Sofrimento animal

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“CAN THEY SUFFER?”


Reflexões derridianas sobre a incontornável
evidência do sofrimento animal

“Para que este estufado indivíduo degustasse seu presunto, uma criatura viva teve de ser criada, arrastada para sua morte, esfaqueada, torturada e escaldada em água quente. O homem não dava um segundo de pensamento
ao fato de que o porco era feito do mesmo material e que este tinha de pagar com sofrimento e morte para que ele pudesse saborear suacarne. Pensei mais uma vez que, quando se trata de animais, todo homem é um nazista.” -
 ISAAC BASHEVIS SINGER (1904-1991), Prêmio Nobel de
Literatura.


 


Pode-se discutir e polemizar sobre se os animais possuem razão, linguagem ou comunicação; mas o inegável, aquilo que tende a ser aceito
consensualmente, é o fato do sofrimento de que eles são inegavelmente capazes. À questão “os animais sofrem?”, a resposta incontornável, o reconhecimento que têm de fazer qualquer
testemunha de boa-fé, o inegável fato bruto é este: “ninguém pode negar o sofrimento, o medo ou o pânico, o terror ou o pavor que podem se apossar de certos animais e que nós, os homens, podemos testemunhar.” (p. 56)
A ousada crítica que Derrida lança neste seu O Animal Que Logo Sou (Ed.Unesp) contra a filosofia “logocêntrica” (“que se mantêm de Aristóteles a Heidegger, de Descartes a Kant, de Levinas a Lacan…” – pg. 54), a acusação que lança contra os “fanáticosda lógica” (que, segundo Nietzsche, “são insuportáveis como
vespas”), é a de ter posto a questão errada. Os filósofos logocêntricos se perguntam: “os animais têm razão, têm linguagem, têm lógos?” Quando o principal, o fundamental, o mais essencial a se perguntar, “a questão prévia e decisiva seria a de
saber se os animais podem sofrer. Can they suffer?” (p. 54)

 A questão é urgente e colossal pois o sofrimento animal, longe de diminuir, parece estar em aumento exponencial nos últimos séculos: “além
da caça, da pesca, da domesticação, do adestramento ou da exploração tradicional da energia animal” (animais de tração escravizados aos fins humanos, por exemplo), “no decurso dos últimos 2 séculos estas formas tradicionais de tratamento do animal foram subvertidas pelos desenvolvimentos conjuntos de saberes
zoológicos, etológicos, biológicos e genéticos, (…) pela criação e adestramento a uma escala demográfica sem nenhuma comparação com o passado, pela experimentação genética, pela
industrialização do que se pode chamar a produção alimentar da carne animal, pela inseminação artificial maciça, pelas
manipulações cada vez mais audaciosas do genoma…” (p. 51).

Exemplos dentre muitos deste empreendimento humano colossal de exploração e escravização dos viventes animais, ainda silenciado e pouco
percebido, em especial em suas gigantescas proporções: a violência do “assujeitamento do animal” atingiu, segundo Derrida, “proporções sem precedentes.” (p. 51) Será tão absurda assim
a ideia, que Isaac Bashevis Singer propagava, de que aos olhos de um animal “todo homem é um nazista”? Em outros termos: será que nossos sistemas econômicos, políticos, culturais, morais e jurídicos não conduzem a tratarmos os animais de uma maneira similar ao tratamento imposto pelo III Reich aos viventes que encerrou e dizimou nos campos de concentração?


