Relembrando
Pepe Mujica2009
Pepe
Mujica, foi um dos principais dirigentes do movimento guerrilheiro
tupamaro, que lhe custou anos de prisão e terríveis torturas
durante a ditadura militar (1973-1985), é um dos políticos mais
queridos do Uruguai,um homem de estilo simples e frontal. Foi um dos
fundadores do Movimento de Libertação Nacional (MLN), os
tupamaros, que surgiu como uma organização de esquerda ainda no
período civil, em
contraponto ao bipartidarismo blanco-colorado que dominava o país.
Depois de 1973, com a implantação de uma ditadura militar, passou
à luta armada. O nome tupamaro vem de Tupac Amaru, um líder inca
que lutou contra a dominação espanhola.
Agricultor,
carismático, “Pepe” Mujica é famoso por sua fala simples,
direta, “campechana” , como dizem lá. Andava sempre com uma
velha lambreta pelas ruas de Montevidéu, é considerado o político
mais popular no Uruguai, especialmente entre os jovens e os
uruguaios que migraram do país. Foi eleito deputado nas eleições
de 1994 e senador em 1999. Nas eleições de 2004 foi o legislador
com maior quantidade de votos, cargo a que renunciou ao ser
designado ministro de Pecuária, Agricultura e Pesca em março de
2005, onde ficou até de março do 2008.Junto com outros
dirigentes do Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros,
passou mais de doze anos preso em quartéis uruguaios, durante a
ditadura militar. Durante dois destes doze anos ficou praticamente
enterrado vivo, no fundo de um poço. Ele e seus companheiros que
foram submetidos a essa tragédia ficaram conhecidos como os
“reféns”. Mujica sobreviveu a essa provação e hoje é um dos
líderes políticos mais importantes do Uruguai. Mais do que isso, é
uma voz a ser ouvida, um exemplo de vida digna e corajosa.

"Queremos
Uruguai cheio de engenheiros, filósofos e artistas"
O
presidente eleito do Uruguai, José "Pepe" Mujica,
reuniu-se com um grupo de intelectuais em dezembro de 2009 e fez
alguns pedidos a eles: que contagiem todo o povo uruguaio com o
olhar curioso sobre o mundo, que está no DNA do trabalho
intelectual, e com o inconformismo. Mujica propõe também uma
revolução na educação. "Escolas de tempo completo,
faculdades no interior, ensino superior massificado. E,
provavelmente, inglês desde o pré-escolar no ensino público.
Porque o inglês não é idioma falado pelos ianques; é o idioma
com o qual os chineses conversam com o mundo. Não podemos ficar de
fora".
Pepe
Mujica
Discurso
proferido em dezembro de 2009 pelo presidente eleito da República
do Uruguai, José Alberto Mujica Cordano (El Pepe), dirigente
histórico e fundador do Movimento de Libertação Tupamaros:
"A vida tem sido extraordinariamente generosa comigo.
Ela me deu inúmeras satisfações, mais além do que jamais me
atrevera a sonhar.
Quase todas são imerecidas. Mas nenhuma
é mais que a de hoje: encontrar-me aqui agora, no coração da
democracia uruguaia, rodeado de centenas de cabeças pensantes.
Cabeças pensantes! À direita e à esquerda. Cabeças
pensantes a torto e a direito, cabeças pensantes para atirar para
cima.
Vocês se lembram do Tio Patinhas, o tio milionário
do Pato Donald que nadava em uma piscina cheia de moedas? Ele tinha
uma sensualidade física pelo dinheiro.
Gosto de me ver como
alguém que gosta de tomar banho em piscinas cheias de inteligência
alheia, de cultura alheia, de sabedoria alheia.
Quanto mais
alheia, melhor. Quanto menos coincide com meus pequenos saberes,
melhor.
O semanário Búsqueda
tem uma frase charmosa que usa como insígnia:
“O que
digo, não o digo como homem sabedor, mas sim buscando junto com
vocês”.
Por uma vez estamos de acordo. Sim, estaremos de
acordo.
O que digo, não o digo como chacareiro sabichão,
nem como trovador ilustrado. Digo-o buscando com vocês.
O
digo, buscando, porque só os ignorantes acreditam que a verdade é
definitiva e maciça, quando ela é apenas provisória e
gelatinosa.
É preciso buscá-la porque
ela anda correndo brincando de esconde-esconde. E pobre daquele que
empreenda essa caça sozinho.
É
preciso fazê-la com vocês, com aqueles que fizeram do trabalho
intelectual a razão de sua vida. Com os que estão aqui e com os
muito mais que não estão.
