sábado, 31 de maio de 2014

Monsanto, a semente do diabo

 

 

buscado no Altamiro Borges 

 

Por Esther Vivas, no jornal Brasil de Fato:

“A semente do diabo”. Foi assim que o popular apresentador do canal estadunidense HBO, Bill Maher, em um de seus programas e em referência ao debate sobre os Organismos Geneticamente Modificados, batizou a multinacional Monsanto. Por quê? Trata-se de uma afirmação exagerada? O que esconde esta grande empresa da indústria das sementes? No último domingo, justamente, foi o dia mundial de luta contra a Monsanto. Milhares de pessoas em todo o planeta se manifestaram contra as políticas da companhia.
A Monsanto é uma das maiores empresas do mundo e a número um em sementes transgênicas. No mundo, 90% dos cultivos modificados geneticamente contam com seus traços biotecnológicos. Um poder total e absoluto. AMonsanto está na liderança da comercialização de sementes e controla 26% do mercado. Mais longe, vem a DuPont Pioneer, com 18%, e Syngenta, com 9%. Somente estas três empresas dominam mais da metade do mercado, com 53% das sementes que são compradas e vendidas em escala mundial. As dez maiores controlam 75% do mercado, segundo dados do Grupo ETC. O que lhes proporciona um poder enorme na hora de impor o que se cultiva e, consequentemente, o que se come. Uma concentração empresarial que aumentou nos últimos anos e que corrói a segurança alimentar.
A ganância destas empresas não tem limites e seu objetivo é acabar com variedades de sementes locais e antigas, ainda hoje com um peso muito significativo, especialmente nas comunidades rurais dos países do Sul. Algumas sementes nativas representam uma ameaça para as híbridas e transgênicas das multinacionais, que privatizam a vida e impedem ao campesinato de obter suas próprias sementes, convertendo-os em “escravos” das companhias privadas, sem contar o seu negativo impacto ambiental, com a contaminação de outras plantações, e na saúde das pessoas.
A Monsanto não poupou recursos para acabar com as sementes camponesas: ações legais contra agricultores que tentam conservá-las, patentes de monopólio, desenvolvimento de tecnologia de esterilização genética de sementes, etc. Trata-se de controlar a essência dos alimentos e, assim, aumentar sua cota de mercado.
A introdução nos países do Sul, em especial naqueles com vastas comunidades camponesas ainda capazes de contar com suas próprias sementes, é uma prioridade para estas companhias. Deste modo, as multinacionais da semente intensificaram as aquisições e alianças com empresas do setor, principalmente na África e na Índia. Apostaram em cultivos destinados aos mercados do Sul Global e promoveram políticas para desestimular a reserva de sementes. A Monsanto, como reconhece sua principal rival DuPont Pioneer, é a “guardiã única” do mercado de sementes, controlando, por exemplo, 98% da comercialização de soja transgênica tolerante a herbicidas e 79% do milho, como retrata o relatório “Quem controla os insumos agrícolas?”. Isso lhe dá suficiente poder para determinar o preço das sementes, independente de seus competidores.

Das sementes aos agrotóxicos
No entanto, como a Monsanto não tem condições suficientes para controlar as sementes, para fechar o círculo, também procura dominar o que se aplica em seu cultivo: os agrotóxicos. A Monsanto é a quinta empresa agroquímica mundial e controla 7% do mercado de inseticidas, herbicidas, fungicidas, etc., atrás de outras empresas, por sua vez, líderes no mercado das sementes, como Syngenta, que domina 23% do negócio dos agrotóxicos, Bayer, 17%, BASF, 12%, e Dow Agrosciences, quase 10%. Assim, cinco empresas controlam 69% dos pesticidas químicos sintéticos que são aplicados nas plantações em escala mundial. Os mesmos que vendem ao campesinato as sementes híbridas e transgênicas, também fornecem os pesticidas para aplicar. Negócio redondo.
O impacto ambiental e na saúde das pessoas é dramático. Apesar das empresas destacarem o caráter “amigável” destes produtos com a natureza, a realidade é totalmente o contrário. No momento atual, após anos de fornecimento do herbicida da Monsanto, Roundup Ready, a base de glifosato, que já em 1976 foi o herbicida mais vendido do mundo, segundo dados da própria companhia, e que se aplica às sementes da Monsanto modificadas geneticamente para tolerar dito herbicida, sabe-se que ao mesmo tempo em que este acaba com a erva daninha, várias outras tem desenvolvido resistências. Estima-se que somente nos Estados Unidos já surgiram cerca de 130 ervas daninhas resistentes a herbicidas, em 4,45 milhões de hectares de plantações, de acordo com dados do Grupo ETC. Isso levou a um aumento do uso de agrotóxicos, com aplicações mais frequentes e doses mais elevadas para combatê-las, com a conseguinte contaminação ambiental do entorno.
As denúncias de camponeses e comunidades afetadas pelo uso sistemático de pesticidas químicos sintéticos é uma constante. Na França, inclusive, o Parkinson é considerado uma enfermidade do trabalho agrícola, causado pelo uso de agrotóxicos, depois que o camponês Paul François venceu a batalha judicial contra a Monsanto, no Tribunal de última instância de Lyon, em 2012, e conseguiu demonstrar que seu herbicida Lasso era o responsável por intoxicá-lo e deixá-lo inválido. Uma sentença histórica, que permitiu um avanço na jurisprudência.

