terça-feira, 30 de novembro de 2010

Livre comércio agrícola é máquina de fabricação de pobreza

Para o pesquisador francês Marcel Mazoyer, do Instituto Nacional Agronômico Paris-Grignon, em alguns países a política de liberalização do mercado agrícola tem levado até 80% da população à pobreza. As regiões mais ricas, nas quais os produtores conseguem se apropriar de técnicas de aumento de produtividade, se tornam mais competitivas e aos poucos eliminam os pequenos. “Trata-se de desenvolvimento desigual, que termina no empobrecimento e exclusão dos camponeses”, disse. “Em muitos lugares, como no Brasil, o capitalismo agrário está impedindo a agricultura familiar e camponesa”.
Bia Barbosa
Está no Brasil o pesquisador francês Marcel Mazoyer, professor emérito de agricultura comparada e de desenvolvimento agrícola no Instituto Nacional Agronômico Paris-Grignon. Mazoyer veio ao país participar de uma série de debates de lançamento do livro História das Agriculturas no Mundo – do Neolítico à Crise Contemporânea, escrito em parceria com Laurence Roudart, mestre em economia política agrícola e alimentar pelo mesmo instituto francês.


Durante o lançamento em São Paulo – realizado na última semana pelo Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural do Ministério do Desenvolvimento Agrário (NEAD/MDA), Editora Unesp e Cátedra UNESCO de Educação do Campo e Desenvolvimento Territorial –, Marcel Mazoyer alertou que a falta de alimentos para grande parte da população é fruto de um processo histórico de desenvolvimento agrícola desigual e que não pode ser resolvida com o simples aumento da produção, mas requer uma modificação estrutural no campo, que passa pela reforma agrária (leia mais em “Segurança alimentar é o grande desafio do século XXI”)


Em São Paulo, o pesquisador concedeu uma entrevista exclusiva à Carta Maior, em que explica as desigualdades existentes no mundo contemporâneo a partir da política de liberalização do mercado agrícola e analisa como a globalização deste mercado tem aumentado ainda mais o desemprego e a pobreza no planeta.


Autor de quase 10 livros, Mazoyer é membro do Comitê de avaliação do desenvolvimento agrícola e rural do Ministério da Agricultura, integrando também o Comitê de Ética de Dragris, e o Conselho de Perspectiva Européia e Internacional para a Agricultura e Alimentação. O pesquisador exerce ainda função de vice-presidente da Associação Francesa para a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO).


Leia a seguir os principais trechos da entrevista.


Carta Maior – Seu livro resgata a epopéia da agricultura durante milênios a partir da perspectiva dos camponeses produtores e vendedores de produtos agrícolas. Por que esta escolha?


Marcel Mazoyer – Porque sou filho de camponeses. Estudei economia agrícola na escola, mas venho de uma região de camponeses pobres, no centro da França, numa parte da Borgonha, onde pequenos produtores foram pouco a pouco eliminados pela concorrência, ao longo de um processo de empobrecimento. Neste processo, as regiões mais ricas, nas quais os produtores conseguem se apropriar de técnicas de aumento de produtividade, se tornam mais competitivas e aos poucos eliminam os pequenos. Trata-se de desenvolvimento desigual, que termina no empobrecimento e exclusão dos camponeses. Eu cresci dentro desta realidade. Na minha cidade havia 20 fazendas. Hoje não há mesmo uma.


CM – A concentração não seria uma consequência natural do capitalismo?


MM – Não. Mesmo fora do capitalismo, uma economia mercantil concorrencial resulta nisso. O objetivo perseguido é encontrar meios de produção mais eficazes, que vão aumentar a concorrência, fazer baixar o preço da produção e dominar o mercado, excluindo aqueles que não são competitivos. Isso aconteceu com a França e com os países de capitalismo desenvolvido da Europa Ocidental. Mas nesses países a agricultura não era capitalista; eram países capitalistas baseados numa agricultura familiar camponesa. No final do século XVIII, os dinamarqueses fazem uma reforma agrária, realizada pela nobreza, e este modelo é seguido posteriormente pela Europa Ocidental, com uma única exceção: os ingleses. Lá os camponeses foram expropriados, para fazer baixar o preço da força de trabalho na indústria, enviar trabalhadores para colonizar os Estados Unidos e a Austrália e também para ter, na agricultura da Inglaterra do século XVII e XVIII, a mão de obra mais barata possível. Ou seja, o modelo de desenvolvimento da agricultura inglesa era latifundiário. O mesmo aconteceu aqui no Brasil, desde a abolição da escravatura. A melhor maneira de acumular o capital e de ter a mais barata força de trabalho disponível é privar o camponês de seu acesso à terra.


CM – Mas o fato de não ser uma política agrícola capitalista não impediu a concentração de renda.


MM – Exato. E esta concentração se deu de forma desigual. Sozinho – não tem nada a ver com a idéia de trabalhadores assalariados do capitalismo –, os produtores franceses passaram de 50 para 100 hectares, de um trator de 100 cavalos para um de 200 cavalos, e assim por diante. Estudando, vi que poderíamos agir diferente. Poderíamos ter uma política que não permitisse que o desenvolvimento desigual se desse de forma muito rápida.


CM – Como a França fez a isso?


MM – Em 1962, o ministro francês da Agricultura, em diálogo com lideranças dos jovens camponeses, que não estavam satisfeitos com o que herdariam de seus pais – propriedades não competitivas –, toma uma decisão política muito importante: implementa uma lei anti-acumulação, que proibia as propriedades de crescerem a um tamanho maior daquele que demandasse mais de dois trabalhadores. Ou seja, interditamos a agricultura capitalista assalariada. Proibimos a constituição de propriedades por capitais que não os das famílias de agricultores. Deixamos de fora o capital estrangeiro na compra de terras. Havia, portanto, decisões de governos – que não eram necessariamente de esquerda; na França o presidente era De Gaulle – que impediam o desenvolvimento desigual do capitalismo na agricultura.


CM - Havia um objetivo de proteger a soberania alimentar naquele momento?


MM - A idéia de praticar uma política de soberania alimentar, ou seja, uma política agrícola que respondesse aos interesses dos franceses, era algo em que ninguém pensava naquela época. Esta preocupação existe hoje porque há uma regulamentação internacional que impede alguns países de fazer isso. Mas em 1945, os países desenvolvidos da Europa Ocidental e o Japão, após a guerra, não tinham produção suficiente. Quem tinha excedente de produção eram Estados Unidos, Canadá, Austrália e África do Sul, enfim, países anglo-saxões que não haviam sido quebrados pela guerra. Havia fome quase em todos os países da Europa, talvez até mais do que na África. Então éramos importadores de alimentos, e os Estados Unidos emprestava dinheiro a todos os países que estavam em necessidade alimentar para comprar seus próprios excedentes. O preço dos alimentos era muito alto, e os Estados Unidos lucraram com esses investimentos. Mas a preocupação não era proteger a soberania alimentar, e sim a concentração da propriedade.


CM – Mas essa política não foi reproduzida em todos os países.


MM – Não. As agriculturas americana e européia aumentaram sua capacidade de produção, baixaram o preço de seus produtos e, pouco a pouco, eliminaram os pequenos agricultores em países que não tinham uma política de proteção. Quando os produtos chegavam na África, onde a produtividade era 10, 20, 50 vezes menor, esses produtos provocavam paralisação do desenvolvimento e queda na renda. Ou seja, as exportações daqueles que já são equipados e muito competitivos afetam todos os camponeses dos países que não se protegem. E a África estava competindo com os preços mais competitivos do mundo.


CM – Como isso começou?


MM – Nos anos 70, o Plano de Ajuste Estrutural impôs aos países pobres e subdesenvolvidos do Sul a liberalização de seu mercado, o que acabou com as poucas indústrias que eles tinham em competição com as indústrias dos países mais desenvolvidos. Nos anos 80, começamos a impor também o livre comércio agrícola. É preciso diferenciar a liberalização agrícola e da financeira-industrial. Nos anos 70 houve a liberalização dos capitais, sobretudo do Japão, que envia os capitais acumulados à sua periferia no sudeste asiático. Depois, pouco a pouco, todos os países capitalistas foram obrigados a fazer o mesmo. Então chegamos à globalização liberal, à exceção da agricultura. Até aí, o GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio) não havia tocado na agricultura. O princípio da soberania alimentar excluía que falássemos de liberalização agrícola. Cada país tinha o direito de fixar sua política. Os países importadores – como nós, de 1945 a 1970 – faziam os acordos com os americanos, mas se protegiam. Hoje se um país agrícola pobre reivindica o direito de se proteger os países desenvolvidos lembram a Rodada Uruguai [que levou à liberalização do comércio agrícola]. Mas antes proteger a agricultura de um país para atender às necessidades de seu povo era algo inquestionável. Não conheci nenhum economista, nem na FAO, no Banco Mundial ou no FMI, na OCDE [Organização Européia de Cooperação e Desenvolvimento] que dissesse "é necessário fazer o livre comércio agrícola." Se alguém falasse isso seria considerado louco.


