Minha capacidade de ver, sentir deu um pinote com a entrada do computador em minha vida. Este blogue é sem duvida uma canalização para o meu dia a dia dentro do passado e presente do meu trabalho. Com certeza dará continuidade a minha eterna insatisfação, sei que nunca deixarei de ser migrante mas é o resultado do meu jeito de ser.
Na próxima semana, no
Rio, o papa rezará o pai-nosso traduzido em 26 idiomas. É uma forma
de a Igreja Católica prestigiar cada um deles. Na lista não consta,
porém, nenhuma das mais de 180 línguas indígenas faladas hoje no
Brasil. Acontece que a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) adotou como
oficiais somente línguas indo-europeias - inglês, francês, alemão,
espanhol, português, italiano e polonês, que serão usados na
catequese juntamente com outros 19 idiomas "paroquiais",
entre os quais o coreano, o russo, o croata, o letão, o árabe e até
o turco. Das línguas daqui nem sequer o guarani, que é falado em
três municípios do Rio de Janeiro, fará parte do evento.
Se o papa não reza em
guarani não é por falta de ave-maria. Basta que ele desça ao
Arquivo Secreto do Vaticano - um bunker de concreto no subsolo perto
da Capela Sistina com milhões de documentos em 43 quilômetros de
prateleiras. Lá ele encontrará versões do pai-nosso em diversas
línguas ameríndias, incluindo a Língua Geral de base tupi, que já
foi a língua da catequese, além de catecismos, sermões, hinos e
orações em guarani, idioma falado hoje em dez estados do Brasil, no
Paraguai, na Argentina, na Bolívia e até mesmo no Uruguai, onde o
Estado finge que não existe.
Por sua importância,
por ser um ponto de união entre os países da América do Sul, o
guarani foi declarado, em novembro de 2006, idioma oficial do
Mercosul, "em igualdade de condições com o português e o
espanhol". Tal decisão, aprovada na XXIII Reunião do Mercosul
Cultural, obriga a tradução dos documentos para o Guarani, que dois
anos antes já havia sido declarado idioma oficial alternativo da
Província Argentina de Corrientes, sendo adotado depois, em 2010,
como segunda língua oficial nos municípios de Tacuru e Paranhos,
ambos em Mato Grosso do Sul.
Oré Ubá
Mesmo assim, os
milhares de peregrinos vindos de todos os continentes, que serão
distribuídos pelas paróquias do Rio, sairão do Brasil sem saber
que visitaram um país diverso e multilíngue, porque a operação
logística montada pela organização da JMJ, que contempla
tradutores e aplicativos de tradução sonora com ajuda de
smartphones para comunicação em línguas estrangeiras, deixou de
fora as línguas nacionais. É nessa hora que a gente sente saudades
do Policarpo Quaresma.
A tradução de orações
para línguas indígenas tem uma história complicada. Por isso, se o
papa Francisco, que é da Argentina onde se fala guarani, fosse rezar
nessa língua, teria que evitar as primeiras versões do pai-nosso
feitas por alguns de seus confrades que cometeram erros quase
"folclóricos". Pai-nosso, por exemplo, foi traduzido
como oré ubá, o que obrigou os índios a excluir do seu
convívio a figura de um Deus Pai, cuja paternidade era questionável,
e de um Deus Filho para sempre incompreendido. Tanto o oré como
o ubá são inadequados - dizem os especialistas.
Oré, efetivamente,
é nosso. Mas ali onde a língua portuguesa tem apenas uma
forma para o possessivo, o tupi antigo possui duas: quando
o 'nosso' inclui a pessoa com quem estou falando, tenho que
usar iandé ou nhandé. Já quando excluo o
interlocutor, uso oré. O tupi parece mais adequado a um
discurso de transparência. No caso, por exemplo, das emendas
orçamentárias, na hora de pedir verba seus autores usariam o
inclusivo nhandé: a verba pública é nossa (minha e tua).
Mas na hora de aplicá-la e embolsá-la, seriam obrigados a usar o
exclusivo oré, pois o nosso aqui é o do Mateus:
primeiro o meu, depois os teus.
Usar o oré no
pai-nosso não permite que quem reza junto compartilhe o mesmo pai.
Se o papa rezar em guarani dessa forma, estará dizendo aos índios
"pai nosso que não é de vocês", o que pensando bem
talvez seja o mais correto, afinal o tradutor pode ter escrito certo
por linhas tortas. A voracidade com a qual o agronegócio abocanha as
terras indígenas com a cumplicidade do poder político permite que
os índios duvidem se compartilham o mesmo pai com a senadora Kátia
Abreu, católica fervorosa.
Anga e Ceiuci
Além disso, quando na
Oração do Senhor o papa chamar pai de ubá, a
confusão vai aumentar, porque a estrutura de parentesco tupi obedece
a princípios diferentes dos nossos, como esclarece o padre Lemos
Barbosa em seu Curso de Tupi Antigo, oferecido na PUC/RJ nos anos
1950. Ele diz que ubánão tem correspondente preciso em
português, porque denomina tanto o pai como o irmão
do pai, da mesma forma que filho não tem equivalente em
tupi, pois ayra ou rayra significa também filho
do irmão, ou seja sobrinho paterno.
Quando se trata
do filho de Deus, então, a questão se complica ainda
mais, por envolver valores morais, tabus e preconceitos. Posto que a
palavra rayra ou ayra significa também sêmen,
ela foi omitida na tradução de ‘imagem do filho de
Deus’, substituída por "Tupã tay raangaba",segundo
avaliação de Teodoro Sampaio (1885-1937), um engenheiro baiano,
filho de uma escrava, que estudou a toponímia tupi na geografia
nacional.
Por não conseguirem
transferir toda a carga de significados de uma cultura a outra,
reduziram e deformaram a diversidade cultural e ambiental. O papa
Francisco teria dificuldades com a tradução de palavras como alma
(anga), céu (ybaka), yasy (lua), ara (dia ou tempo), mano (morrer),
etc, como observa o padre Lemos:
"Os dicionários
podem dizer que anga significa alma. Mas o conceito
de alma é diferente do de anga, tanto em compreensão
como em extensão. Nós atribuímos à alma características
(por exemplo, a imaterialidade) que não cabem no conceito indígena
de anga. Por outro lado, um índio animista falará na anga
do vento".
Como guardar o sentido
da palavra deputado numa língua indígena? Couto de
Magalhães usou "homens de governo da nossa pátria" ao
traduzir para o Nheengatu a certidão de batismo do neto de Dom Pedro
II. Mas discordou do termo "fada indígena", usado para
designar a figura lendária de Ceiuci - uma velha gulosa que vivia
perseguida por eterna fome - na narrativa coletada no Tocantins, em
1865, com um tuxaua Anambé. Para ele, também a versão do pai-nosso
que circulava na Amazônia era uma fada tupi, isto é, um monte de
palavras desconexas que não expressavam o seu significado original.
O papa perderá uma boa
oportunidade de fazer um gesto simbólico e de celebrar o guarani,
reconhecido e valorizado quando usado em outros espaços sociais.
Afinal, como diz um jesuíta amigo dos índios, Bartomeu
Meliá, “también la historia de América es la historia de
sus lenguas, que tenemos que lamentar cuando ya muertas, que tenemos
que visitar y cuidar cuando enfermas, que podemos celebrar con
alegres cantos de vida cuando son habladas”.
Mas diante de tantas
dificuldades, talvez seja melhor mesmo, pelo menos para os índios,
que o Papa não reze em guarani. Bem ali, ao lado da aldeia Maracanã
onde funcionou o antigo Museu do Índio, na paróquia do Divino
Espírito Santo, peregrinos chineses rezarão em mandarim e cantonês.
Longe dali, distante da Jornada Mundial da Juventude,os jovens
guarani, abençoados por Nhanderu, cantarão seus cânticos
sagrados tradicionais dentro da Opy, em suas aldeias.
José Ribamar
Bessa Freire: Doutor em Letras pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (2003). É professor da Pós-Graduação em
Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNI-Rio), onde orienta pesquisas de mestrado e doutorado, e
professor da UERJ, onde coordena o Programa de Estudos dos Povos
Indígenas da Faculdade de Educação. Ministra cursos de formação
de professores indígenas em diferentes regiões do Brasil,
assessorando a produção de material didático. Assina coluna
no Diário do
Amazonas e mantém o blog Taqui
Pra Ti . Colabora com esta nossa
Agência Assaz Atroz.
