sexta-feira, 30 de setembro de 2011

ESTUDOS SOBRE A GANÂNCIA

Mauro Santayana

Em 1899, o jovem Frank Norris escreveu cortante romance sobre a ganância. Não era a primeira vez que se ocupava do capitalismo selvagem e audacioso, que crescia no território americano. Já escrevera sobre o conflito entre as empresas ferroviárias e os agricultores, cujas terras eram invadidas pelos trilhos, sem indenização justa. E em Octopus fizera o libelo contra os trustes e monopólios empresariais que se formavam naquelas décadas. Jornalista, educado em Londres e em Paris, tendo sido correspondente na África do Sul, Norris era um desses homens que combinavam a inquietação intelectual com a ação prática da vida. Entre outros, de seu mesmo nível e da mesma época, foram Jack London e Theodore Dreiser. Norris morreu aos 32 anos, em 1902.
O livro, McTeague, narra a história de dois amigos gananciosos. Um deles, falso dentista, rouba a noiva do companheiro, apropria-se do dinheiro da mulher e a mata. Perseguido pelo outro, os dois entram em luta, no Vale da Morte, e ambos morrem. A obra foi tão importante que Erich Von Stroheim a filmou, em 1924, com o título de Greed e, com tal interesse, que a versão original era de dez horas de projeção. Von Stroheim não escondeu a relação da obra com o capitalismo dos anos 20, também feito de fraudes bancárias, especulação criminosa nas bolsas, de brutal desigualdade social, economia globalizada, causas da Grande Depressão dos anos 30.
Durante as três últimas décadas, sem o eufemismo dos teóricos antigos, a máxima de Wall Street é a de que “greed is good”. A ganância é, em suma, a lei do maior lucro. Há, sem embargo, diferença considerável entre o capitalismo industrial do passado e o capitalismo financeiro de nossos dias. A eficiência do sistema exigiu, em determinado momento, que as famílias confiassem a administração de seus negócios aos profissionais. Ainda assim, manteve-se a cultura de empresa familiar, da qual o fordismo foi o grande exemplo, ao vincular o trabalhador à indústria. Em nosso tempo, as grandes empresas, os conglomerados “industriais” já nada produzem, salvo poucas exceções. São apenas instituições proprietárias de marcas e, eventualmente, de patentes, controladas pelo capital financeiro, que terceirizam tudo e praticamente não têm empregados próprios, a não ser privilegiados executivos, da mesma forma intercambiáveis e descartáveis. A pesquisa tecnológica, o design dos artigos, a ação de marketing, a produção, a distribuição - tudo é terceirizado. Da mesma forma, essas empresas terceirizadas, terceirizam as operações menores. O pessoal de limpeza e de vigilância procede desses fornecedores de mão de obra, que se assemelham aos donos de escravos de ganho, conhecidos no Brasil do passado.
Ao fragmentar-se a operação, o trabalho deixa de ser socializado, o trabalhador perde a capacidade de resistência: não há mais o companheirismo, base essencial a um sindicalismo sólido e aguerrido. Isso agrava ainda mais a alienação denunciada por Marx, principalmente em sua melhor e mais concisa obra, os Manuscritos Econômicos-Filosóficos de 1844. Nesse texto, Marx encontra a chave do sistema: “As únicas forças propulsoras reconhecidas pela Economia Política são a avareza e a guerra entre os gananciosos, enfim, a competição”.
Norris fora influenciado por Émile Zola, com seus romances naturalistas e sociais, e serviria de inspiração a três ou quatro gerações de escritores, fiéis às denúncias contra as injustiças sociais. Depois de Faulkner e Steinbeck, coincidindo com o fim da guerra, o capitalismo administraria também a literatura, mediante as grandes editoras, que publicam best-sellers, mas raramente obras comprometidas com a realidade do mundo e o humanismo. Isso explica, em parte, a impunidade dos criminosos de colarinho branco.
Henry Ford desprezava as cotações das ações em bolsa. Seu argumento era o de que o valor real de seus ativos não se alterava com a especulação dos indolentes, que viviam de negociar papéis. Ele sabia o valor de cada um de seus negócios – valor real e concreto. Aconselhava a outros empresários que não perdessem o sono com a oscilação do mercado. Suas empresas, talvez mesmo em razão disso, foram das que menos sofreram com a grande depressão dos anos 30. O grande fabricante de automóveis, não obstante as suas posições políticas discutíveis, percebeu a importância do trabalho na prosperidade dos negócios. Para ele, a sua mercadoria – o automóvel – devia estar ao alcance de seus operários. Como não podia baixar mais ainda o preço dos carros, elevou o salário dos trabalhadores, e lhes vendeu automóveis a prestações alongadas.
Anteontem, o New York Times noticiou que, não obstante a crise bancária, que ainda continua, os executivos financeiros tiveram, em 2010, substancial aumento em seus ganhos. Jammie Dimon, do JP Morgan, que havia recebido US$1.300.000 em 2009, teve sua remuneração aumentada para US$ 20.800.000 no ano passado – apesar de o grande banco continuar perdendo dinheiro. TIM Armstrong, da AOL, recebeu US$ 15,300.000 (40%) de aumento, e sua empresa continua operando no vermelho. A lista é grande. Enquanto isso, os Estados Unidos enfrentam uma dívida de quase 15 trilhões de dólares, com o déficit anual de mais de um trilhão, e o desemprego chegou a 9%, o que é um exagero para os padrões norte-americanos.
A ganância cega os homens. O que pode fazer Jammie Dimon com mais de vinte milhões de dólares por ano? Mais alguns milhões de dólares, é certo. Rico com sua arte, Chaplin, em sua autobiografia, despreza os grandes ganhos, com o argumento de que, a partir de certas cifras, o dinheiro perde a sua relação com a realidade: um homem não pode vestir dois ternos, nem calçar dois pares de sapatos, nem viver ao mesmo tempo em duas casas.
