Enquadramento jurídico
Dalmo Dallari
Espera-se que nos próximos dias o presidente da República tome uma decisão a respeito da situação do italiano Cesare Battisti, que aguarda o atendimento de um pedido de asilo. Battisti foi militante político na Itália nos anos 70, período de muita violência praticada por facções opostas e por isso identificado como “anos de chumbo”. Em consequência de mudanças políticas e acusado da prática de crimes inspirados nos objetivos políticos do grupo a que pertencia, foi levado à prisão. Conseguindo sair da prisão refugiou-se no México e de lá foi para a França, onde a lei assegurava o asilo aos que renunciassem à luta armada. Essa lei foi revogada, e Battisti foi preso a pedido do governo italiano. Depois de algum tempo conseguiu sair da prisão francesa e buscou refúgio no Brasil, aonde chegou em 2004. Aqui vivia pacificamente, exercendo atividades honestas que lhe asseguravam a subsistência, quando, com a participação de agentes da polícia política italiana, foi localizado e preso pela Polícia Federal brasileira, tendo a Itália solicitado sua extradição.
Nesse meio tempo, em 1983, mesmo estando ausente, Battisti foi julgado na Itália, acusado da prática de quatro homicídios, sempre ligados, segundo seus acusadores, aos objetivos do grupo político a que pertencia. Nesse julgamento, a única base da acusação eram os depoimentos de antigos companheiros de Battisti, que se valeram da possibilidade legal de se declararem arrependidos obtendo tratamento privilegiado se denunciassem outros membros de seu grupo. Além de ter sido somente esse o fundamento da acusação, sem qualquer dado objetivo, participou do julgamento um advogado que apresentou uma procuração, que se comprovou ser falsa, simulando ser o defensor de Battisti, para que não se pudesse dizer que o acusado estava indefeso. Ao final, Battisti foi condenado pelo Tribunal à pena de prisão perpétua, o que é definitivo, pois na Itália, como no Brasil, nenhuma autoridade pode alterar a decisão de um Tribunal.
Cesare Batistti está preso em Brasília desde 2004, por determinação do então presidente do Supremo Tribunal Federal, para que não fugisse e desse modo impedisse o atendimento de pedido de extradição dirigido pelo governo italiano ao governo brasileiro. Somados os períodos em que esteve preso em diferentes países, ele já permaneceu preso em regime fechado por quase nove anos. Quanto ao pedido de extradição, de acordo com as normas constitucionais e as disposições legais brasileiras, a competência para a decisão sobre esse pedido é exclusivamente do presidente da República, estando prevista no Estatuto do Estrangeiro uma decisão prévia do Supremo Tribunal Federal, autorizando a extradição. Em 18 de novembro de 2009 o Supremo Tribunal decidiu conceder a autorização, o que foi comunicado ao chefe do Executivo com o reconhecimento expresso de que tal decisão não vincula o presidente e a observação de que deve ser considerado o tratado de extradição celebrado por Brasil e Itália. É importante ressaltar que cabe ao presidente da República “decidir” e não aplicar burocraticamente uma decisão do Supremo Tribunal, o que implica o poder de construir sua própria convicção quanto ao ato que lhe compete praticar, sem estar vinculado aos diferentes motivos que levaram cada ministro da Suprema Corte a votar num determinado sentido.
Com esse dados, pode-se resumir o quadro jurídico do caso Battisti. Em primeiro lugar, é oportuno assinalar que o tratado não se sobrepõe à Constituição, o que quer dizer que em caso de conflito o presidente da República deve obedecer às determinações constitucionais, ficando sem eficácia as disposições do tratado que conflitem com a Constituição. Esse ponto é fundamental, pois a Constituição brasileira estabelece textualmente, no artigo 5º, inciso LII, que “não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião”, e no processo italiano que resultou na condenação de Battisti está expressamente afirmado que sua motivação era política. Quanto a esse ponto, o presidente da República tem o poder de decidir, cabendo-lhe a palavra final. Ele deve formar sua própria convicção e decidir segundo ela. Além disso, é também oportuno lembrar que a Constituição dispõe, no mesmo artigo 5º, inciso XLVII, que não haverá pena de caráter perpétuo, sendo, portanto, constitucionalmente vedada a imposição dessa pena.
Com base no exposto, o presidente da República está autorizado pelo Supremo a conceder a extradição, mas deverá tomar a decisão considerando as disposições da Constituição, o que, no caso Battisti, leva à impossibilidade jurídica de extraditar. Assim, deve ser negada a extradição, cabendo ao presidente da República formalizar a decisão e comunicar ao governo italiano a existência de obstáculo constitucional para o atendimento do pedido.
Dalmo Dallari*
Professor e jurista
Buscado no Gilson Sampaio