De
todas as disciplinas
Se
olharem para trás, seguramente encontrarão algumas caras
conhecidas porque se trata de gente que trabalha em espaços de
trabalho afins. Mas vão encontrar muito mais rostos desconhecidos
porque a regra desta convocação foi a heterogeneidade.
Aqui
estão os que se dedicam a trabalhar com átomos e moléculas e os
que se dedicam a estudar as regras da produção e da troca na
sociedade. Há gente das ciências básicas e de sua quase antípoda,
as ciências sociais: gente da biologia e do teatro, da música, da
educação, do direito e do carnaval. Há gente da economia, da
macroeconomia, da microeconomia, da economia comparada e até alguns
da economia doméstica. Todas cabeças pensantes, mas que pensam
distintas coisas e podem contribuir desde suas distintas disciplinas
para melhorar este país.
E melhorar este país significa
muitas coisas, mas entre as prioridades que queremos para esta
jornada, melhorar o país significa impulsionar os processos
complexos que multipliquem por mil o poderio intelectual que aqui
está reunido. Melhorar o país significa que, dentro de vinte anos,
o Estádio Centenário não seja suficiente para abrigar um ato como
este, pois o Uruguai estará cheio, até as orelhas, de engenheiros,
filósofos e artistas.
Não é queiramos um país que bata
os recordes mundiais pelo puro prazer de fazê-lo. É porque está
demonstrado que, uma vez que a inteligência adquira um certo grau
de concentração em uma sociedade, ela se torna contagiosa.
Inteligência
distribuída
Se,
um dia, lotarmos estádios de gente formada será porque, na
sociedade, haverá centenas de milhares de uruguaios que cultivaram
sua capacidade de pensar. A inteligência que traz riqueza para um
país é a inteligência distribuída. É a que não está só
guardada nos laboratórios ou na universidade, mas sim anda pela
rua. A inteligência que se usa para plantar, para tornear, para
manejar uma máquina, para programar um computador, para cozinhar,
para atender bem um turista é a mesma inteligência. Alguns subiram
mais degraus do que outros, mas se trata da mesma escada.
E
os degraus de baixo são os mesmos para a física nuclear e para o
manejo de um campo. Para tudo é preciso o mesmo olhar curioso,
faminto de conhecimento e muito inconformista. Acabamos sabendo
porque antes ficamos incomodados por não saber. Aprendemos porque
temos comichão e isso se adquire por contágio cultural desde
quando abrimos os olhos ao mundo.
Sonho com um país onde os
pais mostrem a pastagem a seus filhos pequenos e digam: “Sabem o
que é isso? É uma planta processadora da energia do sol e dos
minerais da terra”. Ou que lhes mostrem o céu estrelado e façam
com que pensem nos corpos celestes, na velocidade da luz e na
transmissão das ondas. E não se preocupem que esses pequenos
uruguaios vão seguir jogando futebol. Só que, lá pelas tantas,
enquanto vêem a bola picar, podem pensar ao mesmo tempo na
elasticidade dos materiais que a fazem rebotar. Capacidade
de interrogar-se
Havia
um ditado: “Não dê peixe a uma criança, ensina-a a pescar”.
Hoje deveríamos dizer: “Não dê um dado a uma criança,
ensina-a a pensar”.
Do jeito que vamos, os depósitos de
conhecimento não vão estar mais situados dentro de nossas cabeças,
mas sim fora, disponíveis para buscá-los na internet. Aí vai
estar toda a informação, todos os dados, tudo o que se sabe. Em
outras palavras, aí vão estar todas respostas. Mas não vão estar
todas as perguntas. O diferencial vai estar na capacidade de se
interrogar, na capacidade de formular perguntas fecundas, que
provoquem novos esforços de investigação e aprendizagem.
E
isso está bem no fundo, marcado quase no nosso de nossa cabeça,
tão fundo que quase não temos consciência.
Simplesmente
aprendemos a olhar o mundo com um sinal de interrogação e essa se
torna nossa maneira natural de olhar para o mundo. Adquirimos essa
capacidade muito cedo e ela nos acompanha por toda a vida. E,
sobretudo, queridos amigos, ela contagia.
Em todos os tempos
foram vocês, os que se dedicam à atividade intelectual, os
encarregados de espalhar a semente. Ou para dizê-lo em palavras que
nos são muito caras: vocês têm sido os encarregados de acender a
necessária inquietação.
Por favor, vão e contagiem. Não
perdoem a ninguém.