Aumentam as advertências contra a insânia da economia mundial, ditada pelos banqueiros aos governos, que eles financiam e comandam. Não são apenas os pensadores de esquerda. Paul B. Farrell, reputado economista e ex-diretor do banco de investimentos Stanley Morgan, é hoje colunista do Wall Street Journal, o diário do mercado de capitais dos Estados Unidos. Em artigo recente, que El Pais reproduziu ontem, Farrell adverte que se os ricos não pagarem os impostos necessários, que sirvam para financiar a retomada da produção e o pleno emprego, com salários justos – isso no mundo inteiro – uma revolução será inevitável. A desigualdade, nos Estados Unidos, é hoje mais grave do que em 1929 – e o fosso entre um por cento dos grandes ricos e os 99% restantes da população se tornou insuportável. Os ricos, no entanto, se movem no plano da ilusão. Eles vivem em ambientes seguros, guardados por mercenários; têm os melhores médicos e hospitais, freqüentam os melhores restaurantes, vivem em outro mundo. Vivem – diz Farrell – como os opulentos dirigentes dos países árabes, sem qualquer preocupação: bem seguros em seus palácios, com a família vivendo no fausto, felizes e distantes da realidade. Mas, tal como ocorreu no Egito, bastará uma pequena fagulha, para o incêndio revolucionário. Farrell relembra os anos loucos, os twenties, que levaram Fitzgerald a redigir o romance-inventário daquela época, The Great Gatsby. Farrell termina de forma profética, ao dirigir-se aos 99% dos outros americanos: não digam que não foram advertidos. Preparem-se para a revolução, ou para outra Grande Depressão. E, desta vez, sem Roosevelt, acrescentamos nós.
Em seu excelente estudo sobre a falta de sentido da economia moderna, baseada na ganância, Greg e Paul Davidson (pai e filho) fazem inquietante pergunta: o que difere o amor da prostituição? E respondem: o amor não tem valor de mercado. Se o amor tiver valor de mercado, podemos concluir que não se trata bem daquele sentimento que une homens e mulheres, por exigência da vida.
A sociedade não pode impedir o lucro, ou seja, a vantagem relativa obtida na troca de bens, com ou sem a intermediação da moeda, esta invenção engenhosa, que “torna iguais as coisas desiguais”, de acordo com Aristóteles (ou o pseudo-Aristóteles, de acordo com alguns autores). A sociedade organizada em estados políticos não só pode, como deve, opor limites à ganância do mercado. Entre outras razões para que os homens criassem o Estado, destacou-se a necessidade de que se impusesse a justiça. Não havendo a consciência de solidariedade, por parte de alguns, as primeiras comunidades criaram sistemas de coerção, que se desenvolveram até chegarem às complexas formas constitucionais modernas.
Um ano antes da Revolução Francesa, o abade Sieyès publicou incitante estudo – “Essai sur les privilèges”, com algumas idéias que seriam o grande motor teórico da Assembléia Constituinte. Nesse estudo, Sieyès vai ao ponto, ao afirmar que as leis garantem os privilégios que deveriam extinguir. A razão é que os legisladores, quase sempre ricos, tratam de se proteger, de assegurar suas vantagens. O controle da moeda é o principal instrumento para promover a justiça ou servir à opressão. Durante séculos seguidos, a moeda vinha sendo emitida pelos estados, qualquer fosse seu sistema, garantida por bens imperecíveis, como os metais. Mesmo assim, a moeda se funda na confiança atribuída aos que a emitem. É uma questão de fé.
O grande homem público dos Estados Unidos, no processo da independência, Roger Sherman, é autor de estudo contra o uso do papel moeda – ou de documentos nele baseados – como meio de pagamento. Ele só admitia um único meio, o metálico, em ouro ou seu equivalente em prata. Sabiamente, ele não confiava nos banqueiros. Sua lucidez, em todos os assuntos de que tratou, foi reconhecida por Jefferson, com o juízo definitivo: Mr. Sherman, de Connetticut, é um homem que jamais disse alguma coisa tola, em toda a sua vida.
Os Estados Unidos se tornaram o único país que emite meios internacionais de pagamento, desde 1944, com o encontro de Bretton Woods, quando o dólar foi reconhecido como moeda internacional – teoricamente garantido por ouro ou prata. Em 1972, Nixon mudou as regras do jogo. Com a crise do petróleo, e a fácil previsão de que o FED emitiria bilhões a fim de compensar, com a inflação, a alta do preço do combustível, houve pressão dos portadores de créditos em dólares para receber em ouro, e os Estados Unidos declararam que não mais honrariam seus bilhetes com os metais, mas sim, com os ativos nacionais, que são, como qualquer um pode concluir, intransferíveis.
Calcula-se que circulem, hoje, no mundo, mais de 600 trilhões de dólares, em moeda e em títulos norte-americanos (a maior parte deles, nos famosos “derivativos”, que trocam de dono centenas de vezes por dia, nas especulações cambiais): quarenta vezes o PIB dos Estados Unidos. Quem ganha com isso é o sistema financeiro internacional, dominado pelos estelionatários de Wall Street, de que é modelo Mr. Madoff.
Greg e Paul Davidson, em seu livro, dão o exemplo de economia solidária na reação dos homens diante das grandes catástrofes - como as inundações, os terremotos, as epidemias. O sistema financeiro internacional é mais do que terremoto, tsunami ou epidemia. Seus interesses movem as guerras, determinam o desenvolvimento tecnológico que lhes serve, destroem a natureza e pervertem os homens. Até que o instinto de sobrevivência da espécie nos salve.