A política de soberania alimentar fazia parte de um conjunto de políticas globais kenesyanas, incluída a Política do Pleno Emprego. A ONU havia promovido a reforma agrária em todos os lugares para evitar a miséria campesina. O capitalismo havia compreendido que seria necessário eliminar a pobreza para que o sistema funcionasse bem. Não por bondade, mas por necessidade. Não era uma coisa de política de esquerda ou direita. Todos os governos implementaram esta política. Por isso, na Europa não havia mais pobres, não havia desemprego, mendicância, quase não havia prostituição, todo mundo tinha educação até os 16 anos e acesso à saúde.


Essa política durou 30 anos, mas em 1975 começam os desequilíbrios, porque nos esquecemos de estender os benefícios ao restante do mundo. E, por uma questão de correlação de forças, em função de uma onda neoliberal que crescia, decide-se suprimir esta política nos países desenvolvidos e de utilizar o capital para explorar a mão de obra de maneira selvagem nos quatro cantos do mundo – e assim contribuir para baixar os salários e gerar desemprego nos outros países.


Este Plano de Ajuste Estrutural, de 1980 a 1990, fez todos países reduzirem gastos, o que foi extremamente negativo para a população. A pobreza aumentou sensivelmente. Mas eles perceberam que, apesar disso, nada provocou a revolução. Ou seja, era politicamente suportável. E foi aí que resolveram incluir a agricultura no programa do GATT e liberar o comércio agrícola.


CM – Que tipo de conseqüências essa liberalização gerou?


MM – Isso foi decisivo para os países agroexportadores desenvolvidos: Estados Unidos, Canadá, Austrália. Em 1974, quando houve a explosão dos preços agrícolas, pessoas compravam um milhão de hequitares no Mato Grosso, na Argentina. É lá que os capitais se aproveitam da revolução agrícola e da revolução verde e começa a primeira onda de grande investimento capitalista na agricultura. Começa a exportação brasileira, argentina: soja, trigo, milho. As exportações americanas e canadense estabilizam e, em alguns momentos, diminuem. O que fazem então os Estados Unidos diante de países que podem produzir na mesma quantidade, ou mais, por um custo menor? Eles compreendem que vão perder parte do seu mercado de exportação – e o controle do mercado agrícola internacional não é apenas uma posição de poder econômico, mas também de poder político. São obrigados então a agir de duas formas em paralelo: proteger seus investimentos, seus negócios agrícolas e alimentares nos quatro cantos do mundo e também dentro do país. Fixam então um preço internacional e garantem que seus produtores não terão prejuízo vendendo os produtos a este valor para fora e também dentro do país. Isso faz com que seus produtos não cheguem ao mercado externo mais caros que os produtos brasileiros ou argentinos. Na prática, fazem dumping. Protegem seus agricultores vendendo de maneira mascarada produtos subsidiados.


CM – A política protecionista francesa, no entanto, é mais criticada pelos grandes produtores brasileiros.


MM – O sistema americano é muito pior que o protecionismo europeu. Nós não exportamos muito. O que acontece nos EUA é dumping. É isso que permite ao agronegócio brasileiro dizer aos africanos que "a culpa é daqueles que subsidiam". A causa do subsídio é o dumping econômico e social, ecológico do grande capital, que adquire as melhores terras do mundo. Fazendo seu sistema de subvenção, os americanos são cúmplices do livre comércio do agronegócio instalado no Brasil, na Argentina. Esta é a verdade. São defensores do livre comércio pra todo mundo, menos para eles.


Já a crítica do agronegócio brasileiro é natural. Quando você é proprietário de capitais ou parte do agronegócio brasileiro e está num território com a maior quantidade e a melhor qualidade de terras disponíveis, com os salários mais baixos do mundo, cada vez que alguém lá fora diz que não quer importar a produção brasileira, por qualquer razão que seja, vira seu inimigo. Mas isso não é novo. Os ingleses fizeram uma guerra com a China para poder exportar seus produtos industriais; a França fez guerras na África e na Indochina. Ou seja, a guerra econômica não começa com os latifundiários brasileiros. É uma história antiga. Aqueles que são mais fortes e mais competitivos estão sempre a favor do livre comércio.


CM – No seu livro o senhor afirma que isso gera pobreza. Como?


MM – Na agricultura o livre comércio traz problemas muito sérios. Porque não é só uma parte do que você consome que desaparece diante das mercadorias que chegam de fora mais baratas, mas, nos países mais pobres, cerca de 80% da população – os camponeses – é destruída com as importações agrícolas. Você transforma 80% da população em desempregados. É isso o que acontece com o livre comércio na África, por exemplo, onde a agricultura ainda é manual. E é manual porque não houve industrialização, já que o poder de compra da maioria da população foi sendo destruído. Então você fabrica favelados e imigrantes.


CM – Acabar com o livre comércio agrícola seria a solução?


MM – Veja, hoje há 3 bilhões de pessoas que vivem com menos de 3 dólares por dia; 2 bilhões que não ingerem a quantidade necessária de calorias por dia – e que desenvolvem uma série de doenças em função disso – e 9 milhões de pessoas que morrem de fome por ano, todos os anos. Lançaram então os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, que tinham como meta reduzir pela metade, entre 1990 e 2015, a proporção da população com renda inferior a 1 dólar por dia por dia e reduzir pela metade, no mesmo período, a proporção da população que passava fome.


Os neoliberais, depois do Plano de Ajuste Estrutural, sabiam da pobreza que haviam produzido. Estavam conscientes que o livre comércio podia produzir estragos. Então resolvem mobilizar o possível para limitar os problemas. Pensaram: vamos aumentar o orçamento para a agricultura nos países, aumentar a ajuda alimentar via programas da ONU, aumentar os investimentos públicos em desenvolvimento... Todo um conjunto de coisas que, se tivessem sido feitas, teriam permitido barrar o agravamento da pobreza. O problema é que nenhuma dessas medidas atacava a raiz do problema: o livro comércio agrícola, que destruía centenas de milhares de camponeses. A idéia era atenuar os efeitos da liberalização agrícola, mas ninguém disse isso explicitamente. Muito menos autorizaram os países a se protegerem. E proteger os camponeses da África, impedir que eles empobreçam e tenham fome é central.


CM – Mas as conseqüências não se restringem à África.


MM – É preciso dizer: não foi na África que isso começou. No Brasil vocês foram os primeiros a produzir a fome entre os camponeses, com os latifundiários, antes mesmo de exportar para o mundo todo. E os latifundiários continuam fazendo isso. Tomam as melhores terras, que são inacessíveis aos camponeses – e que às vezes, de tão pobres, as vendem – e também uma parte do mercado interno e externo. Fazem isso porque detêm capital. Graças ao que aconteceu entre 1945 e 1970, os camponeses do Norte e do Sul fizeram de tudo para serem incluídos na agricultura modernizada, mecanizada, competitiva. Mas o que os impede de conseguir isso? É que eles são muito pequenos. Em muitos lugares, como no Brasil, o capitalismo agrário está impedindo a agricultura familiar e camponesa, como faziam na época do velho capitalismo arcaico, que impedia os camponeses de ter acesso à terra para manter o monopólio. Agora que eles são capazes de comprar os equipamentos da revolução agrária, os grandes proprietários compram as melhores terras, as melhores máquinas e utilizam as técnicas mais eficazes. Muitas vezes utilizam o conhecimento produzido por milhares de camponeses em todo o mundo. E fazem isso para controlar a maior parte do mercado interno do Brasil e também o mercado internacional.


CM – No entanto, vigora na opinião pública brasileira a idéia de que o agronegócio, via exportações, é o responsável pelo superávit em nossa balança comercial e por parte significativa do sucesso da nossa economia. Por isso, vale tudo para ampliar sua produção, inclusive expandir a fronteira agrícola em regiões da Amazônia. Como o senhor vê essa política?


MM – Antes de mais nada, é preciso confirmar essa história de que a balança comercial brasileira é superavitária graças ao agronegócio. É preciso que a opinião pública saiba que o Brasil exporta o que o povo brasileiro não come e que deveria comer. Ainda há subnutridos no Brasil. É um escândalo. O agronegócio poderia exportar, ou o governo poderia deixar o agronegócio exportar, sob a condição de que não houvesse mais fome no Brasil. Todo mundo sabe, inclusive os ruralistas, que a única solução para acabar com o desemprego e garantir alimentação para todos é que aqueles que pleiteiam terra – ou seja, 4 ou 5 milhões de pessoas – tenham acesso muito rápido à terra. Do contrário, você pode fazer crescer todo o agronegócio que quiser e isso não mudará nada. Além disso, é preciso questionar: a balança comercial está a benefício de quem? Sem dúvida não é das pessoas pobres. É de uma classe média alta, para comprar coisas que são muito menos indispensáveis do que comida para os pobres.