Empresários violam direitos de comunidades indígenas nos EUA O
setor empresarial nos Estados Unidos viola os direitos humanos das
comunidades indígenas, revelou nesta sexta-feira (3) a Organização das
Nações Unidas (ONU).
Ao
apresentar um relatório de monitoramento sobre o impacto das atividades
econômicas nos direitos do homem, um painel investigador da ONU
informou que receberam denúncias de que empresas exploram terras
indígenas e desrespeitam as comunidades originárias.
Segundo os especialistas, Washington ainda enfrenta grandes desafios
quanto ao impacto negativo das atividades econômicas nesse campo, após
receber denúncias de práticas generalizadas no setor de serviços
estadunidense que violam as leis nacionais e internacionais.
Neste sentido, indicaram que as iniciativas empreendidas até o momento
são insuficientes para resolver o problema e consideraram que o marco
legal provê espaços para que as companhias o violem.
Além disso, destacaram o efeito negativo nos direitos fundamentais à
saúde e à água, derivado da mineração e outras atividades do setor
extrativo.
O painel, que concluiu recentemente uma visita ao país, apresentará um
relatório com suas investigações e recomendações ao Conselho de Direitos
Humanos da ONU.
Michael Addo, que dirigiu a investigação, recordou que o governo
estadunidense se comprometeu a seguir a Guia de Princípios sobre
Negócios e Direitos Humanos, elaborada pela ONU.
Agora, apontou, tem o desafio da colocá-lo em prática, em todos os seus
aspectos, de maneira coerente e eficiente para que marque uma diferença
real na vida dessas populações. Fonte: Prensa Latina, Vermelho Imagem: Google
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O que aconteceu com as populações indígenas que ocupavam os EUA?
Com
a ocupação dos territórios nos EUA, após a aprovação da Lei do
Povoamento, em 1862, as populações indígenas foram sendo combatidas,
empurradas para fora de suas terras e exterminadas durante o processo de
ocupação territorial.
Milhões
de índios foram dizimados e exterminados, constituindo-se como as
maiores vítimas da Marcha para o Oeste. Com a Lei do Povoamento, o
governo vendia as terras sem a autorização dos verdadeiros donos: os
povos indígenas, que habitavam essas terras séculos antes da chegada dos
europeus e dos colonos. A Lei do Povoamento excluiu os povos indígenas do direito à cidadania,
não os considerando cidadãos norte-americanos. O processo de extermínio
da população indígena foi acontecendo gradativamente; as lutas e os
conflitos entre colonos e índios foram inevitáveis. A partir do momento
em que os colonos adquiriam as terras, através do governo, eles faziam
de tudo para expulsar os indígenas. As grandes empresas, que construíram
as estradas de ferro no interior dos EUA, pagavam atiradores para matar
os bisões (animal que era a principal fonte de alimentação dos
indígenas), assim, com a escassez dos bisões, vários indígenas morreriam
de fome.
Além
das lutas travadas entre índios e colonos, o extermínio dos povos
indígenas se acentuou com a intervenção dos soldados do exército
norte-americano, pois esses realizaram enormes massacres contra aldeias
inteiras. A expansão e a ocupação dos territórios a oeste trouxeram o
fortalecimento da economia norte-americana, porém, em troca da expansão
industrial e capitalista, milhões de índios perderam suas vidas e foram
extintos.
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Esse
é mais um exemplo da política contraditória dos EUA. Washingtom vive
alardeando ser os EUA a terra dos direitos civis e que a sua
"democracia" é a melhor do mundo, um exemplo a ser seguido, no entanto
não fazem em casa o que propoem ao "resto" do mundo. "Defendem"
no Brasil através da suas ONGs e Missões Evangelizadoras aos índios
brasileiros, é claro eles estão pouco se lixando para os indígenas,
querem apenas aproveitar-se das riquezas minerais e botânicas das
reservas que é solo brasileiro. EUA
com sua política externa e seus longos tentáculos invadem as questões
políticas e econômicas das outras nações, com o pretexto de defender os
"direitos humanos", lá vão os EUA a prestar "ajuda humanitária", como
bem podemos ver nos últimos acontecimentos no Iraque, Líbia, e agora
Síria, sem contar toda a trajetória armamentista de seu passado sujo
inclusive com bombas nucleares.
Infelizmente
o governo americano não usa a mesma medida, a mesma "justiça" quando se
trata de resolver os graves problemas da (minoria) que os índios
norte-americanos foram sujeitados, aliás são uma minoria porque foram
dizimados pelo povo e governo norte-americano. E me pergunto que moral tem os norte-americanos para sairem mundo afora a defender quem quer que seja??? Concluindo,
esses norte-americanos, são o mal da humanidade, são uns psicopatas. É
claro que junto com os EUA e sua "democracia"existe muita gente se
empenhando
em ajuda-los a tranformar o mundo num inferno, o que vemos é os EUA
enviando cada dia mais armamentos para Israel massacrar o povo
palestino, ameaças de todos os lados contra a Síria, Irã e agora Coréia
do Norte.
Lema do Governo dos EUA: FAÇAM O QUE EU DIGO (ORDENO), MAS NÃO FAÇAM O QUE EU FAÇO.
Em vários pontos do Brasil estão
ganhando maior gravidade os confrontos entre comunidades indígenas e
fazendeiros que se apresentam como proprietários de áreas
tradicionalmente ocupadas pelos índios. Um dos lugares de maior
intensidade dos conflitos, falando-se, inclusive, na possibilidade de
suicídio coletivo de comunidades indígenas se forem obrigadas a sair de
suas terras, é o estado de Mato Grosso do Sul. A par dos aspectos
humanos de suma gravidade, existe um ponto de fundamental importância,
de ordem jurídica, que não tem sido lembrado e que torna patente a
ilegalidade das pretensões dos que se dizem fazendeiros regularmente
instalados nas terras indígenas.
Com efeito, nas notícias relativas aos
conflitos que envolvem as terras dos índios guarani kaiowá, tem sido
feita discreta menção a um argumento utilizado pelos que se dizem
titulares de direitos sobre as terras e também por alguns de seus
advogados. Dizem eles que se tornaram proprietários por volta de 1940
mediante negociação com o governo do então estado do Mato Grosso.
Mediante doações teriam obtido a propriedade das terras tradicionalmente
ocupadas por comunidades indígenas. É possível que sejam, realmente,
detentores de títulos de propriedade formalmente registrados, o que dá a
aparência de regularidade.
O aspecto jurídico que tem sido ignorado
ou acobertado é a circunstância de que o estado do Mato Grosso não era
proprietário daquelas terras, e assim não tinha o direito de dispor
delas, fazendo doações ou vendas. A raiz da questão jurídica é a chamada
Lei de Terras, que é a Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, que
regularizou o regime de terras no Brasil. De acordo com a Lei de Terras,
quem era titular ou herdeiro de doações de terras feitas pelo governo e
que efetivamente ocupava essas terras com algum tipo de exploração
obteve o direito de ser declarado proprietário. Mas extensões enormes
estavam desocupadas, pois os donatários não residiam nelas e não as
utilizavam para qualquer finalidade produtiva. Essas terras foram então
reintegradas ao patrimônio público do governo brasileiro, surgindo,
assim, a expressão, “terras devolutas”, pois estavam sendo devolvidas ao
proprietário originário. E pelo artigo 12 da Lei de Terras ficou
estabelecido que as áreas ocupadas por comunidades indígenas integrariam
o patrimônio do governo central, que deveria utilizá-las, segundo
expressão corrente na época, para a “colonização dos indígenas”.
Um valioso comentário da Lei de Terras
de 1850 e sua importância para as comunidades indígenas é a obra
clássica de João Mendes Jr. intitulada Os indígenas no Brasil, seus
direitos individuais e políticos, publicada em 1912. Nessa obra ressalta
o eminente jurista que a relação do índio com a terra é de “domínio
imediato”, “congênito”, isto é, um direito originário, que, observa ele,
já foi reconhecido pela legislação portuguesa do período colonial.
Assim, conclui João Mendes Jr., o “indigenato” não é um fato dependente
de legitimação, ao passo que a ocupação pelos colonizadores, como fato
posterior, depende do atendimento de requisitos legais e fáticos que a
legitimem.