Necessitamos de um tipo de cultura que
se propague no ar, entre os lugares, que se cole nas cozinhas e até
nos banheiros. Quando conseguirmos isso, teremos ganho a partida
quase para sempre. Porque se quebra a ignorância essencial que
enfraquece muita gente, uma geração após a outra. O
conhecimento é prazer
Precisamos,
antes de mais nada, massificar a inteligência, para nos tornarmos
produtores mais potentes. Isso é quase uma questão de
sobrevivência. Mas nesta vida não se trata só de produzir: também
é preciso desfrutar. Vocês sabem melhor do que ninguém que, no
conhecimento e na cultura, não há só esforço, mas também
prazer.
Dizem que as pessoas que correm pelas ruas chegam
num ponto em que entram numa espécie de êxtase onde já não
existe o cansaço e só fica o prazer. Creio que ocorre o mesmo com
o conhecimento e a cultura. Chega um ponto onde estudar, investigar
e aprender já não é um esforço, mas um puro deleite.
Que
bom seria que esses manjares estivessem a disposição de muita
gente! Que bom seria se, na cesta de qualidade de vida que o Uruguai
pode oferecer a sua gente, houvesse uma boa quantidade de consumos
intelectuais. Não porque seja elegante, mas sim porque é
prazeroso. Porque se desfruta com a mesma intensidade com a qual se
pode desfrutar de um prato de talharim.
Não há uma lista
obrigatória das coisas que nos tornam felizes! Alguns podem pensar
que o mundo ideal é um lugar repleto de shopping centers. Nesse
mundo, as pessoas são felizes porque todos podem sair cheios de
sacolas com roupas novas e caixas de eletrodomésticos. Não tenho
nada contra essa visão, só digo que ela não é a única possível.
Digo que também podemos pensar em um país onde a gente
escolhe arrumar as coisas ao invés de jogá-las fora, onde se
prefere um carro pequeno a um grande, onde decidimos nos agasalhar
melhor ao invés de aumentar a calefação.
Esbanjar não é
o que fazem as sociedades mais maduras. Vejam a Holanda e as cidades
repletas de bicicletas. Aí as pessoas se deram conta de que o
consumismo não é a escolha da verdadeira aristocracia da
humanidade. É a escolha dos farsantes e dos frívolos.
Os
holandeses andam de bicicleta, eles as usam para ir trabalhar, mas
também para ir a concertos ou aos parques. Chegaram a um nível em
que sua felicidade cotidiana se alimenta de consumos materiais como
intelectuais.
De modo que, amigos, vão e contagiem todos
com o prazer pelo conhecimento. Paralelamente, minha modesta
contribuição será fazer com que os uruguaios andem de pedalada em
pedalada. Inconformismo
Eu
lhes pedi antes que contagiem os outros com o olhar curioso sobre o
mundo, que está no DNA do trabalho intelectual. E agora aumento o
pedido e lhes rogo que contagiem também com o inconformismo. Estou
convencido que este país necessita uma nova epidemia de
inconformismo, como a que os intelectuais geraram décadas atrás.
No Uruguai, nós que estamos no espaço político da
esquerda somos filhos ou sobrinhos daquele semanário Marcha, do
grande Carlos Quijano. Aquela geração de intelectuais impôs-se a
si mesma a tarefa de ser a consciência crítica da nação. Andavam
com alfinetes na mão, estourando balões e desinflando mitos.
Sobretudo o mito do Uruguai multicampeão. Campeão da
cultura, da educação, do desenvolvimento social e da democracia.
Acabamos não sendo campeões de nada. Menos ainda nestes anos, nas
décadas de 50 e 60, onde o único recorde que obtivemos foi ser o
país da América Latina que menos cresceu em 20 anos. Só o Haiti
nos superou neste ranking.
Esses intelectuais ajudaram a
demolir aquele Uruguai da siesta
conformista.
Com todos seus defeitos, preferimos esta etapa,
onde estamos mais humildes e situados na real estatura que temos no
mundo. Mas precisamos recuperar aquele inconformismo e colocá-lo
embaixo da pele do Uruguai inteiro. Antes
eu dizia a vocês que a inteligência que serve a um país é a
inteligência distribuída. Agora, digo que o inconformismo que
serve a um país é o inconformismo distribuído. Aquele que invade
a vida de todos os dias e nos empurra a perguntar-nos se o que
estamos fazendo não pode ser feito melhor. O inconformismo está na
própria natureza do trabalho de vocês. Precisamos que ele se torne
uma segunda natureza de todos nós.
Uma
cultura do inconformismo é aquela que não nos deixa parar até que
consigamos mais quilos por hectare de trigo ou mais litros por vaca
leiteira. Tudo, absolutamente tudo, pode ser feito de um modo um
pouco melhor do que foi feito ontem. Desde arrumar a cama de um
hotel até produzir um circuito integrado.