Sem falar que, nos últimos 10 anos, houve um avanço sobre terras que antes eram dos camponeses – e isso inclui terras de minorias indígenas em reservas protegidas. Isso fabrica pobres e subnutridos. Expropriar a terra de camponeses é algo que deveria ser absolutamente proibido. É preciso um plano para reverter essa situação. Barrar o agronegócio é politicamente impossível e, economicamente, uma loucura. Sozinho não é possível reverter o poder do capitalismo agrário. Lula compreendeu bem isso. A solução então é impedir que ele adquira terras dos camponeses e indígenas. Além disso, há terra suficiente no Brasil para que sejam assentadas mais do que 5 mil pessoas por ano. Isso não é nada, não é reforma agrária. A soberania alimentar é um assunto político que deve suprimir a pobreza e permitir à máquina econômica alimentar o povo brasileiro. Mas hoje o agronegócio brasileiro é a máquina que opera contra a soberania alimentar, no Brasil e no resto do mundo.
Copiado do Carta Maior



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“A América Latina enfrenta estado de emergência ambiental”

Por Milagros Salazar


Especialista uruguaio alerta sobre a extração acelerada de recursos naturais na América Latina sem preocupação com os danos ambientais, sob o pretexto de que a riqueza gerada sustenta programas sociais.

5 de julho, LIMA (Tierramérica).- A economia latino-americana baseada na exploração de recursos não cria bem-estar e resulta insustentável diante da ameaça da mudança climática, segundo o uruguaio Eduardo Gudynas, principal pesquisador do Centro Latino-Americano de Ecologia Social. Gudynas, que esteve em Lima para um painel com a Rede Peruana por uma Globalização com Igualdade, é um dos colaboradores do novo informe Perspectivas do Meio Ambiente da América Latina e do Caribe (GEO-ALC), elaborado pelo Programa das Nações Unidas (Pnuma), que será apresentado oficialmente este ano.
TERRAMÉRICA: O senhor afirma que na América Latina há um desequilíbrio entre a exploração dos recursos e a proteção da natureza. Qual a gravidade do problema?
EG: A América Latina enfrenta um estado de emergência ambiental, porque o ritmo para estabelecer novas áreas protegidas e fixar os controles ambientais, por exemplo no setor industrial, é muito mais lento do que o aumento dos impactos negativos da extração de recursos.
TERRAMÉRICA: Com a mudança climática, o risco é maior?
EG: Muito maior, não apenas pela vulnerabilidade dos países em desenvolvimento, mas porque não é abordada a responsabilidade da América Latina. Sempre fica em segundo plano que a principal fonte de emissões de gases-estufa na região é o desmatamento, seguido da modificação do uso do solo e da agricultura. Assim, discutir sobre mudança climática é falar de desenvolvimento rural, políticas agropecuárias e posse da terra. Entretanto, interesses econômicos e políticos impedem que assim seja feito. É mais simples falar de troca de lâmpadas do que destes grandes temas. Nos círculos internacionais, o foco é mantido na responsabilidade histórica das emissões dos países do Norte e deles é exigida compensação, e não acontecem ações na região para enfrentar a mudança climática e preservar o patrimônio ecológico.
TERRAMÉRICA: Como chegamos a este grau?
EG: Historicamente, o caminho do desenvolvimento para a América do Sul sempre foi a apropriação e a extração de recursos naturais. A atenção estava em como tornar isso mais eficiente e foi desperdiçada a possibilidade de diversificar as economias nos anos de preços altos dos produtos básicos. Dessa forma, foi acentuada a “primarização” da economia à custa do dano ambiental, inclusive em países com uma indústria relevante como o Brasil.
TERRAMÉRICA: Quais os “pacientes” da região em pior estado?
EG: O Brasil está em situação crítica por sua apropriação quase absoluta dos recursos e pelos impactos. Em seguida, as nações andinas, como o Peru (com grandes projetos de mineração) e o Equador (pela exploração de petróleo). O Brasil já é um grande país minerador, principalmente de ferro e alumínio, e tem uma política para aumentar esta produção com tributação baixa, a fim de continuar atraindo investimento estrangeiro. O mais preocupante é que, com essa estratégia, é flexibilizada a lei ambiental. Também pela busca por “energia barata” com complexos hidrelétricos na Amazônia.
TERRAMÉRICA: O extrativismo é ruim em si mesmo ou o problema é que não se faz bem as contas, deixando de incluir o custo dos danos ambientais e sociais?
EG: Não é ruim, mas existe um superconsumo global de matérias-primas. É preciso contabilizar o impacto econômico do dano social e ambiental para avaliar os custos do processo produtivo, levando em conta sua contribuição para a mudança climática. Porém, essas avaliações não são feitas, pois, do contrário, estes projetos não seriam aprovados. Os impactos nas áreas de onde são extraídos os recursos passam despercebidos e isso explica o motivo de ocorrerem conflitos. Provoca-se o paradoxo do bem-estar macroeconômico acima do dano local.
TERRAMÉRICA: Isto ocorre tanto em países governados por partidos de centro ou de direita quanto onde a esquerda é maioria?
EG: Sim. Embora haja diferenças substanciais sobre o papel do Estado no setor extrativista. Em países governados pela esquerda, como Brasil e Bolívia, parte da riqueza gerada é utilizada por esse setor em programas sociais, como legitimação política para continuar explorando os recursos. A esta altura, o extrativismo, além de ser um problema político, é cultural. Está profundamente arraigada a ideia de que a mineração e o petróleo são fontes de riqueza e que devem ser aproveitadas o quanto antes. Os governos de esquerda utilizam essa ideia para dizer que eles são mais eficientes no uso de recursos da Terra. Sendo um problema cultural, é reproduzido em diferentes correntes políticas.
TERRAMÉRICA: Então, como podem ser geradas outras alternativas para um desenvolvimento sustentável?
EG: Esse é o problema. Como a ideia do extrativismo está tão enraizada, outras alternativas são vistas com desconfiança ou rejeição. E esta situação é grave porque setores como o do petróleo vão desaparecer. A sobrevivência está em um caminho “pós-extrativista”.
TERRAMÉRICA: Qual o papel da integração nesse caminho?
EG: Um papel fundamental. Para sair desta estratégia, é preciso uma coordenação econômica e social com os países vizinhos, inclusive se essas alternativas não servirem para anular toda a indústria de mineração ou petroleira, mas para reformulá-la.
TERRAMÉRICA: Como negociar a integração com o Brasil sem sair perdendo? O acordo energético desse país com o Peru tem vícios de desigualdade.
EG: Um objetivo primordial é reduzir as assimetrias entre as nações. Que o menor se aproxime do nível de desenvolvimento relativo do maior. O Peru não deveria apenas vender energia elétrica ao Brasil e ficar com os danos ambientais e sociais, mas também comprar seus automóveis. É preciso buscar outras formas para que o vizinho progrida.
* O autor é correspondente da IPS.



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segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Confissão de um terrorista

Eles ocuparam a minha pátria,
expulsaram o meu povo,
anularam a minha identidade,
e chamaram-me terrorista.


Confiscaram a minha propriedade,
arrancaram as minha árvores de fruta,
demoliram a minha casa,
e chamaram-me terrorista.


Legislaram leis fascistas,
praticaram o odiado apartheid,
destruindo, dividindo, humilhando,
e chamaram-me terrorista.

Assassinaram as minhas alegrias,
sequestraram as minhas esperanças,
algemaram os meus sonhos,
quando recusei todas as atrocidades,
eles... mataram um terrorista!


Mahmoud Darwish
Escritor e poeta palestiniano (1942 – 2008) 

ASSISTA AQUE OS VÍDEOS "O MURO"



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sábado, 27 de novembro de 2010

Las reglas del terrorismo mediático para desinformar.