Foi a partir daí que se fez a separação
entre os domínios público e privado, integrando o domínio público as
áreas utilizadas para algum fim de interesse público e também as terras
devolutas. Houve ressalva para as doações feitas até então pelos
governos gerais provinciais, desde que os donatários tivessem ocupado
efetivamente as terras. Mas as terras devolutas, incluindo as áreas
ocupadas por comunidades indígenas, foram integradas ao patrimônio do
Império e, depois da proclamação da República, ao patrimônio da União.
Assim, pois, as aquisições, a qualquer título, oriundas de atos dos
governos estaduais não têm valor legal, pois esses governos não tinham
condições legais para dispor de bens pertencentes ao patrimônio da
União.
Tudo isso é muito claro para quem
analisa, de boa-fé, a evolução do regime de terras no Brasil. E quanto
às terras indígenas a Constituição de 1988 dispõe expressamente, no
artigo 20, que “são bens da União: XI- as terras tradicionalmente
ocupadas pelos índios”. Além disso, é absolutamente clara quando
estabelece, no artigo 231, que “são reconhecidos aos índios sua
organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os
direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus
bens”. E em sete parágrafos acrescentados a esse artigo são reafirmados
com minúcias esses direitos sobre as terras, dispondo-se expressamente
que “as terras de que trata este artigo são inalienáveis e
indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”.
Esse último dispositivo é de fundamental
importância, pois tem havido casos em que invasores de má-fé negociam a
ocupação das terras com lideranças indígenas ingênuas e desinformadas,
pretendendo, assim, legalizar a invasão. Em termos jurídicos, é
legalmente possível a celebração de acordos para a exploração conjunta
das terras indígenas e de suas riquezas, por índios e não índios, mas
isso deve ser feito com a participação das autoridades federais
competentes e com a concordância prévia, livre e informada da comunidade
indígena, como está expresso na Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho sobre os Povos Indígenas e Tribunais, à qual o
Brasil aderiu. Fora disso a presença de invasores em terras indígenas
configura ilegalidade, o que exige a pronta reação das autoridades
competentes para garantia dos direitos constitucionais.
Foi assim. No primeiro século da era
cristã, os Guarani saíram da região amazônica, onde viviam, e caminharam
em direção ao Cone Sul. Depois de longas andanças, ocuparam terras que
hoje estão dentro de vários estados nacionais: Brasil, Paraguai,
Argentina, Uruguai e Bolívia. Os vestígios arqueológicos e linguísticos
que foram deixando ao longo do caminho permitiram que os pesquisadores
reconstruíssem essa rota e estabelecessem datas prováveis do percurso
feito.
Dois mil anos depois, um italiano,
nascido em 1948, em Toscana, atravessou o oceano Atlântico com sua
família, veio para Porto Alegre, de lá para Curitiba, se naturalizou
brasileiro e se instalou, finalmente, em Mato Grosso do Sul, onde
encontrou os Guarani, que lá vivem há quase dois milênios. O italiano
recém-chegado se tornou governador do Estado. Seu nome: André Puccinelli
(PMDB – vixe, vixe).
A migração estrangeira ajudou a
construir nosso país, quando conviveu em paz com os que aqui estavam há
muitos séculos, sem atropelá-los. Muitos estrangeiros, honrados,
trouxeram trabalho, riqueza e cultura e compartilharam o que tinham e o
que produziam com o resto da sociedade que os acolheu. Ensinaram a
aprenderam. Mudaram e foram mudados. Benditos estrangeiros que plasmaram
a alma brasileira!
No entanto, não foi isso o que sempre
aconteceu em Mato Grosso do Sul. Lá, desde 1915, fazendeiros,
pecuaristas e agronegociantes, quando chegaram, encontraram as terras
ocupadas por índios. Consideraram as terras indígenas como “devolutas” e
começaram a expulsar os que ali viviam, num processo que se acelerou
nas últimas décadas. Foi aí que os invasores, representados hoje, no
campo político, por André Puccinelli, colocaram seus documentos pra fora
e, machistas, ordenaram autoritariamente:
- Deite que eu vou lhe usar!
Usaram a terra em proveito próprio, da
mesma forma que o coronel Jesuíno, interpretado por José Wilker, usou a
Sinhazinha na minissérie Gabriela: sem nenhum agrado, sem qualquer
respeito. Com dose cavalar de brutalidade, desmataram, queimaram,
exploraram os recursos naturais, abusaram dos agrotóxicos, colheram
safras bilionárias de soja, cana e celulose, extraíram minério, poluíram
rios e privatizaram a natureza para fins turísticos. Pensaram só neles,
no lucro, e não na terra e na qualidade da vida, nem compartilharam com
a sociedade, que ficou mais empobrecida.
Flor da terra
O resultado desastroso do uso da terra foi lamentado pelos líderes e professores Kaiowá em carta de 17 de março de 2007:
- O fogo da morte passou no corpo da
terra, secando suas veias. O ardume do fogo torra sua pele. A mata chora
e depois morre. O veneno intoxica. O lixo sufoca. A pisada do boi magoa
o solo. O trator revira a terra. Fora de nossas terras, ouvimos seu
choro e sua morte sem termos como socorrer a Vida.
Para os Guarani, o que aconteceu foi um
estupro, ferindo de morte a sinhazinha natureza. A relação deles com a
terra é amorosa, eles não se consideram donos da terra, mas parceiros
dela. Ela é o tekoha, o lugar onde cultivam o modo de ser guarani, o
nhanderekó. “Guardamos com a terra” – diz o kaiowá Tonico Benites – “um
forte sentimento religioso de pertencimento ao território”.
O professor guarani Marcos Moreira,
quando foi meu aluno no curso de formação de professores, entrevistou o
velho Alexandre Acosta, da aldeia de Cantagalo (RS) que, entre outras
coisas, falou:
- Esta terra que pisamos é um ser vivo, é
gente, é nosso irmão. Tem corpo, tem veias, tem sangue. É por isso que o
Guarani respeita a terra, que é também um Guarani. O Guarani não polui a
água, pois o rio é o sangue de um Karai. Esta terra tem vida, só que
muita gente não percebe. É uma pessoa, tem alma. Quando um Guarani entra
na mata e precisa cortar uma árvore, ele conversa com ela, pede
licença, pois sabe que se trata de um ser vivo, de uma pessoa, que é
nosso parente e está acima de nós.
Os líderes Kaiowá reforçam essa relação
com a terra quando lembram, na carta citada, que o criador do mundo
criou o povo Guarani para ter alguém que admirasse toda o esplendor da
natureza.”O nosso povo foi destinado em sua origem como humanidade a
viver, usufruir e cuidar deste lugar, de modo recíproco e mútuo” –
escreve o kaiowá Tonico Benites, doutorando em antropologia. “Por isso,
nós somos a flor da terra, como falamos em nossa língua: Yvy Poty” –
completam os líderes Kaiowá.
Se a terra é um parente, a relação com
ela deve ser de troca equilibrada, de solidariedade. É como a mãe que dá
o leite para o filho. Ela dá, sem pensar em cobrar. Ela não cobra nada,
mas socialmente espera que um dia, se precisar, o filho vai retribuir.
“Tudo isso é frescura” – dizem os
fazendeiros e pecuaristas que pensam como o coronel Jesuíno: a terra é
pra ser usada. E ponto final. Portanto, o conflito não é apenas
fundiário, mas cultural, com proporções tão graves que a
vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat, considera essa como
“a maior tragédia conhecida na história indígena em todo o mundo”. É
que os Guarani decidiram defender a terra ferida e para isso realizaram
um movimento de ocupação pacífica do território tradicional localizado à
margem de cinco rios: Brilhantes, Dourados, Apa, Iguatemi e Hovy.
Apenas uma pequena parte do antigo
território, que lhes permita sobreviver dignamente, é reivindicada. É o
caso da comunidade Pyelito Kue-Mbarakay, no extremo sul do Estado, onde
vivem 170 Kaiowá, dentro da fazenda Cambará, às margens do rio Hovy,
município de Iguatemi (MS). A comunidade está cercado por pistoleiros e
lá já ocorreram recentemente 4 mortes, duas por espancamento e tortura
dos jagunços e duas por suicídio.
Somos Kaiowá
Um juiz federal, Sergio Henrique
Bonacheia, determinou, em setembro último, a expulsão dos índios. Ele
afirmou que não interessa “se as terras em litígio são ou foram
tradicionalmente ocupadas pelos índios ou se o título dominial do autor é
ou foi formado de maneira ilegítima”. Os índios vão ter que sair –
decidiu o magistrado.