Buscado no Mauro Santayana

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Pequeno Grão de Areia - Granito de Arena (2005)

 
(EUA, 2005, 61 min. - Direção: Jill Freidberg)

Um documentário que todos os professores do mundo deveriam ver.
"Grain of sand" fala sobre a luta dos professores de Oaxaca no México, país governado há mais de 70 anos pelo PRI, famoso pela corrupção e alinhamento aos interesses dos EUA . O filme trata de como a destruição da educação é um projeto articulado a partir de diretrizes internacionais.

Há poucos anos, alunos, pais e professores fizeram passeatas contra a privatização das escolas técnicas, exigência do Banco Mundial e FMI. O Governo respondeu fechando-as de imediato. Quando os professores e alunos ocuparam estas escolas, foram presos e torturados em prisões de segurança máxima. Centenas de professores estão mortos ou desaparecidos no país.

As políticas implementadas na educação mexicana são as mesmas que muitas vezes vemos travestidas de “modernas” em muitos Estados do Brasil. O filme proporciona excelentes discussões sobre o que representa a educação na sociedade capitalista neoliberal. O baixo nível das escolas para a população não é um produto da incompetência, mas sim da conivência para formar um geração de semi-escravos, de mão-de-obra barata.
Nas palavras de Eduardo Galeano, “Este é um sistema que arrebenta tudo o que toca: destrói em pedaços; e que nos ensina que se vive para TER e que se vive para trabalhar, em vez de viver para SER”
(Comentários originais: docverdade)

Torrent (Depoimentos em Espahol, narração e legendas fixas em português br)

Torrent (Depoimentos em espanhol, narração e legendas fixas em inglês)

Trailer

OU 

VEJA AQUI PELO YOU TUBE


Documentário que mostra a destruição do sistema de ensino rural no México. Os bancos internacionais obrigaram a privatização e normatização conforme esse modelo ultrapassado que vivemos hoje em troca de empréstimos! E alguns criaticam os Chiapas! Eles só reagiram a implantação desse sistema alienante! Na maioria professores que entendem esse processo de escravidão!
- Libertem-se!
- Consuma com Consciência!
- Pare de dar energia aos bancos e corporações!

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Uma Rosa para a Professora

Cartapotiguar
Por  Edilson Freire Maciel
(Articulista)

 Havia uma rosa no cabelo, no vestido, sobre o birô da professora. As pétalas soltas tingiam de rubro a madeira lisa, escura, tamanho o zelo pelo ambiente de trabalho, qual extensão do próprio corpo. Dele exalava a mistura de cheiros do óleo de peroba e de rosa.
  Ninguém ousava macular aquele móvel que parecia sagrado. Por trás, o quadro negro; nele, escrito em letras cursivas, arredondadas, simétricas, a frase: Bom dia! Sob a escrivaninha, viam-se os lustrosos sapatos pretos da professora em suaves movimentos excitando olhares logo dispersos, reprimidos do desejo incestuoso para com a representação do imaginário de mãe e musa.
   O mais ousado era ser o príncipe do conto de fadas da Cinderela e encontrar, perdido, o sapatinho da professora; talvez ganhar-lhe simpatia, ou um singelo beijo. Eis a intenção de um aluno edipicamente enamorado que pulava ao tentar alcançar uma rosa pendente sobre o muro, sujar a farda de cal, arranhar mãos e braços, até conseguir arrancar um botão vermelho tal o sangue que brotava da mão furada por espinhos.
   Sensação de infinito era quando se olhava para o alto, pois a rosa parecia estar dependurada no céu, a desafiar corações arrebatadores. O esforço heroico contentava-se com um pequeno resultado, fruto de um enorme sentimento, o jarrinho de porcelana branca, manchado; dentro, um pequeno botão em fragrância adornava a sala de aula.
Havia mil rosas no coração da professora; roubaram-nas com os sonhos. Sem eles não há esperança, o trabalho transforma-se numa atividade depressiva, resume-se na relação de trabalho-pão-trabalho, resultando numa educação maçante e desmotivadora.
  O novo paradigma não fecha o círculo; deixa uma abertura para a criatividade na seguinte relação de trabalho-pão-e-poesia, eis a educação livre e criativa que transcende institucionalismos reacionários e entrópicos da superestrutura do poder, tal qual o vigiar e punir, cujo exemplo encontra-se no excelente artigo do Ilmº professor da rede estadual de ensino, Dickson de Medeiros Sales, editado no Jornal de Hoje, a 20 de Julho do corrente ano, com o título: A Greve, o Judiciário e o Professor Jumentinho.
  Nesse artigo, o professor indigna-se com a metáfora chula de um desembargador, que vilipendiou a nobre categoria dos professores, comparando-os a jumentinhos, afirmando que desde criança era contra a greve. Por ele, os educadores não deveriam receber os seus salários. Quanto maquiavelismo!
    Há uma tradição judaica que diz – O professor é mais importante do que um pai. Em nossa tradição nordestina, as boas famílias ensinavam a respeitar os mestres, considerá-los pais ou mães. Pobres dos que não os veneram; desrespeitam-nos e, com nababos vivem da injustiça.
 Haja luz nas trevas jurídicas potiguares. Não era sem razão que Santo Agostinho qualificava os Estados de “magna latrocínia”. É preciso afirmar, o rei está nu, dito não por uma criança ou bufão, na famosa expressão de Calderón de La Barca: Ao rei, tudo, menos a honra. Não precisa ter a estatura intelectual de um Calderón, basta a estatura física dos comuns dos mortais, a sensibilidade para indignar-se.
  Pedagói, escravo, professor, na infância da civilização grega, onde se originou a etimologia do substantivo professor, essa era uma profissão exercida por escravos. Infelizmente, há quem veja a realidade contemporânea com o olhar da infância da civilização ocidental greco-romana, ache que professor é escravo; o estado, único ente de direito.
  Miopia maior é conceber o mundo com o olhar da própria infância, a qual corresponde à fábula oriental do cego e o elefante, que de tanto tatear os membros do animal, nunca chegava a compreender o todo. Entender o todo é compreender as causas e as consequências, foi o que fez Moisés, ao liderar a primeira greve de pedreiros escravos no Egito, levando-os à libertação do cativeiro, sob a orientação de Deus.
  Aristófanes, 450 anos a.c., usou a temática da greve com a sua personagem Lisístrata, que fez a primeira greve de sexo da história, para evitar o recrutamento de jovens para a guerra do Peloponeso, entre Atenas e Esparta. Sem falar nos bebês, que fazem greve contra o silêncio para serem alimentados; daí a velha expressão tão conhecida: “Quem não chora não mama”. Há também os que mamam sem chorar. Não são crianças, mas adultos glutões contra tudo o que é do povo.
  Foi por compreender a história e o direito, que o historiador romano Tito Lívio, 59 anos a.c., legitimou a luta contra a opressão, ao afirmar que as armas são sagradas para quem delas necessita.
  Ser contra a greve é ir de encontro ao universalismo que rege as constituições dos países democráticos. Seria retroceder à Grécia antiga, no poder dos trinta tiranos. Dámocles, com a espada em punho, arrebatada da deusa Themis, seguindo as ordens do “deus” Thiresias, a fechar ágoras, calar vozes, derramar sangue.
Há quem tenha saudades de um passado recente, tenebroso, que enlutou a vida política brasileira, com os seus Dámocles e Thiresias. O ovo da serpente foi chocado para eclodir a falsa aurora, em que não há uma rosa no cabelo, no vestido, no birô nem prenda de botão de rosa.
 Sem metáfora, sob o sapato cor de rosa da professora, uma rosa esmagada a tingir o chão; na alma agitada, quais trigos de Van Gogh na “Tempestade”, vislumbra-se o poema de Gertrude Stein: uma rosa é uma rosa é uma rosa.