http://www.dailymotion.com/video/x7zvef_las-reglas-del-terrorismo-meditico_news 


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Uma-historia-na-palestina

Sanguessugado do SomosTodosPalestinos 

Rafiqa Salam
Palestina, novembro 2010
Depois de uns dias na Palestina tentando entender por que o mundo disputa esse pedaço de terra, que tem apenas 27 mil km2 entre as lindas águas do mar Mediterrâneo e o Rio Jordão, comecei a conversar com um palestino. Fiquei intrigada com a certeza que aquele homem carregava em suas palavras, cercadas de emoção. Afirmava: “Oitenta e uma vezes, você sabia? Oitenta e uma vezes a Palestina foi invadida! E nós, palestinos, estamos aqui, não saímos e não desistimos, com tudo o que passamos e, agora, também vamos ficar e resistir, a Palestina é dos palestinos, sempre.”
Não pensei em relatar a força do exército israelense, o 4º exército mais poderoso do mundo, pois eu estava na frente de um homem que, aos 17 anos, entrou para a Organização pela Libertação da Palestina – OLP! Serviu como soldado, treinou como guerrilheiro, realizou trabalho civil e, forçado pela invasão sionista, viveu, ou melhor, sobreviveu como refugiado em países vizinhos, como o Kuwait, Líbia, Líbano, Jordânia...
Em 1995, finalmente, conseguiu voltar para a sua Palestina, mas não para a aldeia onde nasceu, essa ficou na lembrança, não uma lembrança tão doce, conta ele: “Com 11 anos, em 1967, meu irmão e eu saímos a pé, caminhamos, não só nós, minha família, muitos da aldeia, caminhamos muitos dias, até chegarmos na Jordânia, ficamos em campos de refugiados, por muito tempo pensava em minha aldeia, Akraba...”
Foi em Jericho a sua morada, por dez anos, num campo de refugiados, onde as casas são de material compensado e não é possível construir, nem aumentar, têm cerca de 50m2. Atualmente, um filho permanece nessa casa e tem mais 32 famílias nesse campo esperando um lugar para serem reassentadas, uma espera de mais de 15 anos... Não tive coragem de perguntar se seria logo ou poderia demorar mais... Hoje, ele, sua esposa e seu outro filho moram de aluguel em Betunnya, uma situação difícil, por causa do custo de vida, mas não tão alto quanto foi quase perder a vida ao ter que fugir do Kuwait depois da Guerra do Golfo em 1991, em que uma coalizão de 33 países, liderados pelos Estados Unidos, decidiu “proteger” o Kuwait do Iraque... Essa história nós já conhecemos... Conta ele: “Eu e mais quatro amigos estávamos dentro de um carro quando fomos atacados por bombas, fugimos pouco antes de acertarem o carro e ele explodiu! Não sobrou nada! Caminhamos 48 horas e entramos no Iraque, mas a nossa saga estava recém começando, fomos presos pelo exército britânico, que nos entregou para o exército da Arábia Saudita, e depois o exército americano tentou nos tirar da prisão passando por “Cruz Vermelha”. Mas, na verdade, queriam nos matar, fizemos greve de fome e, por fim, depois de 60 dias presos, um grupo de franceses da Cruz Vermelha reconheceu nossos passaportes jordanianos e nos levou até próximo à fronteira da Jordânia, nos deixou no deserto e tivemos que caminhar em direção àquele país. Conseguimos carona e entramos na Jordânia, pois desde o início da guerra nós saímos para ir ao encontro de nossas famílias que lá estavam; nossos passaportes eram jordanianos, mas eles achavam que éramos guerrilheiros da OLP...”
Percebendo a dor através de suas palavras, resgatei-o para o presente, perguntei sobre a Palestina hoje, como construir o estado palestino, e suas palavras estavam envoltas em um ânimo provocador, cobrando do mundo a obrigação de defender a Palestina. Através do apoio global ao processo de negociação com o Estado de Israel, perguntei, e sua resposta foi enfática: “As negociações só servem para mostrar ao mundo que Israel nada vai ceder, pois se eles quisessem acordo e respeitassem o direito palestino, já teriam reconhecido o estado palestino.” Fiquei muda, e ele continuou: “Uma árvore faz sombra para qualquer pessoa, ela deita embaixo de um pé de oliveira e tem sombra, essa é a história do povo palestino! Esse lugar é abençoado, três religiões nasceram aqui, mas agora as coisas são diferentes, aqui tem escola que um palestino não pode estudar, apenas judeu, tem estradas que carros árabes não podem transitar, só quem tem placa amarela, eu tenho uma carteira de identidade verde que me limita de circular apenas em algumas cidades e não posso entrar na área de 1948, e minha carteira de identidade tem um número que me diferencia, eles criaram uma série para aqueles que foram membros da OLP. Então, se quiserem nos prender, passam a série num checkpoint e, pelo número, somos identificados!” Depois desse relato, como perguntar se ele acredita na construção do estado palestino, na Palestina livre? Meio sem graça, acabei perguntando, então ele respondeu, com as palavras que iniciou essa conversa: “Oitenta e uma vezes, você sabia? Oitenta e uma vezes a Palestina foi invadida! E nós, palestinos, estamos aqui, não saímos e não desistimos, com tudo o que passamos. E agora, também vamos ficar e resistir, a Palestina é dos palestinos, sempre. Você não liberta uma cidade de um invasor apenas com um buquê de flores! Através de negociações e de outras formas e, principalmente, com o fim do apoio dos países europeus e dos Estados Unidos para a construção de assentamentos judaicos, é possível a construção do estado palestino”. Agradeci, entusiasmada com a persistência palestina! 




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quarta-feira, 24 de novembro de 2010

“Nós nunca tivemos democracia”

Sanguessugado do Fazendo Media


Professor da Faculdade de Direito da USP, o jurista Fabio Konder Comparato é conhecido por sua longa e firme militância na luta pelos direitos humanos e democráticos no Brasil. Tem contribuído com inúmeras entidades e movimentos sociais na formulação de propostas para a transformação do povo brasileiro no sujeito de sua própria soberania. Nesta entrevista exclusiva para Caros Amigos, ele analisa a questão do poder no Brasil, as várias formas dissimuladas de se adiar a democracia, os instrumentos para aperfeiçoar a participação popular nos destinos do país e outros aspectos da maior relevância para a compreensão da nossa realidade. Os argumentos lúcidos e pedagógicos do professor Fabio Konder Comparato são imperdíveis.