O Ministério Público Federal e a Funai
recorreram ao Tribunal Regional Federal contra tal decisão. Os índios se
rebelaram, escreveram uma carta anunciando que dessa forma o juiz está
decretando a morte coletiva, que ele pode enviar os tratores para cavar
um grande buraco e enterrar os corpos de todos eles: 50 homens, 50
mulheres e 70 crianças, que eles ali ficam, como um ato de resistência,
para morrer na terra onde estão enterrados seus avós.
O suicídio coletivo – assim a carta foi
interpretada – teve enorme difusão nas redes sociais e ampla repercussão
internacional, “com o silêncio aterrador” da mídia nacional, como
lembrou Bob Fernandes, autor de um dos três artigos esclarecedores e
informativos. Os outros dois foram de Eliane Brum e de Tonico Benites.
Construiu-se rapidamente nas redes
sociais uma corrente de solidariedade, com sugestões para a realização
de atos de protestos em muitas cidades brasileiras. “Nós todos somos
Kaiowá” – disseram, parodiando um slogan que ficou célebre em maio de
1968, na França: “Nous sommes tous des juifs allemands”. Um desses atos,
marcado para hoje, domingo, dia 28, será no Centro Cultural dos
Correios, no Rio de Janeiro, onde está instalada uma exposição sobre a
vida da atriz Regina Duarte, proprietária de uma fazenda em MS e
considerada porta-voz dos fazendeiros, por uma declaração infeliz que
deu.
Diante da gravidade dos fatos, o governo
federal convocou reunião de emergência para a próxima segunda-feira,
com a participação de vários órgãos governamentais. A possibilidade de
se efetivar o suicídio coletivo dos Kayowá se apoia em dados oficiais do
Ministério da Saúde: nos últimos onze anos, entre 2.000 e 2011,
ocorreram 555 suicídios, uma das taxas mais altas do mundo.
Se a tragédia acontecer, uma pergunta
vai ter que ser respondida: suicídio coletivo? Será mesmo? A ideia de
suicídio é, num certo sentido muito cômoda, porque isenta de culpa a
terceiros. Mas se você é levado por alguém a se matar, trata-se de
suicídio ou de uma forma de homicídio? O artigo 122 do Código Penal
Brasileiro estabelece pena de reclusão para o agente que, através de
ato, induz ou instiga alguém a se suicidar ou presta-lhe auxílio para
que o faça. Quem pode ser incriminado neste caso?
A pergunta deve ser feita ao governador
Puccinelli, implicado pela Operação Uragano da Polícia Federal num
esquema ilegal de pagamento de propinas a deputados e desembargadores,
que em maio de 2010, durante a abertura da Expoagro, em Dourados,
incitou os fazendeiros contra os índios. A pergunta pode ser repassada
também à senadora Kátia Abreu, presidente da Confederação da Agricultura
e Pecuária do Brasil, que em artigo, ontem, na Folha de São Paulo, teve
o descaro de escrever, com certa dose de cinismo e de deboche:
- “Se a Funai pensa, por exemplo, que
são necessárias mais terras para os indígenas pela ocorrência da
explosão demográfica em certa região, nada mais fácil do que comprar
terras e distribuí-las”.
O discurso da senadora – convenhamos – é
transparente, porque evidencia a relação exclusivamente mercantil que
têm com a terra, ela e aqueles que ela representa e da qual é porta-voz.
Mostra ainda que ela não é capaz de entender a relação amorosa e
religiosa dos Guarani com a terra. O coronel Jesuíno, certamente,
assinaria embaixo de tal discurso.
*José Ribamar Bessa Freireé antropólogo. Colabora com o “Quem tem medo da democracia?”, onde tem a coluna “Taqui Pra Ti”
A declaração de morte coletiva feita por
um grupo de Guaranis Caiovás demonstra a incompetência do Estado
brasileiro para cumprir a Constituição de 1988 e mostra que somos todos
cúmplices de genocídio – uma parte de nós por ação, outra por omissão
ELIANE BRUM*
Pedimos ao Governo e à Justiça Federal
para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas decretar nossa morte
coletiva e enterrar nós todos aqui. Pedimos, de uma vez por todas, para
decretar nossa extinção/dizimação total, além de enviar vários tratores
para cavar um grande buraco para jogar e enterrar nossos corpos. Este é o
nosso pedido aos juízes federais.
O trecho pertence à carta
de um grupo de 170 indígenas que vivem à beira de um rio no município
de Iguatemi, no Mato Grosso do Sul, cercados por pistoleiros. As
palavras foram ditadas em 8 de outubro ao conselho Aty Guasu (assembleia
dos Guaranis Caiovás), após receberem a notícia de que a Justiça
Federal decretou sua expulsão da terra. São 50 homens, 50 mulheres e 70
crianças. Decidiram ficar. E morrer como ato de resistência – morrer com
tudo o que são, na terra que lhes pertence.
Há cartas, como a de Pero Vaz de
Caminha, de 1º de maio de 1500, que são documentos de fundação do
Brasil: fundam uma nação, ainda sequer imaginada, a partir do olhar
estrangeiro do colonizador sobre a terra e sobre os habitantes que nela
vivem. E há cartas, como a dos Guaranis Caiovás, escritas mais de 500
anos depois, que são documentos de falência. Não só no sentido da
incapacidade do Estado-nação constituído nos últimos séculos de cumprir a
lei estabelecida na Constituição hoje em vigor, mas também dos
princípios mais elementares que forjaram nosso ideal de humanidade na
formação do que se convencionou chamar de “o povo brasileiro”. A partir
da carta dos Guaranis Caiovás, tornamo-nos cúmplices de genocídio.
Sempre fomos, mas tornar-se é saber que se é.
Os Guaranis Caiovás avisam-nos por carta
que, depois de tantas décadas de luta para viver, descobriram que agora
só lhes resta morrer. Avisam a todos nós que morrerão como viveram:
coletivamente, conjugados no plural.
Nos trechos mais pungentes de sua carta de morte, os indígenas afirmam:
- Queremos deixar evidente ao Governo e à
Justiça Federal que, por fim, já perdemos a esperança de sobreviver
dignamente e sem violência em nosso território antigo. Não acreditamos
mais na Justiça Brasileira. A quem vamos denunciar as violências
praticadas contra nossas vidas? Para qual Justiça do Brasil? Se a
própria Justiça Federal está gerando e alimentando violências contra
nós. Nós já avaliamos a nossa situação atual e concluímos que vamos
morrer todos, mesmo, em pouco tempo. Não temos e nem teremos perspectiva
de vida digna e justa tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui.
Estamos aqui acampados a 50 metros do rio Hovy, onde já ocorreram 4
mortes, sendo que 2 morreram por meio de suicídio, 2 em decorrência de
espancamento e tortura de pistoleiros das fazendas. Moramos na margem
deste rio Hovy há mais de um ano. Estamos sem assistência nenhuma,
isolados, cercados de pistoleiros e resistimos até hoje. Comemos comida
uma vez por dia. Tudo isso passamos dia a dia para recuperar o nosso
território antigo Pyleito Kue/Mbarakay. De fato, sabemos muito bem que
no centro desse nosso território antigo estão enterrados vários de
nossos avôs e avós, bisavôs e bisavós, ali está o cemitérios de todos os
nossos antepassados. Cientes desse fato histórico, nós já vamos e
queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui
mesmo onde estamos hoje. (…) Não temos outra opção, esta é a nossa
última decisão unânime diante do despacho da Justiça Federal de
Navirai-MS.
Como podemos alcançar o desespero de uma
decisão de morte coletiva? Não podemos. Não sabemos o que é isso. Mas
podemos conhecer quem morreu, morre e vai morrer por nossa ação – ou
inação. E, assim, pelo menos aproximar nossos mundos, que até hoje têm
na violência sua principal intersecção.
Desde o ínicio do século XX, com mais
afinco a partir do Estado Novo (1937-45) de Getúlio Vargas, iniciou-se a
ocupação pelos brancos da terra dos Guaranis Caiovás. Os indígenas, que
sempre viveram lá, começaram a ser confinados em reservas pelo governo
federal, para liberar suas terras para os colonos que chegavam, no que
se chamou de “A Grande Marcha para o Oeste”. A visão era a mesma que até
hoje persiste no senso comum: “terra desocupada” ou “não há ninguém lá,
só índio”.
