadinha. Seus olhares se cruzam, os lábios se unem e seus corpos se enroscam ao carinho do amor.

O dia amanhecia preguiçosamente, a luz penetrava no quarto e suavemente sombras e linhas desenhavam formas perdidas nos sonho daquela noite de amor.

—Marialva. Às vezes sinto falta do meu homem.

—Eu também, mas logo passa. Tem coisas que ainda mexem comigo. Ele era meio bruto, não tinha esse carinho demorado que atravessa a noite, mas ainda lembro-me dos seus incompreensíveis sons na hora do gozo, lembro-me de todos eles, quando me penetrava sua carne dura me empurrando por dentro, aquele entra e sai avexado provocava bolhas de ar, seu corpo pesado batendo forte no meu, cada detalhe tenha seu som, conhecia todos eles, antes, durante e depois, os pés da cama arranhando o cimento, as molas do colchão cada uma com seu jeito de protestar, o ritmo de sua respiração muitas vezes se misturavam ao meu e fazíamos um só barulho. —Você não se zanga quando falo assim, não é?

—Não me zango, gosto de ouvir você falar. Nunca prestei atenção em som algum, hora nenhuma. Fizeram silencio, Voltou a falar num tom triste e pausado.

—Às vezes ficava na cozinha perdida, contando os ladrilhos das paredes sem interesse em saber o total, costumava estar presente sentado numa cadeira perdido em seus pensamentos sem me ver, ficava horas assim, sem nada acontecer. Acho que nos acostumamos com nossas ausências. Eu pelo menos tentava estar presente e os ladrilhos me seguravam quando tentava escapulir, aquele imenso branco, o montão de quadradinho que sempre se misturavam, me obrigando a começar a contar outra vez, uma conta sem fim. Sempre misturava com a noite em que o conheci, ele chegou de mancinho, nos olhamos acanhados, bastou o olhar para saber que estávamos namorando, eu nem dormi naquela noite. Novamente voltava a contar os azulejos. As crianças inquietas e insatisfeitas brincavam pela casa percebendo mas sem entender, quando saia pra comprar na feira era como se não existisse, me sentia transparente. Com você eu me sinto viva a todo instante, no trabalho sinto você ao meu lado. É amor que sinto por você. Sinto-me gente de carne osso e desejos.

—Também te amo muito, e penso em você o tempo todo. Beijam-se suavemente.

— Já vi mulheres de mãos dadas até mesmo se beijando, dava pra notar quem tinha pose de homem e quem tinha pose de mulher, nós não somos assim. Somos diferentes em tudo. Será que não temos coragem de assumir diante de todos?

—Se for preciso eu pego na sua mão em qualquer lugar.  Não devemos nos preocupar. Vamos viver do nosso jeito.  Tudo tem sua hora, deve acontecer naturalmente, acho que no momento temos um cantinho nosso, estamos criando nossos filhos e eles já sentiram o nosso amor, e nem foi preciso dizer nada, simplesmente aconteceu.

—Devemos ter cuidado, não sabemos o que podem pensar. Tenho medo que alguma coisa possa mudar nossas vidas. As crianças estão pequenas e percebem com a pureza da alma. Aos poucos, inevitavelmente vão sento contaminadas pelo preconceito, não devemos deixar que façam de nós o que fizeram com nossos finados maridos.

—Não se preocupe, resolveremos um problema de cada vez.  Seria bom se pudéssemos nos casar de papel passado, já pensou, agente no altar sermos unidas pelas palavras de Deus.

—Mas podemos ter a palavra de Deus em qualquer religião ou mesmo na frente de um Juiz de Direito e isso não é possível, portanto vamos deixar o barco seguir as correntezas do Rio Doce rumo ao mar.

—Parece até sina, tudo que é de gente segue o rio em direção ao mar, e vem parar em São Paulo, começo a achar que eles dizem isso pra deixar aquela penca de filhos e arranjar outro amor nesta terra que mais parece um arraial nordestino.

 —Pode até ser. Agora, vamos relaxar.

—Quando vou fazer limpeza, ouço dizerem que isso é uma pouca vergonha, que estão assim porque não arrumam homem.  

—Você já teve seu homem, tem seus filhos e eu também. Falam assim porque não conhecem nossas vidas. O destino nos uniu, não tivemos vida fácil nem agora tão pouco, nos descobrimos num momento muito especial, o que nos uniu mais ainda. A paixão que sentimos não vale nada?

—Puxa você fala bonito que só vendo. 

— Não se aperrei. Coloca sua cabeça no meu ombro quero te fazer um agradinho. Uma suave harmonia flutua em meio a cheiro de conhaque e seus corpos sedentos de prazer, a sensualidade surgia vigorosa em seus corpos com a força de animais adormecidos, seus olhos cintilavam puro desejos, faiscando chamas coloridas da paixão.

                Suas mãos lentamente acariciam seus corpos, explorando íntimos segredos do amor. Trançam suas pernas, coxas coladas nas coxas detonam o ritmo do amor, ardentemente seus lábios se unem num beijo lambuzado. De seus corpos raios coloridos ofuscam a claridade da manhã.

Como se o mundo pudesse esperar, e fossem donas do tempo, suavemente se acariciam em seus mais íntimos e profundos prazeres, explorando cada parte do corpo como se o meio fosse um interminável fim.  As belas damas do baralho fundem suas fendas sobre seus rostos, seus olhos clareavam como focos de luz prateada suas xotas molhadas. Seus corpos unem-se em um só, suas línguas percorrem em câmera lenta desde a racha de suas bundas ao coração de suas xotas, sugando fluidos leitosos, beirando a explosão de chamas multicores da volúpia ardente, desdobrando-se em gozos redobrado.

Fecharam os olhos e sentiram no rosto suas mornas e úmidas contrações deixando no ar o mistério do aroma saído de suas flores de carne desabrochadas no calor da manha. Dormiram até tarde exprimindo nos gestos e formas inconscientes a  pura  forma do amor.

Autor: Jader Resende