Tatiana Merlino – O senhor nasceu em Santos?
Fabio Konder Comparato – Não me perguntem se eu sou santista… (risos)
Hamilton Octavio de Souza – É santista?
Eu não torço mais para nenhum clube. Futebol é o ópio do povo (risos).
Tatiana Merlino – Mas, o senhor nasceu em Santos, em que ano?
Em 1936, de modo que daqui alguns dias eu farei, com a graça de Deus, 74 anos. Fiquei quatro anos morando no Guarujá, meu pai tinha um hotel lá. Depois, eu vim para São Paulo com a família. Tive uma formação de escola primária excelente. Até hoje tenho uma grande saudade das minhas professoras primárias, que eram professoras daquele tempo antigo, formadas no Elvira Brandão, muito sérias. Depois, eu cursei o Colégio São Luís; de modo que eu fui formado e deformado por jesuítas. Entrei na Faculdade de Direito em 1955, e terminei o curso em 1959. Depois, até 1963 eu fiquei na França, fazendo meu doutorado em Direito. Voltei para o Brasil e fui trabalhar em Brasília, com Evandro Lins e Silva, que era Ministro do Supremo Tribunal Federal. Lá trabalhei como secretário jurídico dele. Saí de Brasília com uma hepatite atroz, provocada pelo golpe de Estado de 1964. Em seguida advoguei, tornei-me livre-docente da Faculdade de Direito da USP e depois professor titular. Comecei lecionando Direito Comercial, mas depois me converti e passei a lecionar Direitos Humanos.
Tatiana Merlino – Na faculdade o senhor teve algum professor que o tenha influenciado?
O professor que mais me impressionou foi exatamente um professor de Direito Comercial. Acho que foi por ele que eu fiz isso…
Hamilton de Souza – Tinha a ver com Direitos Humanos?
Não. Mas, eu não lamento o longo período em que lecionei Direito Comercial, porque me permitiu entrar nos arcanos do capitalismo, desmontar toda a estrutura capitalista que enquadra a nossa vida social.
Tatiana Merlino – Como se deu sua conversão para os Direitos Humanos, por qual influência?
Foi, sem dúvida, por causa da Ditadura Militar. E sobretudo, porque fui convidado por Dom Paulo Evaristo Arns para fazer parte da Comissão de Justiça e Paz, da Arquidiocese de São Paulo. E lá foi, realmente, um aprendizado. Dom Paulo foi um dos baluartes da luta pela defesa da dignidade humana. Lembro, apenas para dar uma ilustração, de como ele era, na época, procurado por aqueles que sofriam com os sofrimentos e a morte de seus familiares. O pai do Bernardo Kucinski, por exemplo, nunca se recuperou da morte da filha, Ana Rosa Kucinski. Até hoje não se sabe do paradeiro do cadáver dela. Ele ia procurar Dom Paulo todos os dias. Dom Paulo o recebia nem que fosse por 5 minutos. O objetivo que Dom Paulo deu para a Comissão de Justiça e Paz foi justamente o de divulgar todos os crimes do regime militar que nós soubéssemos. Então, vinham dezenas de pessoas, dizendo: “Meu filho desapareceu, estava na rua e foi preso. Nós anotávamos tudo isso, entregávamos para Dom Paulo, que ia regularmente ao quartel-general II Exército e entregava a lista dos desaparecidos ao General Comandante. Para que eles soubessem que nós sabíamos, e não inventassem mentiras, como fizeram quando mataram sob tortura o Luiz Eduardo Merlino, por exemplo: “Ele tentou fugir quando era conduzido numa viatura militar, foi atropelado e morreu.” A ditadura militar temia, sobretudo, as manifestações no exterior. É por isso que, hoje, nós temos que denunciar sistematicamente, no exterior, o acobertamento dos assassinos e torturadores do regime militar pelo Poder Judiciário. O Estado brasileiro tem receio disso. Quando meus filhos eram bebês, e viajávamos, minha mulher e eu para a França (íamos todos os anos, porque minha mulher é francesa), eu levava documentos nos cueiros deles. Eram relatos de atrocidades e listas de pessoas presas, mortas, desaparecidas. E, naquela época, nós entregávamos isso a um padre francês que morou cinco anos aqui no Brasil. E ele divulgava isso na Igreja Católica. Mas, a Igreja Católica, no Brasil, salvo algumas figuras exemplares, como Dom Paulo e Dom Helder Câmara, continuava firmemente conservadora.
Hamilton Octavio de Souza – Nesse período da Comissão de Justiça e Paz, o senhor já tinha participação em eventos, atos, com relação à Anistia, à luta pela redemocratização do país? Como o senhor atuava, o senhor tinha militância nesse tempo?
Eu não tinha uma participação muito ativa fora da Comissão de Justiça e Paz. Mas participava de alguns eventos públicos. Por exemplo, eu estive na Catedral de São Paulo, quando da celebração ecumênica da morte de Alexandre Vannuchi Leme. Eu lembro que, ao sair da Catedral, havia todo um aparato da polícia militar, com câmeras fotográficas, e ostensivamente abri o guarda-chuva e avancei em direção a eles para que eles não me fotografassem. Mas eles estavam fartos de saber da minha posição política. Eu não fui molestado, porque nunca me aproximei de nenhum partido ou movimento da esquerda. Mas, eles me acompanhavam. Numa certa época, eu comecei a trabalhar em banco, cheguei a diretor adjunto de um banco.
Tatiana Merlino – Simultâneo à Comissão Justiça e Paz?
Exatamente. E uma vez o diretor presidente do banco me chamou e indagou: “O que o senhor acha do terrorismo?” Saquei logo de onde vinha a pergunta. Respondi com outra pergunta: “Mas, qual deles: o oficial ou o outro?” Aí ele riu um pouco….
Tatiana Merlino – Como o senhor avalia o período da redemocratização e a justiça de transição, ou a inexistência de justiça de transição que houve no Brasil?
Esse é apenas um pormenor da manutenção íntegra e até hoje inabalada da oligarquia. Se há uma constante na História do Brasil, é o regime oligárquico. É sempre uma minoria de ricos e poderosos que comanda, mas com uma diferença grande em relação a outros países. Nós, aqui, sempre nos apresentamos como não oligarcas. A nossa política é sempre de duas faces: uma face externa, civilizada, respeitadora dos direitos, e uma face interna, cruel, sem eira nem beira. A meu ver, isto é uma conseqüência do regime escravista que marcou profundamente a nossa mentalidade coletiva. O senhor de engenho, o senhor de escravos, por exemplo, quando vinha à cidade, estava sempre elegantemente trajado, era afável, sorridente e polido com todo mundo. Bastava, no entanto, voltar ao seu domicílio rural, para que ele logo revelasse a sua natureza grosseira e egoísta. Nós mantivemos essa duplicidade de caráter em toda a nossa vida política.
Quando foi feita a Independência, estava em pleno vigor, no Ocidente, a ideologia liberal, e, devido ao nosso complexo colonial, nós não podíamos deixar de ser liberais. Então, iniciou-se o trabalho de elaboração da Constituição, logo em 1823. E os constituintes resolveram instituir no Brasil um regime liberal, com a instituição de freios contra o abuso de poder. Evidentemente, isso foi contado ao Imperador, que imediatamente mandou fechar a Assembléia Constituinte. Mas, qual foi a declaração dele? “Darei ao povo brasileiro uma Constituição duplicadamente mais liberal.” Eles não perceberam a aberrante contradição: uma Constituição outorgada pelo poder que era duplicadamente mais liberal do que aquela que estava sendo feita pelos representantes do povo. Bom, essa Constituição não continha a menor alusão à escravidão e dispunha: “São abolidas as penas cruéis, a tortura, o ferro quente.” Porque todo escravo tinha o corpo marcado por ferro em brasa. Essa marca era dada desde o porto de embarque na África. Pois bem, apesar dessa proibição da Constituição de 1824, durante todo o Império nós continuamos a marcar com ferro em brasa os escravos. A Constituição proibia os açoites, mas seis anos depois foi promulgado o Código Criminal do Império que estabeleceu a pena de açoites no máximo de 50 por dia. E é sabido que essa pena só se aplicava aos escravos e, geralmente, eles recebiam 200 açoites por dia. Houve vários casos de escravos que morreram em razão das chibatadas recebidas. E, aliás, a pena de açoite só foi eliminada no Brasil em 1886, ou seja, às vésperas da abolição da escravatura.
Em 1870, para continuar essa duplicidade típica da nossa política, como vocês sabem, foi lançado o Manifesto Republicano, aqui no estado de São Paulo. Esse manifesto usa da palavra democracia e expressões cognatas – como liberdades democráticas, princípios democráticos – nada menos do que 28 vezes. Não diz uma palavra sobre a escravidão. E, aliás, o partido republicano votou contra a lei do ventre livre no ano seguinte ao manifesto, em 1871, e votou até contra a Lei Áurea. Em 1878, votou a favor da abolição do voto dos analfabetos. A Proclamação da República, todo mundo sabe, foi um “lamentável mal entendido”, para usar a expressão famosa de Sérgio Buarque de Hollanda. E, efetivamente, o Marechal Deodoro não queria a abolição da monarquia, queria derrubar o ministério do Visconde de Ouro Preto. Mas aí, no embalo, os seus amigos positivistas o convenceram que era melhor derrubar a monarquia. Pois bem, até 1930, nós tivemos a República Velha, que, como dizia meu avô, foi substituída pela República Velhaca. E, por que foi feita a Revolução de 1930? Todo mundo sabe. As fraudes eleitorais.
Hamilton Octavio de Souza – São Paulo e Minas que comandavam as fraudes.
Sim, pois é. Foi feita a revolução para isso. Sete anos depois o regime desembocou num golpe de Estado, que suprimiu as eleições. A autoproclamada “Revolução” de 1964 foi feita em nome de quê? Leiam os documentos: a ordem democrática. Hoje, é preciso dizer que não é só no Brasil, mas no mundo todo que a palavra democracia tem um sentido contraditório com o conceito original de democracia. O grande partido da direita na Suécia, que agora chegou ao parlamento sueco, pela primeira vez, um partido xenófobo e racista, chama-se Suécia Democrática. E, num certo país da América Latina, como todo mundo sabe, o partido mais à direita do espectro político chama-se como mesmo?
Hamilton Octavio de Souza – Se chama Democratas.
Então, esta é a nossa realidade. É dentro desse quadro que se pode e se deve analisar o processo eleitoral. Ou seja, nunca dar o poder ao povo, dar-lhe apenas uma aparência de poder. E, se possível, uma aparência festiva, alegre. Essa disputa eleitoral, que nós estamos assistindo, ela só interessa, rigorosamente, ao meio político. O povo não está, absolutamente, acompanhando a campanha eleitoral. Vai votar, maciçamente, na candidata de Lula, mas para ele não tem muito interesse essa campanha eleitoral. Então, as eleições, o que são? São um teatro. Oficialmente, os eleitos representam o povo. É o que está na Constituição. Na realidade, eles representam perante o povo, são atores teatrais. Mas, com um detalhe: eles não se interessam pelas vaias ou pelos aplausos do povo. Eles ficam de olhos postos nos bastidores, onde estão os donos do poder. É isso que é importante.