Era de gente que se tratava, mas o que
se fez na época foi confiná-los como gado, num espaço de terra pequeno
demais para que pudessem viver ao seu modo – ou, na palavra que é deles,
Teko Porã (“o Bem Viver”). Com a chegada dos colonos, os indígenas
passaram a ter três destinos: ou as reservas ou trabalhar nas fazendas
como mão de obra semiescrava ou se aprofundar na mata. Quem se rebelou
foi massacrado. Para os Guaranis Caiovás, a terra a qual pertencem é a
terra onde estão sepultados seus antepassados. Para eles, a terra não é
uma mercadoria – a terra é.
Na ditadura militar, nos anos 60 e 70, a
colonização do Mato Grosso do Sul se intensificou. Um grande número de
sulistas, gaúchos mais do que todos, migrou para o território para
ocupar a terra dos índios. Outros despacharam peões e pistoleiros,
administrando a matança de longe, bem acomodados em suas cidades de
origem, onde viviam – e vivem até hoje – como “cidadãos de bem”,
fingindo que não têm sangue nas mãos.
Com a redemocratização do país, a
Constituição de 1988 representou uma mudança de olhar e uma esperança de
justiça. Os territórios indígenas deveriam ser demarcados pelo Estado
no prazo de cinco anos. Como sabemos, não foi. O processo de
identificação, declaração, demarcação e homologação das terras indígenas
tem sido lento, sensível a pressões dos grandes proprietários de terras
e da parcela retrógrada do agronegócio. E, mesmo naquelas terras que já
estão homologadas, em muitas o governo federal não completou a
desintrusão – a retirada daqueles que ocupam a terra, como posseiros e
fazendeiros –, aprofundando os conflitos.
Nestas últimas décadas testemunhamos o
genocídio dos Guaranis Caiovás. Em geral, a situação dos indígenas
brasileiros é vergonhosa. A dos 43 mil Guaranis Caiovás, o segundo grupo
mais numeroso do país, é considerada a pior de todas. Confinados em
reservas como a de Dourados, onde cerca de 14 mil, divididos em 43
grupos familiares, ocupam 3,5 mil hectares, eles encontram-se numa
situação de colapso. Sem poder viver segundo a sua cultura, totalmente
encurralados, imersos numa natureza degradada, corroídos pelo alcoolismo
dos adultos e pela subnutrição das crianças, os índices de homicídio da
reserva são maiores do que em zonas em estado de guerra.
A situação em Dourados é tão aterradora
que provocou a seguinte afirmação da vice-procuradora-geral da
República, Deborah Duprat: “A reserva de Dourados é talvez a maior
tragédia conhecida da questão indígena em todo o mundo”. Segundo um
relatório do Conselho Indigenista Missionário
(CIMI), que analisou os dados de 2003 a 2010, o índice de assassinatos
na Reserva de Dourados é de 145 para cada 100 mil habitantes – no
Iraque, o índice é de 93 assassinatos para cada 100 mil. Comparado à
média brasileira, o índice de homicídios da Reserva de Dourados é 495%
maior.
A cada seis dias, um jovem Guarani
Caiová se suicida. Desde 1980, cerca de 1500 tiraram a própria vida. A
maioria deles enforcou-se num pé de árvore. Entre as várias causas
elencadas pelos pesquisadores está o fato de que, neste período da vida,
os jovens precisam formar sua família e as perspectivas de futuro são
ou trabalhar na cana de açúcar ou virar mendigos. O futuro, portanto, é
um não ser aquilo que se é. Algo que, talvez para muitos deles, seja
pior do que a morte.
Um relatório do Ministério da Saúde
mostrou, neste ano, o que chamou de “dados alarmantes, se destacando
tanto no cenário nacional quanto internacional”. Desde 2000, foram 555
suicídios, 98% deles por enforcamento, 70% cometidos por homens, a
maioria deles na faixa dos 15 aos 29 anos. No Brasil, o índice de
suicídios em 2007 foi de 4,7 por 100 mil habitantes. Entre os indígenas,
no mesmo ano, foi de 65,68 por 100 mil. Em 2008, o índice de suicídios
entre os Guaranis Caiovás chegou a 87,97 por 100 mil, segundo dados
oficiais. Os pesquisadores acreditam que os números devem ser ainda
maiores, já que parte dos suicídios é escondida pelos grupos familiares
por questões culturais.
As lideranças Guaranis Caiovás não
permaneceram impassíveis diante deste presente sem futuro. Começaram a
se organizar para denunciar o genocídio do seu povo e reivindicar o
cumprimento da Constituição. Até hoje, mais de 20 delas morreram
assassinadas por ferirem os interesses privados de fazendeiros da
região, a começar por Marçal de Souza, em 1983, cujo assassinato ganhou
repercussão internacional. Ao mesmo tempo, grupos de Guaranis Caiovás
abandonaram o confinamento das reservas e passaram a buscar suas tekohá,
terras originais, na luta pela retomada do território e do direito à
vida. Alguns grupos ocuparam fundos de fazendas, outros montaram 30
acampamentos à beira da estrada, numa situação de absoluta indignidade.
Tanto nas reservas quanto fora delas, a desnutrição infantil é
avassaladora.
A trajetória dos Guaranis Caiovás que
anunciaram sua morte coletiva ilustra bem o destino ao qual o Estado
brasileiro os condenou. Homens, mulheres e crianças empreenderam um
caminho em busca da terra tradicional, localizada às margens do Rio
Hovy, no município de Iguatemi (MS). Acamparam em sua terra no dia 8 de
agosto de 2011, nos fundos de fazendas. Em 23 de agosto foram atacados e
cercados por pistoleiros, a mando dos fazendeiros. Em um ano, os
pistoleiros já derrubaram dez vezes a ponte móvel feitas por eles para
atravessar um rio com 30 metros de largura e três de fundura. Em um ano,
dois indígenas foram torturados e mortos pelos pistoleiros, outros dois
se suicidaram.
Em tentativas anteriores de recuperação
desta mesma terra, os Guaranis Caiovás já tinham sido espancados e
ameaçados com armas de fogo. Alguns deles tiveram seus olhos vendados e
foram jogados na beira da estrada. Em outra ocasião, mulheres, velhos e
crianças tiveram seus braços e pernas fraturados. O que a Justiça
Federal fez? Deferiu uma ordem de despejo. Em nota, a FUNAI (Fundação
Nacional do Índio) afirmou que “está trabalhando para reverter a
decisão”.
Os Guaranis Caiovás estão sendo
assassinados há muito tempo, de todas as formas disponíveis, as
concretas e as simbólicas. “A impunidade é a maior agressão cometida
contra eles”, afirma Flávio Machado, coordenador do CIMI no Mato Grosso
do Sul. Nas últimas décadas, há pelo menos duas formas interligadas de
violência no processo de recuperação da terra tradicional dos indígenas:
uma privada, das milícias de pistoleiros organizadas pelos fazendeiros;
outra do Estado, perpetrada pela Justiça Federal, na qual parte dos
juízes, sem qualquer conhecimento da realidade vivida na região, toma
decisões que não só compactuam com a violência , como a acirram.
“Quando os pistoleiros não conseguem
consumar os despejos e massacres truculentos dos indígenas, os
fazendeiros contratam advogados para conseguir a ordem de despejo na
Justiça”, afirma Egon Heck, indigenista e cientista político, num artigo
publicado em relatório do CIMI. “No momento em que ocorre a ordem de
despejo, os agentes policiais agem de modo similar ao dos pistoleiros,
visto que utilizam armas pesadas, queimam as ocas, ameaçam e assustam as
crianças, mulheres e idosos.”
Ao fundo, o quadro maior: os sucessivos
governos que se alternaram no poder após a Constituição de 1988 foram
incompetentes para cumpri-la. Ao final de seus dois mandatos, Lula
reconheceu que deixava o governo com essa dívida junto ao povo Guarani
Caiová. Legava a tarefa à sua sucessora, Dilma Rousseff. Os indígenas
escreveram, então, uma carta: “Presidente Dilma, a questão das nossas
terras já era para ter sido resolvida há décadas. Mas todos os governos
lavaram as mãos e foram deixando a situação se agravar. Por ultimo, o
ex-presidente Lula prometeu, se comprometeu, mas não resolveu.