 “Os homens fazem tudo o que podem para dissimular ou para se dissimular essa crueldade, para organizar em escala mundial o esquecimento ou o desconhecimento dessa violência que alguns poderiam comparar aos
piores genocídios. Existem também os genocídios animais: o número de espécies em via de desaparecimento por causa do homem é de tirar o fôlego. (…) Todo mundo sabe que terríveis e insuportáveis quadros uma pintura realista poderia fazer da violência industrial,
mecânica, química, hormonal, genética, a qual o homem submete há dois séculos a vida animal.” (pg. 53)
Não se trata, pois, de fazer qualquer apelo sentimentalóide e patético às consciências humanas para que “sintam pena” dos pobres
bichinhos. O que se pede é bem mais que mera compaixão: o pensamento de Derrida é tão ousado e demandante pois ele nos exige
uma completa subversão dos paradigmas logocêntricos e antropocêntricos que infestam nosso modo de pensar. A presunção humana de uma superioridade inata que decorria da humanidade possuir o Lógos, ser capaz de linguagem, ser dotada de racionalidade: eis o
que está em questão. O animal que se auto-denomina “racional”, e que presume-se superior às “bestas privadas de razão”, dá-se
o privilégio de poder escravizar e subjugar todos os outros viventes. Os animais não são Outros, viventes finitos como nós, dotados de automotricidade e sensibilidade, palco de afetos, capazes não só de ser vistos mas de nos verem: eles são reduzidos, por alguns entusiastas das churrascarias e dos rodízios, a presunto,
bacon, frango-assado… A questão é: seria possível a existência das churrascarias sem os matadouros, ou há um vínculo necessário
que os une? A demanda do consumidor de carne não é aquilo que faz “brotarem” no mundo estas gigantescas “fábricas de carne” onde a vida é reduzida a mercadoria e os viventes sensíveis-sofrentes são expostos aos mais intensos e prolongados sofrimentos existenciais, do parto ao abate?

Temos o direito de impor uma vida de terríveis sofrimentos a bilhões e bilhões de criaturas viventes, em quem reconhecemos ao menos a capacidade de sofrer, ainda que neguemos a elas a posse de faculdades racionais, e só porque tendemos a gostar do gosto de sua carne? O “aprecio muito o sabor da linguiça” justifica que tratemos seres vivos como meios e que se imponha a eles a prisão, o engordamento forçado, o abate impiedoso? Quem é que acredita, ainda hoje, que o presunto
“brota” no supermercado como “produto industrializado”? Quem é que ignora que as fatias do presunto são partes de um cadáver
que a Indústria tratou de matar e cortar em pedacinhos, devidamente refrigerados, para o conforto e bem-estar do consumidor? E quem é
que se ilude pensando que este vivente morreu de velho? Não nos esqueçamos que nós impomos a morte: não nos contentamos em esperar que aconteça. Nem mesmo a fome é nossa desculpa: muitos animais são mortos, não por causa da humana fome, mas da humana gula.
“Diante da negação organizada dessa tortura, algumas vozes de levantam (minoritárias, fracas, marginais…) para protestar, para apelar ao que se apresenta ainda de maneira tão problemática como os direitos do animal.” (pg. 53). E é de se notar que nos últimos anos o cenário filosófico têm se preocupado mais com estes ainda
incipientes e frágeis Direitos Animais, por exemplo através da obra de Peter Singer, autor de Libertação Animal e Ética Prática, e do Eating Animals, de Jonathan Safran Foer, dentre outros livros. Inserem-se, talvez, no quadro das tentativas de “nos acordar para nossas responsabilidades e nossas obrigações em relação ao vivente em geral, e precisamente a essa compaixão fundamental que, se fosse tomada a sério, deveria mudar até os alicerces da problemática filosófica do animal.” (pg. 53)

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A relação dos animais
humanos com aqueles que eles, os homens, chamam de “animais”, quase sempre tentando diferenciar-se deles, abrir um abismo que os
separa, esteve marcada, através da História, pela violência. A violência da caça e da pesca, é claro: é inimaginável, de tão colossal, a quantidade de flechas e de balas que destroçaram vidas de animais na história deste animal genocida que somos – o animal que atira, que constrói bombas, que põe sua tecnologia no fabrico
de matadouros high-tech. Estes viventes que os homens gostam de chamar de “animais” foram escravizados, oprimidos, mal-tratados, forçados ao trabalho, abatidos sem piedade, na presunção de que fossem “inferiores” e na presunção de que foram criados para “servirem” a nós, os auto-proclamados Senhores da Terra.
É óbvio que isso não surpreenderá muito àqueles que conhecem os modos como os homens tratam-se uns aos outros: os europeus que invadiram a América a partir de 1492, por exemplo, adoravam agarrar-se àquelas doutrinas
que diziam, dos africanos e dos indígenas, que eram “desprovidos de alma” e “não passavam de animais”, o que era justificativa suficiente para acorrentá-los, deportá-los em massa, enfiá-los em navios superlotados, levá-los para trabalhar até a morte longe de suas casas, debaixo do chicote e do sol inclemente. A justificativa
do genocídio frequentemente passa por uma presunção de superioridade. Se o homem pôde cometer tamanhos horrores contra outros homens, realmente não surpreende que tenha podido agir diante dos chamados “animais” com um grau de violência inaudito no mundo humano.