De modo que, para nós, hoje, é preciso deixar de lado o superficial e encarar o essencial. O que é o essencial? Como está composta, hoje, a oligarquia brasileira. E como eliminá-la. Como está composta a oligarquia brasileira? Obviamente, há um elemento que permanece o mesmo desde 1500: os homens da riqueza. Só que hoje eles são variados: os grandes proprietários rurais, os banqueiros, os empresários comerciais, os grandes comerciantes. Mas o elemento politicamente mais importante da oligarquia atual é o dos donos dos grandes veículos de comunicação de massa: a imprensa, o rádio e a televisão. O povo está excluído desse espaço de comunicação, que é fundamental em uma sociedade de massas. Ora, esse espaço é público, isto é, pertence ao povo. Ele foi apropriado por grandes empresários, que fizeram da sua exploração um formidável instrumento de poder, político e econômico.
Hoje, os oligarcas brasileiros já montaram em esquema que torna as eleições um simples teatro político. É claro que eles não podem, em todas as ocasiões, fazer um presidente da República, por exemplo. Mas eles podem – e já o fizeram – esvaziar o processo eleitoral, tirando do povo todo o poder decisório em última instância e transferindo-o aos eleitos pelo povo; eleitos esses cuja personalidade, na grande maioria dos casos, é inteiramente fabricada pelos marqueteiros através dos meios de comunicação de massa.
O único risco para a oligarquia brasileira (e latino-americana, de modo geral) é a presidência da República, porque a tradição latino-americana é de hegemonia do chefe do Estado em relação aos demais Poderes do Estado. Se o presidente decidir desencadear um processo de transformação das estruturas sócio-econômicas do país, por exemplo, ele porá em perigo a continuidade do poder oligárquico.
Ora, Luiz Inácio Lula da Silva já demonstrou que não encarna esse personagem perigoso para a oligarquia. Ele é o maior talento populista da história política do Brasil, muito superior a Getúlio Vargas. Mas um populista francamente conservador, ao contrário de Getúlio ou de Hugo Chávez, por exemplo.
Mas o que significa ser um político populista? Populista é um político que tem a adesão muitas vezes fanática do povo, que tem um extraordinário carisma popular, mas que mantém o povo perpetuamente longe do poder. O populista conservador pode até, se isso agradar ao povo, fazer críticas aos oligarcas, mas mantém com eles um acordo tácito de permanência do velho esquema de poder.
Ora, isto representa a manutenção do povo brasileiro na condição de menor impúbere, ou seja, de pessoa absolutamente incapaz de tomar decisões válidas. O populista é uma espécie de pai ou tutor, que trata os filhos com o maior carinho, enche-os de presentes, brinquedos, etc, mas nunca lhes dá o essencial: a verdadeira educação para que eles possam, no futuro, tomar sozinhos as suas decisões. É um falso pai. O verdadeiro pai existe para desaparecer. Se o pai não desaparecer, enquanto pai, alguma coisa falhou, uma coisa essencial, que é a educação dos filhos para a maturidade. O fundamental do líder populista é que ele mantém o povo muito satisfeito, mas num estado de perpétua menoridade.
Tatiana Merlino – Por que o senhor acha que ele supera o Getúlio Vargas?
Porque Getúlio Vargas tinha, teve, até o fim, uma oposição ferrenha, raivosa, não de partidos políticos, eles não existiam, mas dos grandes fazendeiros de São Paulo. Aliás, fizeram até uma revolução em 1932. Além disso, ele era autoritário, por convicção positivista: a chamada “ditadura republicana”. Lula não, ao contrário do que se afirmou em um desatinado manifesto recente. Ele tem horror à coação, à violência. Ou seja, ele é o avesso de Getúlio. Basta ler Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, para se perceber que o regime militar de 64 não inventou nada. Foi uma reedição desse aspecto tenebroso de Getúlio.
Hamilton Octavio de Souza – Esse controle que o Lula exerce, como isso tem sido possível num país carente, com demandas seculares, desigualdade?
A mentalidade do Lula não é de raciocínio frio, ela é quase que toda dominada pela sensibilidade e a intuição. É por isso que ele tem lances geniais no desmonte da oposição. É um talento por assim dizer inato. E é por isso que todo esse pessoal do PT foi atrás dele, porque senão eles não subiriam, jamais. Não preciso dar nomes, mas nenhum deles tem o milésimo do talento político do Lula. Eles foram atrás e chegaram lá. Mas são todos infantis em política. Ao chegarem ao poder, procederam como a criança que nunca comeu mel: foram comer e se lambuzaram todos.
Mas, enfim, esse é o homem. Isso não significa que ele seja totalmente negativo. As boas coisas do governo Lula são mantidas por influência dos seus bons companheiros. E ele sabe ouvi-los, graças a Deus. Em matéria de direitos humanos, nós temos que reconhecer o trabalho admirável do Paulo de Tarso Vannuchi. Em matéria de educação, eu entendo que o Fernando Haddad fez um bom trabalho. Mas isso não compensa o lado extremamente negativo dos maus elementos que pressionam Lula. Sinto, por exemplo, que cede a tudo aquilo que o Nelson Jobim pede. Será preciso relembrar que, na véspera do julgamento da ação movida pelo Conselho Federal da OAB no Supremo Tribunal Federal sobre a abrangência da Lei de Anistia, Lula convidou todos os ministros do Supremo para jantar no Palácio do Planalto? Não é difícil imaginar o assunto que foi objeto de debate durante essa simpática refeição. Aliás, um ministro do Supremo Tribunal Federal me disse: “Comparato, você não imagina as pressões que nós recebemos…”
Tatiana Merlino – Do presidente?
Obviamente que do governo. Digamos que o Lula não tenha feito pessoalmente isso. Mas, ele também não pode ignorar que isto está sendo feito diante dele. Por acaso ele ignorava o esquema do mensalão?
Hamilton Octavio de Souza – A pressão é no sentido de se …
Dar anistia aos torturadores, assassinos e estupradores do regime militar, porque todos eles se declaravam defensores da ordem democrática. Logo após o golpe, em 64, eles se declaravam também defensores da civilização cristã.
Nesse ponto eu sigo o grande método da antiga Ação Católica: “ver, julgar e agir”. Que é, aliás, o método que nós procuramos seguir com os nossos alunos na Escola de Governo, aqui em São Paulo. Justamente , eu me esqueci de dizer que há 20 anos, juntamente com os amigos Maria Victoria Benevides e Claudineu de Melo, e também o saudoso professor Goffredo da Silva Telles Jr., nós criamos uma escola de formação de líderes políticos. No começo, procurávamos formar governantes. Hoje, nós tentamos formar educadores políticos. Pois bem, esse “ver, julgar e agir”, nós temos que utilizar para a situação política atual. Nós só podemos compreender a situação política atual, se tivermos a capacidade de enxergar por dentro as ações políticas, tanto do PT quanto do PSDB e dos demais partidos. E vamos perceber que há, como eu disse, um elemento que permanece incólume na vida política brasileira: é a oligarquia. Nós sempre vivemos sob regime oligárquico, pois o poder soberano sempre pertenceu à minoria dos ricos.
Tatiana Merlino – O senhor disse que as eleições não mudam nada a configuração da oligarquia. O senhor está se referindo às eleições de agora, ou de um modo geral?
De modo geral.
Tatiana Merlino – Como é possível mudar essa configuração?
Nós temos que saber como mudar e quais são os pontos fracos da oligarquia. Porque ela não existe no vácuo. Se ela se mantém, é porque o povo aceita esse estado de coisas. E por que o povo aceita? Em grande parte, porque ele acha que tem participação política através das eleições. Foi por isso, aliás, que o regime militar não as eliminou. Era preciso que o povo se sentisse participante e não mero espectador do teatro político.
Pois bem. Como é que nós podemos mudar isso? Nós temos que seguir dois caminhos convergentes. É preciso, ao mesmo tempo, transformar a mentalidade coletiva e mudar as instituições políticas.
O que significa mudar a mentalidade política? Ainda aí é preciso ver, julgar e agir. Nós temos uma herança de séculos, nas camadas mais pobres do povo, de servilismo e de dificuldade de ação comunitária. Nós sempre somos dispersos, disseminados, não sabemos agir por nós mesmo, e atuar em conjunto. Nós sempre aceitamos uma situação de dependência em relação aos que detêm o poder, esperando que esse senhor todo-poderoso seja benévolo e compreenda as dificuldades de povo. Durante séculos, mais de 80% da população brasileira vivendo no campo, este senhor foi o grande proprietário rural, senhor de escravos. Agora, com a urbanização, 80% da população brasileira é urbana, é uma inversão completa. Com a criação da sociedade de massas, foi preciso que esse poder se transformasse. Ele não é mais local e pessoal. É um poder geral e impessoal, de certa maneira invisível. Os “donos do poder” nunca entram em diálogo pessoal com o povo. Eles se servem do instrumental fantástico dos meios de comunicação de massa, para distração geral; para que o povo não pense em si mesmo e não enxergue o buraco em que está metido. Daí a intoxicação futebolística. Daí o fato de que a novela das oito na Globo ser protegida como um programa sagrado. Mas, concomitantemente, é preciso que exista uma liderança pessoal, e aí vem o populismo. Eu fico pensando que o advento do Lula em nossa vida política atual representou para os nossos oligarcas algo como ganhar o maior prêmio da megasena.
Cecília Luedemann – Depois do processo de redemocratização, com a entrada do PT no jogo político, e a transformação do Lula em alguém que poderia ser um Getúlio Vargas mais moderno, poderia ser um populista, foi feito um pacto capital e trabalho? É isso que nós estamos vendo hoje?
Hoje não existe mais organização do trabalho, o poder dos sindicatos é cada vez menor. Por outro lado, como disse, persiste nas camadas mais pobres do povo a mentalidade servil e a ausência de espírito comunitário.
Eu contesto essa palavra: redemocratização. Nós nunca tivemos democracia até hoje, porque democracia significa soberania popular, e soberania popular significa que o povo tem o poder supremo de designar os governantes, de fiscalizar a sua atuação, de responsabilizá-los, de demiti-los e de fixar as grandes diretrizes da ação estatal para o futuro.