Trágico. A rosa que não é rosa!

Ceará: Professores ocupam Assembleia Legislativa e são espancados pela Polícia de Cid Gomes

Língua Ferina


Na manhã dessa quarta-feira, 28 de setembro, os professores do estado do Ceará que estão em greve a quase dois meses foram surpreendidos com mais um ataque do governo Cid Gomes. O governador mandou para Assembleia Legislativa uma mensagem dividindo a carreira dos professores em duas e retirado direitos. Dessa forma, o governo tenta burlar a lei do piso, deixando a grande maioria da categoria sem receber nenhum aumento.
Diante da notícia, centenas de professores lotaram as galerias e o hall de entrada da Assembleia Legislativa. Uma comissão foi recebida pela Assembleia, entretanto, os deputados do PT, PCdoB, PSB e outros membros da base aliada do governo Cid, se mostraram intransigentes em reconhecer o direito dos professores, e mantiveram o regime de urgência na mensagem do governador, mostrando claramente de que lado estão.
Um grupo de professores dormiu dentro da Assembleia, tendo três professores iniciado uma greve de fome. Diversas escolas que já haviam retornado as aulas voltaram a paralisar suas atividades e estão se somando a mobilização.
Nesta quinta-feira, novamente os professores ocuparam as dependências do prédio. A Polícia Militar já aguardava os professores. O Batalhão de Choque agiu com violência e há vários feridos no local e sendo levados para hospitais. Pelo  menos três professores foram detidos.
O clima ainda é de tensão. Alguns professores estão se dispersando, mas o movimento ainda é grande próximo ao plenario, que continua com o acesso bloqueado. Uma comissão dos docentes tenta conversar com o presidente da Casa. A entrada no plenário continua barrada por policiais (atualizado as 13:30h de 29 de setembro de 2011).
A internauta Raquel Tavares registrou o tumulto na Assembleia.


Buscado no Gilson Sampaio

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

As novas táticas da repressão política





Além de utilizar a polícia para perseguir os lutadores sociais, agora, os poderes do Estado movem processos jurídicos para intimidar os ativistas


Por Lúcia Rodrigues*, na Caros Amigos


A ditadura militar acabou, mas alguns resquícios desse passado sombrio nunca foram enterrados e teimam em se perpetuar como verdadeiros fantasmas que pairam sobre as cabeças daqueles que resistem e não se curvam diante das imposições dos donos do poder.

A perseguição aos que ousam se levantar contra as injustiças sociais neste país continua regra. E a criminalização da luta dos ativistas do campo e da cidade, uma constante. Apesar das torturas e dos assassinatos não terem deixado de ocorrer, principalmente nos rincões mais afastados deste país e nas periferias das grandes cidades, a repressão inovou em seu modo de agir. Sofisticou o discurso, para transmitir um ar de legalidade às ações.

Se durante os anos de chumbo, o Estado prendia, torturava e assassinava, pura e simplesmente, sem se preocupar com as consequências de seus atos, na democracia formal lança mão de recursos mais refinados para alcançar seus objetivos. Agora, lideranças populares do campo e da cidade são obrigadas a conviver também com o medo da punição legal.

Uma avalanche de processos é impetrada todos os dias contra ativistas populares de norte a sul do país. Em muitos casos, o aparato processual resulta na prisão dessas lideranças. Esse foi o verniz encontrado para revestir e encobrir as verdadeiras intenções da criminalização dos movimentos sociais.

A aversão a qualquer forma de mudança, que faça pender a balança para o lado dos mais pobres, é vista como uma ameaça real e movimenta a força motriz dessa engrenagem que envolve os poderes Executivo, Legislativo, Judiciário, a mídia, o aparato militar e as forças policiais a serviço do poder econômico.

Peça decisiva nesse cenário, “o sistema judiciário penal sempre foi utilizado para controlar a população indesejada pela classe dominante”. A afirmação não é de nenhum ativista que milita em organizações populares, mas de um juiz de direito.

Justiça tem lado

Rubens Roberto Rebello Casara conhece por dentro o Judiciário brasileiro. É juiz da 43ª Vara Criminal do Rio de Janeiro. Magistrado de uma nova safra de juízes sabe que a Justiça não é cega, surda e tão pouco muda, mas que tem lado, e é o do mais forte.

“Não há neutralidade no Poder Judiciário. Todo mundo julga a partir de valores, de uma visão de mundo. E há uma tradição autoritária, que condiciona a maneira como os processos são analisados. Determinadas causas são rápidas, outras não”, ressalta Casara.

“O Poder Judiciário tem a função histórica de manter o status quo. A criminalização dos movimentos sociais tem esse objetivo, quer evitar que o movimento produza mudanças. É uma proposta conservadora de sociedade”, enfatiza.

O juiz, integrante do Conselho Executivo da Associação dos Juízes para a Democracia (AJD), explica que as lideranças dos movimentos sociais que pressionam por mudanças são vistas pelos poderosos como essa população indesejada que precisa ser combatida.

“A classe dominante quer manter as coisas do jeito que estão. Por isso, trata problemas sociais como casos de polícia. Desqualifica os movimentos, descontextualiza seus protestos, retira a dimensão social e a motivação coletiva e trata como se fossem atos individuais, que precisam ser punidos pelo Estado”, frisa.
Mas a criminalização não ocorre somente contra as lideranças populares. Quem se coloca na defesa dessas pessoas e no resguardo da população mais empobrecida também sente na pele o peso da perseguição. Por incrível que pareça, o juiz Casara é uma dessas vítimas.