Reconheceu que ficou com essa dívida para com nosso povo Guarani Caiová e
passou a solução para suas mãos. E nós não podemos mais esperar. Não
nos deixe sofrer e ficar chorando nossos mortos quase todos os dias. Não
deixe que nossos filhos continuem enchendo as cadeias ou se suicidem
por falta de esperança de futuro (…) Devolvam nossas condições de vida
que são nossos tekohá, nossas terras tradicionais. Não estamos
pedindo nada demais, apenas os nossos direitos que estão nas leis do
Brasil e internacionais”.
A declaração de morte dos Guaranis
Caiovás ecoou nas redes sociais na semana passada. Gerou uma comoção.
Não é a primeira vez que indígenas anunciam seu desespero e seu
genocídio. Em geral, quase ninguém escuta, para além dos mesmos de
sempre, e o que era morte anunciada vira morte consumada. Talvez a
diferença desta carta é o fato de ela ecoar algo que é repetido nas mais
variadas esferas da sociedade brasileira, em ambientes os mais
diversos, considerado até um comentário espirituoso em certos espaços
intelectualizados: a ideia de que a sociedade brasileira estaria melhor
sem os índios.
Desqualificar os índios, sua cultura e a
situação de indignidade na qual vive boa parte das etnias é uma piada
clássica em alguns meios, tão recorrente que se tornou quase um clichê.
Para parte da elite escolarizada, apesar do esforço empreendido pelos
antropólogos, entre eles Lévi-Strauss, as culturas indígenas ainda são
vistas como “atrasadas”, numa cadeia evolutiva única e inescapável entre
a pedra lascada e o Ipad – e não como uma escolha diversa e um caminho
possível. Assim, essa parcela da elite descarta, em nome da ignorância, a
imensa riqueza contida na linguagem, no conhecimento e nas visões de
mundo das 230 etnias indígenas que ainda sobrevivem por aqui.
Toda a História do Brasil, a partir da
“descoberta” e da colonização, é marcada pelo olhar de que o índio é um
entrave no caminho do “progresso” ou do “desenvolvimento”. Entrave desde
os primórdios – primeiro, porque teve a deselegância de estar aqui
antes dos portugueses; em seguida, porque se rebelava ao ser escravizado
pelos invasores europeus. A sociedade brasileira se constituiu com essa
ideia e ainda que a própria sociedade tenha mudado em muitos aspectos, a
concepção do índio como um entrave persiste. E persiste de forma
impressionante, não só para uma parte significativa da população, mas
para setores do Estado, tanto no governo atual quanto nas gestões
passadas.
“Entraves” precisam ser removidos. E têm
sido, de várias maneiras, como a História, a passada e a presente, nos
mostra. Talvez essa seja uma das explicações possíveis para o impacto da
carta de morte ter alcançado um universo maior de pessoas. Desta vez,
são os índios que nos dizem algo que pode ser compreendido da seguinte
forma: “É isso o que vocês querem? Nos matar a todos? Então nós
decidimos: vamos morrer”. Ao devolver o desejo a quem o deseja, o
impacto é grande.
É importante lembrar que carta é
palavra. A declaração de morte coletiva surge como palavra dita. Por
isso precisamos compreender, pelo menos um pouco, o que é a palavra para
os Guaranis Caiovás. Em um texto muito bonito, intitulado Ñe'ẽ – a palavra alma, a antropóloga Graciela Chamorro, da Universidade Federal da Grande Dourados, nos dá algumas pistas:
“A palavra é a unidade mais densa que
explica como se trama a vida para os povos chamados guarani e como eles
imaginam o transcendente. As experiências da vida são experiências de
palavra. Deus é palavra. (...) O nascimento, como o momento em que a
palavra se senta ou provê para si um lugar no corpo da criança. A
palavra circula pelo esqueleto humano. Ela é justamente o que nos mantém
em pé, que nos humaniza. (...) Na cerimônia de nominação, o xamã
revelará o nome da criança, marcando com isso a recepção oficial da nova
palavra na comunidade. (...) As crises da vida – doenças, tristezas,
inimizades etc. – são explicadas como um afastamento da pessoa de sua
palavra divinizadora. Por isso, os rezadores e as rezadoras se esforçam
para ‘trazer de volta’, ‘voltar a sentar’ a palavra na pessoa,
devolvendo-lhe a saúde.(...) Quando a palavra não tem mais lugar ou
assento, a pessoa morre e torna-se um devir, um não-ser, uma
palavra-que-não-é-mais. (...) Ñe'ẽ e ayvu podem ser
traduzidos tanto como ‘palavra’ como por ‘alma’, com o mesmo significado
de ‘minha palavra sou eu’ ou ‘minha alma sou eu’. (...) Assim, alma e
palavra podem adjetivar-se mutuamente, podendo-se falar em palavra-alma
ou alma-palavra, sendo a alma não uma parte, mas a vida como um todo.”
A fala, diz o antropólogo Spensy
Pimentel, pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios da Universidade de
São Paulo, é a parte mais sublime do ser humano para os Guaranis
Caiovás. “A palavra é o cerne da resistência. Tem uma ação no mundo – é
uma palavra que age. Faz as coisas acontecerem, faz o futuro. O limite
entre o discurso e a profecia é tênue.”
Se a carta de Pero Vaz de Caminha marca o
nascimento do Brasil pela palavra escrita, é interessante pensar o que
marca a carta dos Guaranis Caiovás mais de 500 anos depois. Na
carta-fundadora, é o invasor/colonizador/conquistador/estrangeiro quem
estranha e olha para os índios, para sua cultura e para sua terra. Na
dos Guaranis Caiovás, são os índios que olham para nós. O que nos dizem
aqueles que nos veem? (Ou o que veem aqueles que nos dizem?)
A declaração de morte dos Guaranis
Caiovás é “palavra que age”. Antes que o espasmo de nossa comoção de
sofá migre para outra tragédia, talvez valha a pena uma última pergunta:
para nós, o que é a palavra?
*Eliane Brum, jornalista, escritora e
documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de
reportagem. É autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo). E codiretora de dois documentários: Uma História Severina e Gretchen Filme Estrada.
"A CIA SE CONVERTEU EM UMA ORGANIZAÇÃO PARAMILITAR", diz Moniz Bandeira
Em entrevista à “Carta Maior”, o historiador e cientista político Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira aponta a ação clandestina de forças especiais dos Estados Unidos,
Inglaterra e França nos conflitos da Líbia e Síria e critica a política
externa do governo Barack Obama, que usa os "direitos humanos" para
justificar intervenções em qualquer parte do mundo. "A CIA, mais e
mais, se torna uma força paramilitar, deixando de ser uma agência de
espionagem e coleta de inteligência. Os drones, aviões sem pilotos,
teleguiados pela CIA, já mataram, desde 2001, mais de 2.000 supostos
militantes e civis em vários países", afirma Moniz Bandeira.
Leia,
a seguir, a entrevista concedida por email pelo professor Moniz
Bandeira à “Carta Maior”, desde a Alemanha. Nela, entre outras coisas,
ele defende que "a questão dos direitos humanos e defesa das
populações civis virou uma panacéia que serve para os Estados Unidos,
França e Grã-Bretanha violarem os direitos humanos, com rigorosos
embargos comerciais, e massacrar populações civis, como o fizeram na
Líbia". Além disso, sustenta, o presidente Obama pretende
continuar, por outros meios, a política do presidente George W. Bush,
mudando o conceito da OTAN e contrariando o próprio tratado que a criou,
ao dar-lhe capacidade de polícia global.
Carta Maior:
Qual sua avaliação sobre a participação das grandes potências
ocidentais, especialmente, Estados Unidos, Inglaterra e França nos
conflitos da Líbia e da Síria. Há uma mesma lógica atuando nos dois
casos?
Moniz Bandeira – Não se trata de
teoria conspiratória. Mas parece que há a mesma lógica na sucessão de
levantes, que começaram na Tunísia, em dezembro de 2010, depois,
simultaneamente, se estenderam ao Egito e à Síria, em 25/26 de janeiro
de 20011, e à Líbia, em 17 de fevereiro.
As condições
econômicas, sociais e políticas estavam maduras. Em todos esses países,
há enorme taxa de desemprego, afetando grande parte da juventude,
extrema pobreza, inflação, alta dos preços dos alimentos e o
ressentimento político provocado pela repressão das ditaduras.