É preciso ter instituições políticas para isso. Quais são? São várias. Qual é a lei maior? É a Constituição. A quem compete aprovar uma Constituição? Obviamente, a quem tem o poder supremo. Ora, o povo brasileiro nunca aprovou Constituição alguma. A Constituição atualmente em vigor já foi emendada, ou melhor, remendada até hoje 70 vezes. Em nenhuma dessas ocasiões o povo brasileiro foi chamado para dizer se concordava ou não com a emenda a ser introduzida na Constituição. É preciso começar, portanto, por dar ao povo o direito elementar de manifestar a sua vontade, através de referendos e plebiscitos. Ora, o que fizeram os nossos oligarcas? Puseram na Constituição, para americano ver, que referendos e plebiscitos são manifestações da soberania popular. Mas acrescentaram, em um dispositivo um tanto escondido que o Congresso Nacional tem competência exclusiva para “autorizar referendo e convocar plebiscito” (Constituição Federal, art. 49, inciso XV).
Como vocês veem, a nossa inventividade jurídica é extraordinária. Os deputados e senadores, eleitos pelo povo, são ditos seus representantes ou mandatários. Em lugar algum do mundo, em momento algum da História, o mandante deve obedecer ao mandatário. Bem ao contrário, este tem o dever de cumprir fielmente as instruções recebidas do mandante. Aqui, instituímos exatamente o contrário. O povo, dito soberano, só tem o direito de manifestar a sua vontade, quando autorizado pelos mandatários que escolheu…
Outro instrumento de verdadeira democracia, isto é, de soberania popular autêntica e não retórica, como a que sempre existiu no Brasil, é o recall, isto é, o referendo revocatório de mandatos eletivos. O povo que elege tem o direito de revogar o mandato do eleito, quando bem entender. Por exemplo, alguém se elege Prefeito e, antes de tomar posse, vai a cartório e lavra uma escritura pública pela qual se compromete a não renunciar ao cargo no curso do mandato. Dois anos depois, porém, renuncia ao cargo de Prefeito para se candidatar ao governo do Estado. Pois bem, se existisse entre nós o recall, tal como ocorre em nada menos do que 18 Estados da federação norte-americana, o povo daquele Município teria o direito de destituir o Prefeito que fez aquela falsa promessa.
Hamilton Octavio de Souza – Isso deveria entrar na reforma política que está sendo ensaiada há anos?
Pois, então, essa reforma política não se faz enquanto não se muda o centro de poder. Eu trabalhei seis anos no Conselho Federal da OAB. Isso que eu estou dizendo a vocês: desbloqueio de Plebiscito e de Referendos, facilitação de iniciativa popular, o recall, ou seja, o povo elege, o povo também institui… “Como é, senhor fulano, o senhor quando foi, se candidatou a prefeito e o senhor foi ao tabelião e fez uma declaração de que cumpriria o mandato até o último dia, depois o senhor, no meio do seu mandato de prefeito, o senhor se candidatou a governador do Estado. Pois bem, o senhor não merece a nossa confiança, vamos fazer um abaixo assinado para a realização de nova Consulta Popular. O senhor fulano de tal deve continuar exercendo cargo de prefeito? Não”. Ele é destituído. Isso se chama recall e existe em 18 estados da Federação Americana. Portanto, não se trata de uma manobra, de um instrumento revolucionário. E, aliás, Cuba não tem recall, como todo mundo sabe.
Hamilton Octavio de Souza – O senhor falou do povo ver reconhecidos os seus direitos. Como está esta situação dos direitos no Brasil? O que o senhor acha que funciona e o que não funciona?
Houve, sem dúvida, uma mudança nos últimos 30 anos, a partir do fim do regime militar. Mas, esse progresso é sempre lento, porque se faz sem organização. A função verdadeira dos partidos políticos deveria ser a formação do povo para que ele, povo, exercesse a soberania. É preciso, portanto, começar a criar outra espécie de partido político, que não persiga o poder para si, mas ajude o povo a chegar ao poder.
Nós temos no Brasil duas constituições. Pela Constituição oficial, “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente” (art. 1º, parágrafo único). Mas a Constituição real, a efetivamente aplicada, tem uma formulação diferente: “Todo poder emana dos grupos oligárquicos, que o exercem sempre em nome do povo, por meio dos representantes, por este eleitos”. Segundo ambas as fórmulas, o que conta é a impressão geral de que quem manda é o povo.
Hamilton Octavio de Souza – O senhor fala em formar novos partidos?
Exatamente. Hoje, no mundo inteiro, os partidos perderam a confiança popular. Li recentemente os resultados de uma pesquisa de opinião pública sobre confiança do povo em partidos políticos. Segundo essa pesquisa, no Brasil apenas 11% dos cidadãos confiam nos partidos. No mundo inteiro, ou seja, em 19 países onde foi feita a pesquisa, os partidos tinham a confiança de não mais do que 14% do povo. O que decorre, portanto, dessa pesquisa de opinião pública é que o povo passou a reconhecer que os partidos políticos agem em proveito deles próprios e não do povo. É indispensável e urgente, portanto, suscitar a criação de novos partidos políticos, com características verdadeiramente democráticas. Mas, isto é muito difícil, porque pressupõe uma mudança de mentalidade, o propósito de atuar politicamente em proveito do povo e não em benefício próprio.
Hamilton Octavio de Souza – O senhor falou em oligarquia, que nesse processo a oligarquia controla. O senhor chegou a dizer que a oligarquia é composta por empresários…
De militares também…
Hamilton Octavio de Souza – Militares, banqueiros e tal…
E do oligopólio empresarial dos meios de comunicação de massa. Ela conta, episodicamente, com o apoio episódico de algumas instituições, como por exemplo a Igreja Católica.
Hamilton Octávio de Souza – Essa oligarquia, aqui, vem conseguindo se manter com o poder, no Brasil, apesar das mudanças, mas é ela que continua ainda sendo… quer dizer, ela tem um comando, ela tem uma orientação, ela está ligada ao que se chama capital internacional?
Ela tem, evidentemente, uma orientação muito firme. Veja, por exemplo, os meios de comunicação de massa. Quando eu era jovem, alguns professores diziam: “Meninos, vocês têm que ler todos os jornais do dia.” Os jornais eram muito diferentes uns dos outros. Hoje, os grandes jornais dizem exatamente a mesma coisa, têm todos a mesma orientação. Só muda o estilo e muda cada vez menos. O estilo dos grandes jornais tende a ser o mesmo. As revistas: há revistas mais sensacionalistas, há revistas nojentas no que diz respeito à defesa de privilégios, todos nós conhecemos, não é? Mas, todas elas são fundamentalmente defensoras do sistema capitalista e da ausência de democracia autêntica. É óbvio. A rede televisiva controlada pela Igreja Universal do Reino de Deus, por exemplo, entrou recentemente em conflito com um grande jornal de São Paulo. Mas na defesa do sistema capitalista e do regime oligárquico, eles estão unidinhos.
Tatiana Merlino – Eu gostaria que o senhor falasse um pouco sobre a diferença entre os brasileiros e os outros países da América Latina que estão punindo os torturadores da ditadura. Por que o Brasil não consegue julgar esses torturadores da ditadura?
Porque nós somos dissimulados. Os hispânicos, em geral, são abertos e francos. A crueldade deles é aberta. A nossa é sempre dissimulada, sempre oculta, porque nós temos que dar uma aparência de civilização, de democracia… Nos países hispano-americanos, a repressão militar nunca foi escondida e eles tiveram o cuidado de pôr a justiça fora disso. Nós, não. Não só o Poder Judiciário continuou a funcionar normalmente, como a Justiça Militar, que em si mesma é hoje uma aberração, teve a sua competência ampliada. Então, quando houve a reviravolta no Chile, na Argentina, no Uruguai, todos os chefes de Estado do regime repressivo foram processados, julgados e condenados, além de dezenas de outros oficiais militares. No Brasil, em primeiro lugar, nem se sabe exatamente qual é a identidade de 90% dos torturadores, e, em segundo lugar, quanto aos grandes chefes militares é como se eles não soubessem nada disso, nunca ouviram falar de torturas. Vou mais além. No Brasil, os banqueiros e grandes empresários colaboraram claramente com o regime militar. Os banqueiros de São Paulo, como se sabe, fizeram uma reunião em São Paulo para angariar fundos para criar a Operação Bandeirante, que está na origem dos famigerados DOIs CODIs. Não passa pela cabeça de ninguém, hoje, infelizmente, que esses banqueiros são co-autores dos assassinatos, torturas e abusos sexuais de presos políticos, praticados no quadro da Operação Bandeirante e as operações policiais e militares que a sucederam.
Tatiana Merlino – O senhor disse que os casos no Brasil tem que ser denunciados, enfim, nas instituições internacionais. O STF interpretou que a Lei da Anistia anistiou os torturados. Esse caso pode ser levado para a Corte Interamericana de Direitos Humanos?
Ele já está sendo julgado.
Tatiana Merlino – Sim, mas com o caso da Guerrilha do Araguaia.
Sim, mas o caso do Araguaia é um aspecto do total. A Corte Interamericana de Direitos Humanos adiou o julgamento para novembro por causa das eleições no Brasil, para não dar a impressão de interferência nas eleições.
Hamilton Octavio de Souza – Pode haver uma condenação do Brasil nesta corte?
Sim. Aliás, o Estado brasileiro, os nossos dirigentes em geral, temem as acusações no exterior, porque isto porá a nu a nossa dissimulação no plano internacional. O Brasil quer sempre aparecer, na cena mundial, como um defensor intrépido das liberdades democráticas, da dignidade da pessoa humana, e até está aspirando a ser um dos membros permanentes do conselho de segurança da ONU.
Tatiana Merlino – Se o Brasil for condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos, quais as sanções que o Brasil vai sofrer?
Se a Corte Interamericana condenar o Brasil, ela vai exigir que seja revogada a Lei de Anistia de 1979, com a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal. Mas o Brasil pode não cumprir essa exigência. E ficará, então, fora da lei no plano internacional. As consequências disso são indiretas, ou seja, isso vai ser levado em conta se o Brasil vier a pleitear, por exemplo, um cargo nas Nações Unidas, no Conselho de Segurança. Mas, não há um efeito direto.
De qualquer forma, isso certamente vai ser uma derrota política para a oligarquia brasileira. Há um projeto de lei da deputada Luciana Genro, interpretando a lei 6.683 de 1979, que é a Lei de Anistia. Então, é possível que eles digam: “Vamos aproveitar isso e dar uma nova interpretação, agora legislativa (ou seja, a chamada interpretação autêntica) para a Lei de Anistia.”
Isso, na melhor das hipóteses. Agora, se após essa reinterpretação da Lei de Anistia os criminosos do regime militar vão ser condenados, é outra história. A probabilidade de condenação antes de todos eles passarem desta vida para a melhor é praticamente nula.
(*) Entrevista da revista Caros Amigos da edição de outubro. Participaram da entrevista Cecília Luedemann, Hamilton Octavio de Souza e Tatiana Merlino
Fotos: Jesus Carlos.