Por ter se manifestado contra a forma como foram realizadas as incursões militares, no final do ano passado no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, ele foi acionado pelo Ministério Público, que o colocou sob suspeição para julgar ações referentes a essa comunidade carioca.

“A coisa mais revolucionária que eu disse, é que não se combate ilegalidade com ilegalidade. É impossível se querer combater ilegalidade, com atos ilegais. A atitude (do promotor) foi uma tentativa de controle ideológico”, afirma.

O imbróglio jurídico está feito. Se for declarada sua suspeição, os processos sobre o caso, julgados por ele e que já terminaram, podem ser declarados nulos, porque faltaria imparcialidade e terão de ser reabertos, apesar de terem sido concluídos com a concordância do próprio Ministério Público.

Dossiês da criminalização

Recentemente, foram divulgados dois dossiês relatando as perseguições às quais ativistas de movimentos sociais estão expostos cotidianamente. O enfoque dos documentos se concentra nas lutas que acontecem em áreas rurais e indígenas.
O relatório Conflitos no Campo 2010, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), revela a repressão a que os ativistas que atuam em defesa da reforma agrária são submetidos. Os dados apontam a morte de 34 trabalhadores rurais no período. O número é 30% superior ao registrado no ano anterior.

O número de conflitos rurais também cresceu em relação a 2009. O Nordeste lidera a lista. Bahia, Maranhão, Pernambuco, Sergipe e Rio Grande do Norte são os Estados que registraram o maior índice de conflitos. O documento da CPT revela, ainda, que a perseguição aos que lutam por água ganhou destaque no período. O número de conflitos saltou 93,3% em relação ao ano anterior.

Já o dossiê apresentado pela rede Processo de Articulação e Diálogo, que reúne agências ecumênicas do mundo e entidades brasileiras, além de destacar o desrespeito aos direitos humanos, ressalta que há um processo de judicialização dos ataques aos ativistas. De acordo com a publicação, a criminalização desses lutadores ocorre devido à força que os setores conservadores exercem na sociedade.

“A atuação e busca por transformações de nossa sociedade ferem o interesse de grandes empresas, do latifúndio e de setores conservadores da sociedade que desejam manter as estruturas desiguais e discriminatórias”, ressalta trecho do documento.

A reportagem da Caros Amigos consultou dirigentes de vários movimentos sociais para saber quantos ativistas sofrem os efeitos da criminalização de sua luta hoje, no país, mas as organizações não têm uma contabilização centralizada que permita se chegar a um número preciso. Sabe-se, no entanto, que há inúmeros casos em processo.

A advogada do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Giane Álvares, explica que é frequente, por exemplo, que um mesmo ativista seja réu em vários processos. Essa constatação é replicada para outros movimentos sociais.
Só no Estado de São Paulo estão em curso aproximadamente 50 processos contra militantes do MST. O maior número de processos contra esses militantes se concentra principalmente nas regiões do Pontal do Paranapanema e de Iaras. O Rio Grande do Sul, Paraná, Pernambuco e Pará são os Estados com o maior índice de processos criminais contra os militantes sem terra.

Paralelamente à criminalização jurídica, há a repressão violenta contra os líderes camponeses. “A violência, hoje, não é mais exercida para atemorizar os trabalhadores do campo, mas para executar suas lideranças e impedir sua organização.” Giane explica que há também uma orquestração para deslegitimar a luta social do MST. “Isso é feito pelo Ministério Público, pela mídia, pelos agentes políticos.” Ela cita as três comissões parlamentares de inquérito que foram abertas no Congresso Nacional para investigar o Movimento.

“O Ministério Público Federal quis fechar o curso de Direito para estudantes de assentamentos. E o Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul montou uma estratégia para dissolver acampamentos e fechar escolas em áreas do MST, acusando o movimento de terrorismo e dizendo que as escolas estavam subordinadas às Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia).” Ela destaca, ainda, os processos que tramitam em Carazinho, no Rio Grande do Sul, contra seis militantes sem terra com base na Lei de Segurança Nacional.

Bombardeio midiático

A mídia cumpre papel de destaque nessa orquestração contra os movimentos sociais. O tratamento que foi dado à ocupação das terras da União, invadidas pela Cutrale, talvez seja um dos casos mais emblemáticos de como a luta social é criminalizada pelos empresários das comunicações.

A Rede Globo deu o pontapé inicial no massacre, que foi replicado nos demais veículos da grande mídia. Como sempre, a concessão dos Marinho, obteve informações privilegiadas para chegar ao local antes, e dar a sua versão, que rapidamente se transformou na “versão oficial” dos fatos.

A imagem da derrubada do laranjal por tratores, cedida pela polícia e transmitida em horário nobre no Jornal Nacional, foi a senha para instigar o ódio da sociedade contra os sem terra. Em nenhum momento foi informado quem na realidade era o invasor. A empresa de sucos Cutrale, invasora das terras pertencentes à União, saiu ilesa na versão global.

A Venus platinada preferiu omitir isso do telespectador e tratar os sem terra como terroristas invasores de uma propriedade privada. A mensagem veiculada transformou as vítimas, em perigosos elementos que não têm limites para por abaixo, inclusive, plantações que poderiam matar a fome dos brasileiros.

“Cada vez mais a sociedade moderna utiliza os meios de comunicação contra os movimentos, para produzir consensos e justificar processos violentos contra a luta dos trabalhadores”, ressalta Gilmar Mauro, dirigente nacional do MST.
Ele destaca, no entanto, que essa forma de criminalização não é nova. “Os quilombolas rebelados contra a escravidão eram tratados pelo Estadão (jornal O Estado de S. Paulo) no século 19, como bandidos, ladrões e causadores de problemas para a sociedade. Assim justificavam as ações policias de perseguição e morte dessas pessoas”, revela.

“A farsa montada pela Rede Globo no caso Cutrale serviu para criminalizar o nosso movimento”, enfatiza Gilmar. Várias prisões foram efetuadas para dar o exemplo de como se tratam trabalhadores sem terras que se insurgem contra a injustiça social. Excepcionalmente, o processo foi estancado no Tribunal de Justiça de São Paulo. O acórdão proferido, além revogar as 19 prisões preventivas, declarou a inépcia da denúncia e anulou o processo.