Está
provado, porém, que militares das forças especiais dos Estados Unidos,
Inglaterra e França, vestidos como árabes, os 'false-flaggers', i. e.,
um “illegal team”, com identidade de outros países de modo que não
sejam identificados como ingleses, americanos ou franceses, estão
abertamente na Líbia e não se pode descartar a possibilidade de que
agentes da CIA e do MI-6 estejam também na Síria. [...]
O WikiLeak, há poucos meses, revelou um despacho secreto, da Embaixada dos Estados Unidos em Damasco, sobre “Next Steps For A Human Rights Strategy”, informando que, de 2005 até setembro de 2010, os Estados Unidos, com os recursos do “Middle East Partnership Initiative”
(MEPI), tinham destinado secretamente aos grupos da oposição, na
Síria, um montante de US$ 12 milhões, bem como financiado a instalação
de um canal de TV via satélite, transmitindo para dentro do país
programas contra o regime de Bashar al-Assad.
Carta
Maior - Além desse encorajamento estrangeiro, que outros fatores
estariam contribuindo para alimentar os protestos na Síria?Moniz Bandeira - Há fortes fatores religiosos. A maioria da população, na Síria, é salafista,
uma das correntes fundamentalistas do Islã, que pretende restabelecer
os primitivos princípios religiosos do Corão. É similar ao wahhabismo, doutrina defendida por Muhammad ibn Abd-al-Wahhab e prevalecente na Arábia Saudita. Bashar al-Assad, porém, é um alauita, outro segmento do Islã, que dissimula sua doutrina com a taqiyya, uma prática xiita, seita islâmica dominante no Irã e da qual mais se aproxima. Os alauitas
constituem apenas 10% da população da Síria, mas dominam e controlam
todo o aparelho do Estado há várias décadas, pelo menos desde os anos
1970, quando Hafez al-Assad, do Partido Ba’ath, assumiu a presidência da
Síria.
O Partido Ba’ath, fundado em Damasco em 1946, mesclava
ideais igualitários, socializantes, interesses nacionalistas e
objetivos pan-árabes, contrários à política imperialista das potências
ocidentais. Alguns dos seus ramos surgiram em outros países do Oriente
Médio, como o Iraque, onde deteve o poder até a queda de Sadam Hussein,
em 2003.
Carta Maior - A Síria tem pouco petróleo. Qual
ou quais os interesses dos Estados Unidos, França e Inglaterra na
derrubada do regime de Bashar al-Assad?Moniz Bandeira –
Esses países têm interesses estratégicos, como, e.g., assumir o
controle de todo o Mediterrâneo e isolar politicamente o Irã, que está
aliado à Síria, bem como restringir a influência de Rússia e China no
Oriente Médio. A Rússia, desde 1971, opera o porto de Tartus, na Síria,
e projeta reformá-lo e ampliá-lo como base naval, em 2012, de modo que
possa receber grandes navios de guerra, garantindo assim sua presença
no Mediterrâneo. Consta que a Rússia também planejava instalar bases
navais na Líbia e no Yemen. E, conforme se pode deduzir do telegrama da
Embaixada dos EUA em Damasco, publicado pelo WikiLeaks, tudo indica
que o financiamento da oposição, na Síria, desde, pelo menos, 2005,
visou à derrubada do regime de Bashar al-Assad, de modo a impedir o
aprofundamento, no âmbito naval, de suas relações com a Rússia.
Daí
que, dificilmente, os Estados Unidos conseguirão estender à Síria a
mesma estratégia que desenvolveu na Líbia, juntamente com a Grã-Bretanha
e a França. A Rússia, ainda percebida pelos Estados Unidos como seu
grande rival, e a China, opõem-se até mesmo às sanções contra o regime
de Bashar al-Assad.
Carta Maior - Nesse contexto, como
pode ser entendida a doutrina do presidente Barack Obama no que se
refere à política externa dos EUA? Moniz Bandeira – Em discurso pronunciado na “George Washington University”,
em 28 de março de 2011, o presidente Obama declarou que, mesmo não
estando a segurança dos americanos diretamente ameaçada, a ação militar
pode ser justificada –no caso de genocídio, por exemplo– os
Estados Unidos podem intervir, mas não atuarão isoladamente. Sua
doutrina ele também delineou, claramente, em discurso que pronunciou no
Parlamento britânico, durante a visita de Estado que fez ao Reino Unido
entre 24 e 16 de maio de 2011. O presidente Obama disse que “we do these things because we believe not simply in the rights of nations; we believe in the rights of citizens”. E mais adiante declarou que carece de peso o argumento segundo o qual “a nation’s sovereignty is more important than the slaughter of civilians within its borders”
e reafirmou que “nós” pensamos de modo diferente, aceitamos uma
responsabilidade maior, i. e. que a comunidade Internacional deve atuar
quando um líder está ameaçando massacrar seu povo.
Tais palavras
significam que os Estados Unidos, juntamente com a Grã-Bretanha e
França, não mais respeitarão as normas do Direito Internacional,
estabelecidas desde o Tratado de Westphalia, com base nos princípios de
soberania do Estado nação, e poderão intervir em qualquer país, a
pretexto de razões “humanitárias” ou de “defesa da população civil”, mas [na verdade] para defender seus interesses econômicos e estratégicos.
Assim,
os chefes de governo dos Estados Unidos, Grã-Bretanha e França, se
quiserem, podem alegar defesa da população indígenas ou do meio
ambiente e invadir a Amazônia. A questão dos direitos
humanos e defesa das populações civis virou uma panacéia que serve para
os Estados Unidos, França e Grã-Bretanha violarem os direitos humanos,
com rigorosos embargos comerciais, e massacrar populações civis, como o
fizeram na Líbia.
Também, o que pretende o presidente Obama a
continuar, por outros meios, a política do presidente George W. Bush, é
mudar o conceito da OTAN, contrariando o próprio tratado que a criou, e
dar-lhe capacidade de polícia global (global cop) para enfrentar as “novas ameaças”, como "terrorism and piracy, cyber attacks and ballistic missiles”.
Isso
significa que a OTAN deixará de ser uma organização de defesa da
Europa Ocidental, objetivo de sua criação no tempo da Guerra Fria, e
tornar-se-à instrumento de agressão, pronta para intervir em todos os
continentes, com ou sem autorização da ONU.
As sanções contra a
Síria são iguais às que foram aplicadas contra a Líbia, logo no início
da rebelião. É a primeira forma de intervir num conflito interno em
qualquer outro país, onde o governo, que não convém à Santa Aliança,
reprima as manifestações para derrubá-lo. Mas, evidentemente, que as
manifestações populares contra as ditaduras na Arábia Saudita, Bahrein e
Jordânia, clientes dos Estados Unidos, não podem esperar qualquer
"ajuda".
Carta Maior - Qual seria, mais especificamente,
essa estratégia dos Estados Unidos no Oriente Médio e norte da África e
quais as forças especiais estariam atuando na Líbia e, provavelmente,
na Síria? Moniz Bandeira -
A estratégia atual dos Estados Unidos, implementada pelo presidente
Obama, que bem mereceu o Prêmio Nobel da Paz [sic!], é ampliar o uso de
drones, aviões armados e manejados eletronicamente pela CIA, para
matar supostos terroristas, militantes da al-Qa’ida e Talibans, bem
como centenas de civis desarmados, atingindo-os, como o faz na Líbia,
Afeganistão, Paquistão e Yemen. Essa é a nova tarefa da CIA, que mais e
mais se torna força paramilitar, deixando de ser agência de espionagem
e coleta de inteligência. Os drones (General Atomics MQ-1 Predator), esses aviões sem pilotos, teleguiados pela CIA, já mataram, desde 2001, mais de 2.000 supostos militantes e civis, e o Centro Contra-Terrorismo (CTC) dispõe atualmente de cerca de 2.000 empregados que trabalham na localização dos alvos e em atacá-los.
O
presidente Obama incrementou essas operações sem arriscar a vida de
seus soldados, bem como com o emprego de uma outra organização militar,
que matou e interrogou mais supostos terroristas e Talibans do que a
CIA, desde 2001. Trata-se do “Joint Special Operations Command” (JSOC), à qual está subordinada a “U.S. Navy SEAL’s” (Sea, Air and Land Teams), integrante do Comando de Operações Especiais
(USSOCOM), unidade encarregada de operações terrestres e marítimas,
guerra não-convencional, resgate, terrorismo e contraterrorismo etc. Um
comando do SEAL’s recebeu a missão de assassinar Osama Bin Laden, no
Paquistão, em 2 de maio de 2011. Essa é tarefa da qual o “Joint Special Operations Command”
(JSOC) está incumbido, executando o programa desenvolvido pelo general
David Petraeus, atual diretor da CIA, quando comandava as tropas
americanas no Afeganistão .