A filosofia, até hoje, pelo menos em suas “correntes dominantes”, desde Aristóteles e Agostinho, desde Sócrates e Platão a Descartes e
Kant, chegando em Lévinas, Lacan e Heidegger, é marcada por um logocentrismo antropocêntrico que trata os viventes ditos “animais” como inferiores, já que são desprovidos de tudo aquilo que julga-se privilégio e glória do humano. São seres sem Razão, sem Lógica, sem Intelecto, sem Lógos, sem télos…

Uma das muitas originalidades que Nietzsche trouxe à filosofia, como aponta Derrida, consiste numa “reanimalização” do pensamento:
Zaratustra fala, em suas parábolas e paródias, do camelo, do leão e da criança – e um transmuta-se no outro! Há também a águia e a serpente povoando de animalidades os cenários do filosofo poema zaratustriano. O perspectivismo ameríndio não está distante destas epifanias místico-poéticas do autor d’A Gaia Ciência.
Em sua solidão e isolamento de montanhês apaixonado pelas alturas, Nietzsche povoou seus arredores com figuras animais, até o colapso
em Turim, episódio-esfinge de difícil decifração mas que parece essencial na compreensão deste destino singularíssimo do animal Nietzsche, ele “que foi suficientemente louco para chorar junto de um animal, sob o olhar ou contra a face de um cavalo. Por vezes, creio vê-lo tomar esse cavalo por testemunha, e sobretudo para tomá-lo como testemunha de sua compaixão, pegar sua cabeça entreas mãos…” (DERRIDA: 1999, pg. 67)



 O homem inventou a palavra “animal” – é esta uma das hipóteses derridianas – para se referir a “todos os viventes que o homem não reconheceria como seus semelhantes, seus próximos ou seus irmãos.” (p. 65). Os filósofos adoram enumerar as privações dos ditos animais, tudo o que lhes falta para serem como nós: eles são desprovidos de linguagem, não sabem dar respostas, não se comunicam em nossa
língua, não conheciam ritos de luto nem têm a potencialidade de dar risada. Por essas e outras são tidos por inferiores, escravizáveis, transformáveis em bacon.

O termo “animal”, que “dispõe um grande número de viventes sob esse único conceito” (p. 61), é algo que desagrada a Derrida, sempre tão
“atento à diferença, às diferenças, à heterogeneidades e às rupturas abissais” (p. 58). Colocar todos os viventes não-humanos
debaixo do guarda-chuva conceitual “animal”, como se fossem farinha do mesmo saco, é uma grosseira falsificação de uma realidade onde “espaços infinitos separam o lagarto do cão, o
protozoário do golfinho, o tubarão do carneiro, o papagaio do chimpanzé, o camelo da águia, o esquilo do tigre, ou o elefante do gato… Interrompo minha nomenclatura e peço socorro a Noé para não esquecer ninguém na arca.” (p. 65)

  

Os limites, traçados por humanos, entre homens e animais, são no mínimo suspeitos de serem artificiosas criações linguísticas que agem em causa própria. Um animal quis contar-se a confortadora fábula de que ele não era um animal. O animal homem sofre, pensa e
sente tão pouco sobre os sofrimentos em geral, os sofrimentos dos viventes que não lhe assemelham, os sofrimentos que não são seus,
a ponto de escamotear, reprimir e se esquivar do que Derrida não teme chamar, peremptório, de inegável. A filosofia é fiel à sua missão de busca da Verdade se não admitir e se não se predispor a enxergar esta incontornável evidência do sofrimento animal?