Batalhas judiciais

Mas, apesar de os advogados do Movimento terem conseguido vencer importantes batalhas judiciais, a balança pende desfavoravelmente para o lado da luta. Talvez o massacre de Eldorado dos Carajás, que completou 15 anos no dia 17 de abril, seja o exemplo mais cabal disso.

No episódio, 19 sem terra foram brutalmente chacinados pela Polícia Militar paraense, quando protestavam por um pedaço de chão. Apesar disso, nenhum responsável foi punido. Os dois únicos condenados, o coronel Mario Colares Pantoja e o major José Maria Pereira de Oliveira, continuam soltos.

A luta por reforma agrária está longe de ter um final feliz. O bispo emérito de Goiás e conselheiro da CPT, Dom Tomás Balduíno, tece duras críticas à postura da presidente da República. “A Dilma não abriu a boca na campanha para falar de reforma agrária. E não foi por falta de conhecimento, mas por opção política. O posicionamento do governo é de defesa do agronegócio, da construção das hidrelétricas, do financiamento às grandes empresas. Aqui, em Goiás, a monocultura da cana tem uma série de subsídios. Compare isso com o que recebe a reforma agrária”, indaga.

O dirigente do MST também é pessimista em relação ao tratamento que a questão terá no governo federal. “A Dilma não emitiu opinião em relação à reforma agrária na eleição. Não falou nada na posse, não falou nada depois da posse. Sinal de que a reforma agrária não está na ordem do dia. Mas o grande capital está, e ganhando muito dinheiro”, alfineta.

Moradia popular

A batalha por um teto nas grandes cidades também está a anos luz de ter uma solução. A estimativa de especialistas da área é de que o déficit habitacional no país gire em torno de oito milhões de moradias. Por isso mesmo, a criminalização contra quem pressiona por acesso a esse direito tem sido reprimida de forma contundente.
A presença da Polícia Militar e das guardas municipais na repressão em despejos de trabalhadores sem teto que ocupam prédios vazios é uma constante. Paralelamente à violência direta dirigida pelas forças repressivas, avança uma onda de processos contra os líderes do movimento. Vale tudo para silenciar quem se levanta contra a injustiça social.

Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê, dirigente da Central de Movimentos Populares (CMP), foi perseguido durante oito anos por um crime que não cometeu. Ele era acusado de ter assassinado um homem em uma das ocupações que liderava na capital paulista.

Inocentado, recentemente, por unanimidade em tribunal de júri popular, em que até o promotor pediu sua absolvição, o líder popular pretende processar o Estado. Gegê teve de amargar 51 dias de prisão, enfrentou duas rebeliões nos Centros de Detenção Provisória por onde passou, além de uma tentativa de fuga de presos na delegacia onde também ficou detido. “Não perdoarei o Estado jamais.

Foram oito anos de sofrimento, momentos que ficarão marcados na minha história e jamais se apagarão”, enfatiza.

O advogado Benedito Roberto Barbosa, o Dito, dirigente da Central de Movimentos Populares e membro do comitê Lutar Não é Crime, movimento que lutava pela absolvição de Gegê, considera que o apoio recebido de vários setores da sociedade, inclusive, do senador Eduardo Suplicy (PT-SP), que foi uma de suas testemunhas, contribuiu para sua absolvição.

Ele conta que o promotor do caso, Roberto Tardelli, foi se convencendo da inocência de Gegê ao longo do julgamento. “Ele declarou que estava convicto de que o Gegê liderava uma quadrilha, um bando armado, para intimidar as pessoas nas ocupações, mas foi convencido durante o julgamento de que ele não era nada disso.”

Dito se preocupa, no entanto, com os vários militantes que estão longe dos grandes centros urbanos e não têm a oportunidade de divulgar a perseguição que sofrem. “Quantos companheiros estão sendo criminalizados neste momento por esse Brasil afora”, questiona apreensivo.

A população indígena é uma das que tem maior dificuldade em denunciar a violência sofrida. O agronegócio continua inimigo feroz da demarcação das terras indígenas, mas os fazendeiros reciclaram a estratégia de ação. Agora ao invés de jagunços, contratam seguranças armados para atuar na repressão aos índios e às lideranças campesinas.

O secretário-adjunto do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Saulo Feitosa, revela que o novo método empregado torna mais difícil a responsabilização pela violência empregada. O termo segurança confere um ar de legalidade à repressão empreendida contra os indígenas.

“O Cimi publica, anualmente, um relatório sobre violência. O crime de pistolagem é perene. Antes as fazendas tinham pistoleiros, agora contratam seguranças. Era mais fácil denunciar os pistoleiros, porque eram rotulados negativamente, hoje os seguranças são pistoleiros disfarçados e os crimes caem na impunidade.”

Ele ressalta que a população indígena ao se revoltar contra a violência que resulta em assassinatos acaba sendo punida judicialmente. Em um desses protestos, os indígenas acabaram quebrando alguns objetos de uma fazenda. Vários deles foram presos e condenados. O crime contra a vida não é punido, mas insurgências contra o patrimônio, sim.

Meio Ambiente

A criminalização da luta dos que atuam contra os megaprojetos é uma das formas de repressão mais recente que está em marcha no país. A batalha para barrar a construção das usinas hidrelétricas de Belo Monte, no Pará, e Santo Antonio e Jirau, em Rondônia, que contam com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal, está longe de se sagrar vitoriosa, apesar do impacto desastroso provocado sobre as comunidades ribeirinhas e indígenas vizinhas às obras.

Nem mesmo um reforço de peso, capitaneado pela Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que solicitou ao governo brasileiro a paralisação das obras na hidrelétrica de Belo Monte até que se faça uma discussão com os atingidos, foi capaz de sensibilizar o Executivo federal. O governo preferiu atacar a postura da Corte Internacional classificando-a como uma ingerência em assuntos internos ao invés de atender as reivindicações da população atingida pela barragem.

Além do apoio da OEA, os ribeirinhos e indígenas vizinhos a Belo Monte tem contado também com a intervenção favorável do Ministério Público Federal no Estado, que já impetrou várias ações na Justiça para suspender o empreendimento, embora nenhuma delas tenha sido julgada.