O programa consiste em “kill/capture”, i. e. matar/capturar, em qualquer região do mundo, terroristas e Talibans, constantes de uma “Joint Prioritized Effects List”
(JPEL), que inclui até americanos, com fundamento em premissa legal ou
extralegal, conforme diretriz classificada do presidente Obama. O
tenente-coronel John Nagl, assessor de contrainsurgência do general
David Patraeus no Afeganistão, considerou o JSOC uma máquina de matar
contra o terrorismo em uma escala quase industrial ("an almost industrial-scale counterterrorism killing machine"). Trata-se, na realidade, de um comando de esquadrões da morte do Pentágono.
Comandos do SEAL’s atuaram na Líbia, assim como da “Direction générale de la sécurité extérieure” (DGSE), da “Brigade des forces spéciales terre” (BFST), subordinada ao “Commandement des opérations spéciales” (COS), M16 (Inteligence Service) e “Special Air Service SAS”
(Special Air Service) como se fossem árabes. [Sem eles] os chamados
“rebeldes” não teriam avançado muito além de Benghazi. No dia 20 de
agosto, dia em que acabou o jejum do Ramandan, um navio da OTAN
desembarcou no litoral da Líbia armamentos pesados, antigos jihadistas e
tropas especiais do JSOC, dos Estados Unidos, BFST, da França, e SAS,
do Reino Unido, sob o comando de oficiais da OTAN, que então procederam
à conquista de Trípoli.
O balanço da “Operation Odyssey Dawn”,
após 100 dias de bombardeios da OTAN, é trágico: 6.121 civis mortos e
feridos. De acordo com as estatísticas, 3.093 homens foram mortos ou
feridos; 260 mulheres mortas e 1.318 feridas; 141 crianças mortas e 641
feridas. A OTAN, por sua vez, informa que, nos primeiros 90 dias,
executou um total de 13.184 saídas, entre as quais 4.963 ataques,
danificando ou destruindo mais de 2.500 alvos militares, 460
instalações militares, 300 sistemas de radar depósitos, além de,
aproximadamente, 170 locais de controle e comando, e cerca de 450
tanques. O informe não se refere aos escombros que os bombardeios
deixaram nem às milhares de vítimas civis, mortos, feridos,
desabrigados e refugiados.
Esse foi o resultado da Resolução nº
1.973 do Conselho de Segurança da ONU, autorizando a Santa Aliança
(Estados Unidos, Inglaterra e França) a “proteger os civis” na Líbia e que ela [Santa Aliança] aproveitou para legitimar o direito de “intervenção humanitária”, para defender seus próprios interesses econômicos, geopolíticos e estratégicos no Mediterrâneo.
Esse é modo americano de fazer guerra (American Way of War)
adotado pelo presidente Obama. Mas os objetivos são os mesmos do
presidente George W. Bush, atendendo aos interesses do complexo
industrial-militar. Sem agir unilateralmente, ele deseja realizá-los,
transformando, por meio da OTAN, de forma a repartir os custos com seus
membros, principalmente Inglaterra, França e Alemanha, a fim de evitar
que a guerra seja percebida como entre os Estados Unidos e a Líbia ou
outro qualquer país.
Carta Maior - Qual deve ser o futuro
da Líbia? O senhor acredita que Kadafi possa resistir e permanecer
como um agente político influente no conflito?
Moniz Bandeira –
É difícil predizer. A Líbia é um país ainda divido em tribos e a
lealdade é essencial entre seus membros. De qualquer modo, vivo ou
morto, o espectro de Kadafi, como comandante ou mito, estará por trás
da resistência, que mais dias menos dias começará a ocorrer, porque as
tribos não aceitarão a presença de tropas estrangeiras no seu
território. Porém, uma das consequências da “intervenção humanitária”
na Líbia será, provavelmente, a proliferação das armas nucleares. Como
muito bem observou Leonam dos Santos Guimarães, especialista em
energia nuclear e assistente da presidência da Eletrobrás –
Eletronuclear, a queda do regime de Kadafi faz supor que a aquisição de
armas nucleares se tornará atraente para países que se sintam
ameaçados pelo Ocidente.
Kadafi, em dezembro de 2003, concordou
em abandonar seu programa de armas nucleares, com base em importações
clandestinas de urânio natural, centrífugas e equipamentos de
conversão, bem como a construção de instalações em escala piloto. Se
ele tivesse avançado no seu programa de armas nucleares, a campanha de
bombardeios da OTAN teria ocorrido? –perguntou Leonam dos Santos Guimarães.
A resposta seria certamente não. O direito internacional só é
respeitado quando há certo equilíbrio de poder e as nações ameaçadas têm
possibilidade de retaliar. Daí que é quase impossível impedir que o
Irã desenvolva suas armas nucleares, não para atacar Israel, mas para
defender-se da Santa Aliança ocidental.
Carta Maior - No caso da Síria, qual sua avaliação sobre a posição de outras nações árabes e de Israel frente esse conflito?
Moniz Bandeira –
Não há informações sobre o envolvimento de outras nações árabes nem de
Israel na Síria, onde ainda não há propriamente uma guerra civil, mas
uma onda de protestos. Todos estão a observar o desdobramento da crise.
A Síria é, também, um país dividido em muitas tribos e o governo conta
com o respaldo do Irã, que provavelmente lhe fornece ou pode fornecer
armamentos. São muito estreitas suas conexões com o Hizbollah, uma
força política e paramilitar xiita, com sede no Líbano. Consta que o
Hizbollah dispõe de 30.000 a 40.000 mísseis apontadas para Israel e
difíceis de localizar, porque estão instalados em casas de família.
Essa é uma das razões –e há outras– pelas quais nem os outros países árabes nem Israel querem envolvimento [direto] nos protestos que ocorrem na Síria.
Carta
Maior - Os tambores da guerra estão soando em Israel, diante da
perspectiva do reconhecimento do Estado palestino na ONU, em setembro.
Há, na sua avaliação, possibilidade de generalização de conflitos no
Oriente Médio?
Moniz Bandeira -
Está previsto que Mahmoud Ridha Abbas (Abu Mazen), como presidente da
Autoridade Palestina, pronunciará um discurso, na 66ª Assembléia Geral
da ONU, a realizar-se entre 21 e 27 de setembro, no qual solicitará o
reconhecimento do Estado palestino. A admissão de um novo membro requer
o apoio de 2/3 dos Estados presentes na Assembléia Geral. Se obtiver
esse quorum, a Autoridade Palestina, como Estado, será admitida apenas
na condição de observador, pois o reconhecimento como membro pleno
depende de aprovação do Conselho de Segurança da ONU e, por
conseguinte, do voto dos Estados Unidos.
Há uma enorme
expectativa em Israel, com respeito à posição que os Estados Unidos
tomarão na Assembléia Geral, posto que, no dia 5 de setembro, vazou
para a imprensa a informação de que o ex-secretário de Defesa do
presidente Barack Obama, Robert Gates, antes de aposentar-se este ano,
criticou duramente o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanjahu em
reunião do “National Security Council Principals Committee” dos Estados Unidos. Gates chamou Israel de “an ungrateful ally”
(aliado ingrato) e disse que a política de Netanyahu põe seu país em
perigo, recusando-se a negociar, em meio a um crescente isolamento e o
desafio demográfico, se mantém o controle da Faixa de Gaza. Presume-se
que a notícia vazou, com o beneplácito de Obama, como advertência a
Netanyahu.
O que se teme, em Tel Aviv, é que milhões de
palestinos, exilados nos demais países árabes, marchem para as
fronteiras de Israel [fronteiras essas muito ampliadas com as ilegais invasões e ocupações]
após e avancem sobre seu território, se a Assembléia Geral da ONU
reconhecer o Estado palestino, ainda que como observador. Os palestinos
exilados não dispõem de outra nacionalidade porque, nos anos 1950, a
Liga Árabe decidiu não concedê-la, a fim de manter na agenda a
necessidade de criar o Estado palestino."