 * * * * *

 Na mitologia judaico-cristã, a presunção narcísica do Homem atinge uma culminância que prossegue até hoje a assombrar nossa cultura, nossa filosofia, nossas convicções sobre nosso estatuto cósmico. Derrida relembra que o homem, descrito como “réplica de Deus”, criado à sua imagem e semelhança, antes do Pecado Original, “recebe imediatamente a ordem de sujeitar os animais. Ele deve, para obedecer, marcá-los com sua ascendência, sua dominação, (…) seu poder de domar. (…) [Deus] criou o homem à sua semelhança para que o homem sujeite, dome, domine, adestre ou domestique os animais nascidos antes dele, e assente sua autoridade sobre ele. Deus destina os animais a experimentar o poder do homem, (…) para ver o homem tomar o poder sobre todos os outros viventes.” (pg. 35 e 37)

Não demoraram a começar os sacrifícios, as hecatombes, os bodes expiatórios: o sangue animal jorrando para agradar aos deuses inventados pelos homens. Ouçamos a própria palavra “divina”, o verbo deste Javé sanguessuga que criou os homens para que eles reinassem sobre os vivos com presunçosa violência: “Iahvé Elohim diz: ‘Que tenham autoridade sobre os peixes do mar e sobre os pássaros dos céus,
sobre os animais a domesticar, sobre todas as feras selvagens e sobre todos os répteis…” (pg. 35).

 Há só um passinho da presunção judaico-cristã, referendada nos livros “sagrados”, do Homem como ápice da Criação e filho predileto de um Deus que teria criado todos os animais para que servissem e fossem usados, à presunção dos filósofos de que a presença do Lógos no humano é sinal inconteste de um abismo imensurável entre nós, nesta margem, e eles, les animots, que são doravante segregados à outra margem, reduzidos a serem subjugados por nossa augusta superioridade suposta e pouco questionada.

Derrida parte, em sua reflexão, da experiência de estar pelado diante de seu gato. Sente vergonha de sua nudez, e vergonha de sentir vergonha, enquanto o gato que nunca vestiu roupas está em plena naturalidade em sua peladice. O gato sem pudor olha o homem, acostumado a andar vestido, e o homem cora de vergonha diante do olhar felino. Esta experiência me remete ao dito de Camus: “o homem é a única criatura que se
recusa a ser o que é.” Nós vestimos roupas e “cobrimos nossas vergonhas”, coisa que nenhum outro animal faz: é de se suspeitar que a raiz desse costume seja a nossa tentativa de negar nossa similitude e nossa fraternidade em relação ao que chamamos, com ímpetos segregacionistas, de animais?

 O gato que está diante do filósofo pelado, o gato que observa com Jacques Derrida enquanto este se envergonha de estar nu diante de um olhar animal, é uma abertura para o abismo fecundo da alteridade e da diferença. O gato é um outro que me olha, e não apenas um outro olhado por mim; uma existência independente da minha, e que relaciona-se comigo de modos que, na maior parte dos casos, são ilegíveis, indevassáveis,
misteriosos. “Ele [o gato] tem seu ponto de vista sobre mim. O ponto de vista do outro absoluto, e nada me terá feito pensar tanto sobre essa alteridade absoluta do vizinho ou do próximo quanto os momentos em que eu me vejo visto nu sob o olhar de um gato.” (pg.28)

 

Mas dizer “um gato” já é uma traição, já é tentar grudar uma palavra, que serve de direito a um gato qualquer, a este “vivente insubstituível”. Nenhuma onça é idêntica a outra onça: não
podemos deixar que a linguagem, ou seja, o fato de utilizarmos a mesma palavra para nos referirmos a dois animais semelhantes, nos
cegue para as evidências inegáveis da diferença – ou, como prefere dizer Viveiros de Castro, da diferOnça. “Nada poderá tirar de mim, nunca, a certeza de que se trata de uma existência
rebelde a todo conceito.” (DERRIDA: p. 26).

Derrida, filósofo que assinala e sublinha, sempre que pode, a “insubstituível singularidade”, convida-nos a enxergarmo-nos como animais entre animais, re-inseridos na fervilhante e complexa teia das alteridades, em relação fecunda com outras perspectivas sobre a realidade, sem impormos a nossa como absoluta. O acolhimento à diferença, ameditação junto ao Outro, inclusive um Outro-gato ou um
Outro-ouriço, é um convite que Derrida nos estende: é um convite à ampliação da consciência e uma demanda de uma ética mais vasta, que supere o logocentrismo e o narcisismo que fundamentam os múltiplos genocídios animais de que os últimos milênios estiveram tão repletos. Nu diante do gato, pergunta-se um animal filosófico: “esse gato não pode ser, no fundo de seus olhos, meu primeiro espelho?” (pg. 92)




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