O militante do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), Ricardo Luiz Montagner, afirma que há um padrão no modo de agir na repressão contra os que se levantam contra a construção de hidrelétricas no Brasil.

“O ataque contra os militantes contrários às hidrelétricas é uma ação mais qualificada e selecionada. Os consórcios (empreiteiras) intimidam, negam direitos. Dizem que as pessoas não têm direito e que têm de aceitar o que está sendo proposto.”
Ele considera que essa estratégia é utilizada para baratear o custo da obra. “Não vão cortar no cimento, no concreto, na parte de engenharia, porque aí compromete o projeto. Agora, cortando direitos, não dando o tratamento adequado na parte social e ambiental, aí baixa o custo.”

Montagner integrou, recentemente, uma comissão que foi à Alemanha, Suíça e Noruega o processo de criminalização que os ativistas sociais sofrem no Brasil. “É um processo contínuo, com prisões, difamações, processos. A grande imprensa tenta deslegitimar nossa organização. Acusa de formação de quadrilha, de perturbar a ordem pública.”

Passe Livre

Os protestos contra o reajuste no preço da tarifa de ônibus se converteram nesta década em um dos principais focos da resistência popular nas cidades. Daí a forma como o aparato repressivo tem reagido contra esses manifestantes. O ataque mais recente aconteceu na capital paulista. A contundência da ação das forças repressivas relembrou a forma de agir dos agentes da ditadura militar.

O assistente social Vinícius Boim foi brutalmente espancado por policiais militares e guardas municipais em frente à sede da Prefeitura de São Paulo, no dia 17 de fevereiro, quando participava do protesto que terminou com a repressão policial. Ele teve o nariz fraturado por um chute de coturno, após ter sido derrubado no chão e imobilizado pelas forças repressivas.

O crime cometido? Exercer o direito previsto na Constituição Federal de se manifestar livremente contra o que considera um abuso do Executivo municipal. Mas o tratamento despendido contra o militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e funcionário da Prefeitura foi exemplar e reflete bem como o Estado lida com a contestação a suas determinações.

Vinícius foi submetido a uma cirurgia para reparar os cinco pontos de fratura que sofreu no nariz. Além disso, ainda responde a processo criminal, aberto pela PM, por desacato, resistência à prisão, desordem pública, quebra de patrimônio e agressão a policiais. Ele também chegou a ser acusado, por meio de um e-mail anônimo, de estar no protesto durante horário de expediente de trabalho. A mentira, no entanto, foi rechaçada pela chefia e a investigação administrativa não prosseguiu.

“Teve uma denúncia questionando minha participação no ato. Houve um comunicado da Secretaria pedindo para averiguar isso, mas minha chefe respondeu que eu tinha feito, inclusive, hora extra nesse dia. O caso não foi adiante, porque eu estava dentro da legalidade”, destaca.

O funcionário público municipal reclama que no processo que deveria averiguar a conduta dos policiais que o agrediram, é ele quem é o alvo das investigações.

“As perguntas do capitão se referiam a minha conduta e não a dos policiais.” O assistente social teve de prestar seu depoimento em um Batalhão da Polícia Militar.

DNA de luta

A repressão ao Movimento Passe Livre começou na primeira metade da década em Santa Catarina. O então estudante de história Marcelo Pomar foi um dos precursores dos protestos que se espalharam como rastilho de pólvora para várias cidades brasileiras.

Pomar liderou as revoltas da catraca contra o reajuste no preço das passagens dos ônibus nos anos de 2004 e 2005, em Florianópolis. Os protestos levaram milhares de pessoas às ruas e obrigaram a Prefeitura da capital catarinense a recuar no aumento que já havia sido expedido.

O ativista tem DNA de luta. É bisneto do dirigente comunista Pedro Pomar, assassinado pelo Exército em dezembro de 1976, no episódio que ficou conhecido como o massacre da Lapa. Sua preponderância à frente das manifestações contra o reajuste da tarifa lhe rendeu a ira dos donos do poder. Ele foi ameaçado de morte, preso três vezes e respondeu a sete processos criminais.

Em uma dessas prisões, Pomar chegou a ser capturado por um grupo de homens à paisana. O que contribuiu para a garantia de sua integridade física foi o fato do repórter de uma rádio catarinense, que já o havia entrevistado, ter notado a movimentação estranha do grupo. O jornalista acionou imediatamente a emissora e noticiou o que estava acontecendo ao vivo.

A notícia preservou Pomar de consequências mais drásticas. Ele acabou sendo levado para o 4º Batalhão da Polícia Militar de Florianópolis, onde foi agredido verbalmente. “Provocaram, xingaram de tudo quanto é coisa, xingaram mãe, pai, família”, revela. Antes de prendê-lo, os homens que o levaram deram uma chave de braço para imobilizá-lo.

Seus agressores não sofreram nenhum tipo de punição, mas Pomar teve de se defender dos sete processos que foram abertos contra ele. O ativista contou o apoio da OAB de Santa Catarina e de um advogado famoso no Estado. Não foi condenado em nenhum dos processos. Mas nem ele, nem o MPL teriam condições de custear a defesa, se não fosse a solidariedade recebida.

Ele considera que a criminalização dos manifestantes do Movimento Passe Livre se dá, porque a luta em torno do transporte público se transformou em um eixo central na discussão sobre o direito à cidade. Ainda de acordo com o militante, dados divulgados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontam que há no país 37 milhões de brasileiros impedidos de se locomover por meio de transporte público, porque não podem pagar o preço que é cobrado na tarifa.

Universidade

As lideranças estudantis e sindicais que militam nas universidades brasileiras também têm tido suas lutas criminalizadas. O caso mais emblemático de perseguição registrado contra organizadores de protestos na academia é o da Universidade de São Paulo (USP), a maior e mais importante instituição de ensino superior do país.
Na segunda metade da década ocorreu uma onda de ocupações de reitorias em diversas universidades do país. Os estudantes protestavam basicamente contra medidas autoritárias adotadas pelos reitores.

