Em vários pontos do Brasil estão
ganhando maior gravidade os confrontos entre comunidades indígenas e
fazendeiros que se apresentam como proprietários de áreas
tradicionalmente ocupadas pelos índios. Um dos lugares de maior
intensidade dos conflitos, falando-se, inclusive, na possibilidade de
suicídio coletivo de comunidades indígenas se forem obrigadas a sair de
suas terras, é o estado de Mato Grosso do Sul. A par dos aspectos
humanos de suma gravidade, existe um ponto de fundamental importância,
de ordem jurídica, que não tem sido lembrado e que torna patente a
ilegalidade das pretensões dos que se dizem fazendeiros regularmente
instalados nas terras indígenas.
Com efeito, nas notícias relativas aos
conflitos que envolvem as terras dos índios guarani kaiowá, tem sido
feita discreta menção a um argumento utilizado pelos que se dizem
titulares de direitos sobre as terras e também por alguns de seus
advogados. Dizem eles que se tornaram proprietários por volta de 1940
mediante negociação com o governo do então estado do Mato Grosso.
Mediante doações teriam obtido a propriedade das terras tradicionalmente
ocupadas por comunidades indígenas. É possível que sejam, realmente,
detentores de títulos de propriedade formalmente registrados, o que dá a
aparência de regularidade.
O aspecto jurídico que tem sido ignorado
ou acobertado é a circunstância de que o estado do Mato Grosso não era
proprietário daquelas terras, e assim não tinha o direito de dispor
delas, fazendo doações ou vendas. A raiz da questão jurídica é a chamada
Lei de Terras, que é a Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, que
regularizou o regime de terras no Brasil. De acordo com a Lei de Terras,
quem era titular ou herdeiro de doações de terras feitas pelo governo e
que efetivamente ocupava essas terras com algum tipo de exploração
obteve o direito de ser declarado proprietário. Mas extensões enormes
estavam desocupadas, pois os donatários não residiam nelas e não as
utilizavam para qualquer finalidade produtiva. Essas terras foram então
reintegradas ao patrimônio público do governo brasileiro, surgindo,
assim, a expressão, “terras devolutas”, pois estavam sendo devolvidas ao
proprietário originário. E pelo artigo 12 da Lei de Terras ficou
estabelecido que as áreas ocupadas por comunidades indígenas integrariam
o patrimônio do governo central, que deveria utilizá-las, segundo
expressão corrente na época, para a “colonização dos indígenas”.
Um valioso comentário da Lei de Terras
de 1850 e sua importância para as comunidades indígenas é a obra
clássica de João Mendes Jr. intitulada Os indígenas no Brasil, seus
direitos individuais e políticos, publicada em 1912. Nessa obra ressalta
o eminente jurista que a relação do índio com a terra é de “domínio
imediato”, “congênito”, isto é, um direito originário, que, observa ele,
já foi reconhecido pela legislação portuguesa do período colonial.
Assim, conclui João Mendes Jr., o “indigenato” não é um fato dependente
de legitimação, ao passo que a ocupação pelos colonizadores, como fato
posterior, depende do atendimento de requisitos legais e fáticos que a
legitimem.
Foi a partir daí que se fez a separação
entre os domínios público e privado, integrando o domínio público as
áreas utilizadas para algum fim de interesse público e também as terras
devolutas. Houve ressalva para as doações feitas até então pelos
governos gerais provinciais, desde que os donatários tivessem ocupado
efetivamente as terras. Mas as terras devolutas, incluindo as áreas
ocupadas por comunidades indígenas, foram integradas ao patrimônio do
Império e, depois da proclamação da República, ao patrimônio da União.
Assim, pois, as aquisições, a qualquer título, oriundas de atos dos
governos estaduais não têm valor legal, pois esses governos não tinham
condições legais para dispor de bens pertencentes ao patrimônio da
União.
Tudo isso é muito claro para quem
analisa, de boa-fé, a evolução do regime de terras no Brasil. E quanto
às terras indígenas a Constituição de 1988 dispõe expressamente, no
artigo 20, que “são bens da União: XI- as terras tradicionalmente
ocupadas pelos índios”. Além disso, é absolutamente clara quando
estabelece, no artigo 231, que “são reconhecidos aos índios sua
organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os
direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus
bens”. E em sete parágrafos acrescentados a esse artigo são reafirmados
com minúcias esses direitos sobre as terras, dispondo-se expressamente
que “as terras de que trata este artigo são inalienáveis e
indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”.
Esse último dispositivo é de fundamental
importância, pois tem havido casos em que invasores de má-fé negociam a
ocupação das terras com lideranças indígenas ingênuas e desinformadas,
pretendendo, assim, legalizar a invasão. Em termos jurídicos, é
legalmente possível a celebração de acordos para a exploração conjunta
das terras indígenas e de suas riquezas, por índios e não índios, mas
isso deve ser feito com a participação das autoridades federais
competentes e com a concordância prévia, livre e informada da comunidade
indígena, como está expresso na Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho sobre os Povos Indígenas e Tribunais, à qual o
Brasil aderiu. Fora disso a presença de invasores em terras indígenas
configura ilegalidade, o que exige a pronta reação das autoridades
competentes para garantia dos direitos constitucionais.
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