Necessitamos de
uma epidemia de inconformismo. E isso também é cultural, também
se irradia desde o centro intelectual da sociedade para sua
periferia. É o inconformismo que fez com que pequenas sociedades
ganhassem respeito sobre o que fazem. Aí estão os suíços, meia
dúzia de gatos pintados como nós, que se dão o luxo de andar por
aí vendendo qualidade suíça ou precisão suíça. Eu diria que o
que vendem de verdade é inteligência e inconformismo suíços, que
estão esparramados por toda a sociedade. A
educação é o caminho
Amigos,
a ponte entre este hoje e este amanhã que queremos tem um nome e se
chama educação. É uma ponte longa e difícil de cruzar. Porque
uma coisa é a retórica da educação e outra coisa é nos
decidirmos a fazer os sacrifícios necessários para lançar um
grande esforço educativo e sustentá-lo no tempo. Os investimentos
em educação são de rendimento lento, não iluminam nenhum
governo, mobilizam resistências e obrigam o adiamento de outras
demandas. Mas
é preciso seguir esse caminho. Devemos isso a nossos filhos e
netos. E é preciso fazê-lo agora, quando ainda está fresco o
milagre tecnológico da internet e se abrem oportunidades nunca
antes vistas de acesso ao conhecimento.
Eu
me criei com o rádio, vi nascer a televisão, depois a televisão a
cores, depois as transmissões por satélite. Mais tarde, passaram a
aparecer quarenta canais em minha TV, incluindo aí os que
transmitiam direto dos Estados Unidos, Espanha e Itália. Depois
vieram os celulares e os computadores que, no início, serviam
apenas para processar números. Em cada um destes momentos, fiquei
com a boca aberta. Mas agora com a internet se esgotou a minha
capacidade de surpresa. Sinto-me como aqueles humanos que viram uma
roda pela primeira vez. Ou que viram o fogo pela primeira vez.
Sentimos que nos tocou a sorte de viver um marco na
história. Estão sendo abertas as portas de todas as bibliotecas e
de todos os museus. Todas as revistas científicas e todos os livros
do mundo vão estar a nossa disposição. E, provavelmente, todos os
filmes e todas as músicas do mundo. É perturbador.
Por
isso precisamos que todos os uruguaios e, sobretudo, todos os
pequenos uruguaios saibam nadar nessa corrente. Precisamos subir
essa corrente e navegar nela como um peixe na água. Conseguiremos
isso se a matriz intelectual da qual falávamos antes estiver
sólida. Se soubermos raciocinar em ordem e fazermos as perguntas
que valem a pena.
É como uma corrida em duas vias: lá em
cima no mundo o oceano de informação; aqui embaixo, nós,
preparando-nos para a navegação transatlântica.
Escolas
de tempo completo, faculdades no interior, ensino superior
massificado. E, provavelmente, inglês desde o pré-escolar no
ensino público. Porque o inglês não é idioma falado pelos
ianques; é o idioma com o qual os chineses conversam com o mundo.
Não podemos ficar de fora. Não podemos deixar nossas crianças de
fora.
Essas são as ferramentas que nos habilitam a
interagir com a explosão universal do conhecimento. Este mundo não
simplifica a nossa vida: complica-a. Nos obriga a ir mais longe, a
ir mais fundo na educação. Não há tarefa maior diante de nós.
O
idealismo ao serviço do Estado
Queridos
amigos, estamos em tempos eleitorais. Em benditos e malditos tempos
eleitorais. Malditos, porque nos põe a brigar e a disputar corridas
entre nós. Benditos, porque nos permitem a convivência civilizada.
E mais uma vez benditos porque, com todas as suas imperfeições,
nos fazem donos do nosso próprio destino. Aqui todos aprendemos que
é preferível a pior democracia à melhor ditadura.
Nos
tempos eleitorais, todos nos organizamos em grupos, frações e
partidos, nos cercamos de técnicos e profissionais e desfilamos
frente ao soberano. Há adrenalina e entusiasmo. Mas depois, alguém
ganha e alguém perde. E isso não deveria ser um drama.
Com
estes ou com aqueles, a democracia uruguaia seguirá seu caminho e
irá encontrando as fórmulas rumo ao bem-estar. Seja qual for o
lugar que nos toque, ali estaremos colocando a tarefa sobre os
ombros. E estou seguro de que vocês também. A sociedade, o Estado
e o Governo precisam de seus muitos talentos. E precisam mais ainda
de sua atitude idealista. Nós que estamos aqui, entramos na
política para servir, não para nos servir do Estado. A boa fé é
a nossa única intransigência. Quase todo o resto é negociável.
Muito obrigado por acompanharem-me."
Pepe Mujica