Buscado no Gilson Sampaio
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terça-feira, 23 de novembro de 2010

Mídia, golpes e tortura

Via CartaCapital

No Brasil a Casa Grande não descansa. E a principal voz da Casa Grande no Brasil é a mídia hegemônica, aquele grupo de poucas famílias que se pretende o intérprete da realidade brasileira, apesar de há muito ter deixado de sê-lo. A um jornalismo sério, que tivesse compromisso com a história, a um jornalismo que tivesse alguma ligação, tênue que fosse, com a idéia de democracia, que se preocupasse com a educação das novas gerações, caberia discutir a monstruosidade da tortura, mostrar o que ela tem de lesa-humanidade. Mostrar que qualquer processo que envolva tortura não merece qualquer crédito. Mas esse não é o jornalismo brasileiro.
Emiliano José

Talvez pudéssemos inverter um pouco a ordem das coisas: que tal, ao invés de divulgar o relato de processos do STM sobre pessoas covardemente torturadas, como o faz agora o secretariado da mídia golpista brasileira, perguntássemos sobre qual o papel dessa mesma mídia na implantação da ditadura militar?
Não seria algo elucidativo, educativo para as novas gerações? Que tal compreender a verdadeira natureza de nossa mídia hegemônica para, então, entender por que, nesse momento, usando processos inteiramente submetidos à ordem castrense, ao terror ditatorial, tenta atingir a presidente da República, recentemente eleita, numa espécie de vingança pela derrota que sofreu? Perguntar por que ela não se conforma com essa nova derrota, a terceira derrota da mídia nas últimas eleições, derrotada pela opinião pública brasileira. Com que direito quer um terceiro turno, ilegítimo, revelador apenas de seus ressentimentos?
Eu insisto: no Brasil a Casa Grande não descansa. E a principal voz da Casa Grande no Brasil é a mídia hegemônica, aquele grupo de poucas famílias que se pretende o intérprete da realidade brasileira, apesar de há muito ter deixado de sê-lo. Não vou retroceder muito no tempo. Não vou esmiuçar o papel destacado de nossa mídia na tentativa de golpe contra o presidente Getúlio Vargas. O quartel-general do golpe era permanentemente orientado pela mídia. A mídia hegemônica de então e o golpe já quase consumado foram derrotados pelo suicídio do presidente.
O que pretendo mesmo é refrescar a memória ou informar um pouco que seja sobre o papel de nossa mídia no golpe de 1964. Não se trata apenas de ela ter elaborado todo o discurso que deu sustentação ao golpe contra o presidente Jango Goulart. Não se trata disso somente.
Trata-se do fato, por demais evidente, e há vasto repertório bibliográfico a respeito, de que a mídia participou diretamente das articulações golpistas. Ela derrubou Goulart lado a lado com os militares golpistas. Reuniu-se com eles para preparar o golpe. Não tem como se defender disso. É algo que hoje já pertence à história.
Com isso se quer dizer, e creio que é preciso insistir nisso, que a mídia hegemônica brasileira foi um ator fundamental na construção de uma ditadura sanguinária, terrorista no Brasil, a mesma que vai torturar covardemente homens, mulheres, crianças, que vai desaparecer com pessoas depois de desfigurá-las, provocar suicídios, que será capaz de todas as crueldades, perversidades para garantir a sua continuidade no poder por 21 anos.
A Rede Globo, criada lá pelos finais de 1969, não foi uma simples iniciativa empresarial. Foi um empreendimento político. Com a Rede Globo pretendeu-se unificar o discurso da ditadura, justificar tudo ela pretendesse, inclusive os assassinatos, o terrorismo que ela praticava cotidianamente. Inúmeras vezes assistíamos, no Jornal Nacional, notícias dando conta do atropelamento de companheiros, da morte de um militante por outro, versões montadas pela repressão para justificar a morte nas masmorras da ditadura. A Rede Globo encarnava e ecoava a voz do terror, foi criada para tanto.
E o grupo Globo é apenas parte de toda uma estrutura midiática que deu sustentação à ditadura, embora talvez, então, a parte mais importante. Não é difícil lembrar do terrível, do terrorista general Garrastazu Médici, ditador, que dizia que bastava assistir ao Jornal Nacional para perceber como tudo caminhava às mil maravilhas no Brasil. O Jornal Nacional era o diário oficial da ditadura.
Por isso, não há como nos surpreendermos com a tentativa, canhestra, de tentar desqualificar a presidente Dilma, pinçando aspectos do vasto processo buscado nos arquivos do STM, como a matéria de 19 de novembro, de O Globo. Não nos surpreendemos, mas não há como não nos indignarmos. É a voz da ditadura que volta, são os mesmos métodos que voltam, embora, agora, por impossibilidade, a tortura física não possa voltar.
A um jornalismo sério, que tivesse compromisso com a história, a um jornalismo que tivesse alguma ligação, tênue que fosse, com a idéia de democracia, que se preocupasse com a educação das novas gerações, caberia discutir a monstruosidade da tortura, mostrar o que ela tem de lesa-humanidade, mostrar a necessidade de evitar que ela exista, inclusive nas cadeias brasileiras de hoje. Mostrar que qualquer processo que envolva tortura não merece qualquer crédito. Mas, não.
O jornalismo realmente existente vai pinçar aspectos no processo que eventualmente desgastem a presidente da República. Nos próximos dias, a mídia golpista vai se debruçar sobre isso, podem anotar. É a tentativa do terceiro turno, evidência do ressentimento pela terceira derrota – a mídia perdeu em 2002 e 2006, quando Lula venceu, e perdeu agora, com a vitória de Dilma. Não se conforma, A Casa Grande não descansa.
Nem sei, nem vou procurar saber sobre todo o processo que envolveu a presidente. Escrevi vários livros sobre a ditadura, inclusive sobre Carlos Lamarca e Carlos Marighella, que tangenciam organizações revolucionárias pelas quais a presidente Dilma passou – e que orgulho ter militado em organizações revolucionárias. Não me detive, no entanto, na trajetória específica da presidente Dilma Roussef, nem caberia.
Mas será que os jornalistas que têm feito o papel de pescadores de leads e subleads negativos, de títulos desqualificadores da presidente têm alguma noção do que seja a tortura? Imagino que não, até porque só obedecem ordens, a pauta é previamente pensada, ordenada, e depois se faz a matéria.
Repito aqui o que escrevi em um dos meus livros, valendo-me das contribuições do psicanalista Hélio Pellegrino. A tortura nunca é mero procedimento técnico destinado à coleta rápida de informações. É também isso, mas nunca apenas isso. Ela é a expressão tenebrosa da patologia de todo um sistema social e político, expressão da ditadura militar de então. Ela visa à destruição do ser humano.
À custa de um sofrimento corporal inimaginável, teoricamente insuportável, a tortura pretende separar corpo e mente, instalar a guerra entre um e outro, semear a discórdia entre ambos. O corpo torna-se um inimigo – com sua dor, atormenta o torturado, persegue o torturado. A mente vai para um lado, o corpo sofrido para outro. O torturado fica exposto ao sol e à chuva, ao desabrigo absoluto, sem chão, entregue às ansiedades inconscientes mais primitivas. E apesar disso, tantas vezes, tantos de nós, quando não fomos trucidados e mortos na tortura, resistimos a esse terror, e saímos inteiros, ou quase inteiros, dessa situação-limite.
O que vale um processo feito sob a ditadura? O que valem declarações tiradas sob tortura? Responderia que valem apenas para revelar o que foi o terror, para revelar o que fizeram com as vítimas desse terror. Por que nos impressionamos e nos indignamos tanto com as vítimas do nazi-fascismo, inclusive nossa mídia, impressão e indignação justas, e somos, lá eles como costumam dizer os baianos, tão condescendentes com o terror da ditadura, com as torturas dos assassinos do período 1964-1985?
Eu compreendendo por que a mídia age assim com a nossa memória histórica, e já o disse antes: age assim pela simples razão de que ela tem tudo a ver com a gênese da ditadura, porque dela não pode se apartar, lamentavelmente. Por isso, nos preparemos para a luta dos próximos dias: ela vai buscar nos porões da ditadura o que possa servir aos seus propósitos de lutar contra o governo democrático, republicano e popular da presidente Dilma. E nos encontrará onde sempre estivemos: na luta intransigente, isso mesmo, intransigente, a favor da democracia, dos direitos humanos, e contra toda sorte de crimes contra a humanidade.
(*) Jornalista, escritor.

Buscado no Gilson Sampaio 
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