No caso específico da USP, a insatisfação foi além dos muros acadêmicos. O corpo discente lutava para barrar os decretos assinados pelo então governador do Estado, José Serra (PSDB), que atacavam a autonomia financeira das três universidades públicas paulistas (além da USP, Unicamp e Unesp).

Durante quase dois meses, centenas de estudantes se revezaram para manter a reitoria sob controle e pressionar o governador Serra a recuar na decisão. O Executivo ameaçou com a invasão da Tropa de Choque da PM, que só não foi colocada em prática devido às condições geográficas do prédio, que poderiam resultar em um banho de sangue. Mas mais do que a preocupação com a garantia da integridade física dos manifestantes, pesou na decisão do governo o desgaste político que repercussão de um ato dessa envergadura poderia ter.

Os estudantes continuaram acampados e o governador foi obrigado a recuar para por fim ao impasse. Restabelecida a rotina na Universidade, vieram as retaliações: uma enxurrada de processos contra os líderes do movimento, apesar de ter sido acordado que não ocorreriam perseguições.

Até hoje, oito estudantes respondem às acusações. Quatro destes já se formaram. Mas ao contrário do que se poderia supor, as investigações não foram encerradas. A punição em que esses estudantes estão enquadrados prevê a eliminação definitiva dos quadros da Universidade. Medida aparentemente sem sentido para quem já se formou, mas que no fundo carrega um forte componente maquiavélico.

A postura adotada pela reitoria da USP está calcada em uma legislação do período ditatorial: o decreto 52.906, de 27 de março de 1972, elaborado sob a égide do AI-5 (Ato Institucional), um dos mais contundentes instrumentos do regime militar, que ainda dá o tom para punições disciplinares na mais conceituada universidade brasileira.

Moral e bons costumes

Esse entulho autoritário não foi varrido, apesar de o estatuto e o regimento da USP terem sido reformados após a ditadura, e dá a brecha para que instrumentos jurídicos mantenham significância fora de seu tempo. O decreto trata, por exemplo, do combate a atentados à moral e aos bons costumes, proíbe greves e manifestações políticas. É rico em penduricalhos autoritários que não fariam nenhum sentido em uma universidade democrática.

Não fariam, mas fazem. Na prática esse instrumento jurídico pode impedir o retorno de estudantes indesejados à Universidade. A ex-estudante de Ciências Sociais Maria Fernanda Pinto, a Mafê, é uma das que pode ter a vida acadêmica estancada em função de sua atuação destacada na ocupação da reitoria em 2007.

Mafê se formou em 2008, um ano após os protestos e neste ano pretende disputar uma vaga no mestrado do curso de História Social para ingressar na pós-graduação da USP no segundo semestre. Mas o regime disciplinar uspiano pode impedi-la de voltar a estudar na Universidade.

Se for condenada no processo movido pela reitoria, corre o risco de ser impedida de cursar as aulas, mesmo que seja aprovada no processo seletivo, “Minha punição está baseada em um decreto da época da ditadura que prevê retaliação por comportamento político ou moral”, critica Mafê, preocupada com seu futuro acadêmico.

A socióloga conta que depois dos processos movidos pela reitoria contra os estudantes que participaram da manifestação de 2007, outros processos foram abertos pelo reitor João Grandino Rodas contra mais ativistas que se envolveram em protestos na Universidade.

Ela destaca a ocupação de um dos blocos do Conjunto Residencial da USP, o Crusp, em 2010. O edifício vinha sendo utilizado pela estrutura burocrática da Universidade e os estudantes pressionavam pela ampliação das vagas na moradia do campus Butantã. Resolveram retomar o espaço que havia sido tomado durante a ditadura militar.

Legislação da ditadura

Assim como as lideranças de 2007, os líderes desse protesto foram enquadrados no dispositivo previsto na legislação dos tempos da ditadura. Durante a greve de 2010, estudantes moradores do Crusp buscaram alimentos no bandejão (restaurante universitário) para cozinhar. É praxe repassar a esses estudantes, em períodos de paralisação de funcionários, os alimentos que seriam preparados nos restaurantes da Universidade.

No entanto, na greve do ano passado o coordenador da Coseas (Coordenadoria de Assistência Social), Waldyr Antonio Jorge, responsável pelos bandejões e pelo Crusp, resolveu que os alimentos não seriam doados aos estudantes. “Sempre quando tem greve, os alimentos são distribuídos para os moradores do Crusp cozinharem nos blocos. Mas na greve do ano passado, não foi permitida a distribuição desses alimentos”, frisa Mafê.

Os sindicalistas que atuam na universidade também têm sido alvo preferencial do reitor João Grandino Rodas. Mais de 20 inquéritos policiais foram abertos após a greve de 2007. Quatro sindicalistas respondem a processos judiciais. O diretor do Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp), Magno de Carvalho, é um deles.
Magno destaca a estratégia adotada pelo reitor Rodas na forma de perseguição aos trabalhadores uspianos. “Rodas está agindo diferente dos outros reitores, ao invés de abrir processos administrativos, encaminha para processo judicial, que podem resultar em condenação. É mais fácil para a USP me demitir se eu for condenado.”
Outro sindicalista que está sendo processado judicialmente é Claudionor Brandão.

Ele foi demitido, no final de 2009, pela então reitora Suely Vilela, por liderar manifestações contra a administração da Universidade. Magno destaca que o fato de reitor Rodas ser desembargador, faz com que ele adote outra forma na condução das punições.

“Ele percebeu que a demissão do Brandão pode ser revertida na justiça por ter se baseado em um processo administrativo. Por isso, agora ele opta por mover inquéritos policiais contra os trabalhadores, que podem ser transformados em processos judiciais. A justiça está questionando o fato de ele ser sindicalista e ter sido demitido com base em um processo administrativo”, afirma Magno, referindo-se ao fato de sindicalistas não poderem ser demitidos por exercer esse direito.

O Sintusp denuncia que a Procuradoria da USP, a mando de Rodas, também está pressionando a polícia a agir rápido nos desdobramentos dos inquéritos policiais abertos contra os sindicalistas. Ainda segundo a denúncia, procuradores vão semanalmente à delegacia pressionar para que os inquéritos sejam transformados em processos judiciais.

*Lúcia Rodrigues é jornalista.

Fonte: Caros Amigos