O caso das Mães de Ituzaingó, um bairro das redondezas da cidade argentina de Córdoba, rodeada de campos de soja, em luta contra as fumigações é outro exemplo. Após dez anos de denúncia, e depois de observar como o número de enfermos de câncer e crianças com malformações no bairro não parava, mas, sim, aumentava - de cinco mil habitantes, duas centenas tinham câncer -, conseguiram demonstrar a ligação entre estas enfermidades e os agroquímicos aplicados nas plantações de soja em seus arredores (endosulfan de DuPont e glifosato de Roundup Ready da Monsanto). A Justiça proibiu, graças à mobilização, a fumigação com agrotóxicos perto de áreas urbanas. Estes são apenas dois casos dos muitos que podemos encontrar em todo o planeta.
Agora, os países do Sul são o novo objetivo das empresas de agroquímicos. Enquanto as vendas globais de pesticidas caíram nos anos 2009 e 2010, seu uso nos países da periferia aumentou. Em Bangladesh, por exemplo, a aplicação de pesticidas cresceu 328% nos anos 2000, com o consecutivo impacto na saúde dos camponeses. Entre 2004 e 2009, a África e o Oriente Médio tiveram o maior consumo de pesticidas. E na América Central e do Sul se espera um aumento do consumo nos próximos anos. Na China, a produção de agroquímicos alcançou, em 2009, dois milhões de toneladas, mais do que o dobro de 2005, segundo informa o relatório “Quem controlará a economia verde?”. Business as usual.

Uma história de terror
Porém, de onde surge esta empresa? A Monsanto foi fundada em 1901 pelo químico John Francis Queeny, proveniente da indústria farmacêutica. Sua história é a história da sacarina e o aspartame, do PBC, do agente laranja, dos transgênicos. Todos fabricados, ao longo dos anos, por esta empresa. Uma história de terror.
A Monsanto se constituiu como uma empresa química e, em suas origens, seu produto estrela era a sacarina, que distribuía para a indústria alimentar, em especial, para a Coca-Cola, que foi uma de seus principais provedores. Com os anos, expandiu seu negócio à química industrial, tornando-se, nos anos 1920, um dos maiores fabricantes de ácido sulfúrico. Em 1935, absorveu a empresa que comercializava policloreto de bifenila (PCB), utilizado nos transformadores da indústria elétrica. Nos anos 1940, a Monsanto centrou sua produção nos plásticos e nas fibras sintéticas e, em 1944, começou a produzir químicos agrícolas como o pesticida DDT.
Nos anos 1960, junto com outras empresas do setor, como Dow Chemical, foi contratada pelo governo dos Estados Unidos para produzir o herbicida agente laranja, que foi utilizado na guerra do Vietnã. Neste período, juntou-se, também, com a empresa Searla, que descobriu o adoçante não calórico aspartame. A Monsanto também foi produtora do hormônio sintético de crescimento bovino somatotropina bovina. Nos anos 1980 e 1990, a Monsantoapostou na indústria agroquímica e transgênica, até chegar a se tornar a número um indiscutível das sementes modificadas geneticamente.
Atualmente, muitos dos produtos made by Monsanto foram proibidos, como o PBC, o agente laranja ou o DDT, acusados de provocar graves danos à saúde humana e ao meio ambiente. O agente laranja, na guerra do Vietnã, foi responsável por dezenas de milhares de mortos e mutilados, assim como pelo nascimento de crianças com malformações. A somatotropina bovina também está vetada no Canadá, União Europeia, Japão, Austrália e Nova Zelândia, apesar de ser permitida nos Estados Unidos. O mesmo ocorre com o cultivo de transgênicos, onipresente na América do Norte, mas proibido na maioria dos países europeus, exceto, por exemplo, pelo Estado espanhol.
A Monsanto se movimenta como peixe na água no cenário de poder. Isso ficou claro por Wikileaks, quando filtrou mais de 900 mensagens que mostravam como a administração dos Estados Unidos gastou grandiosos recursos públicos para promover a Monsanto e os transgênicos em muitíssimos países, por meio de suas embaixadas, seu Departamento de Agricultura e sua agência de desenvolvimento USAID. A estratégia consistia em conferências “técnicas”, desinformando jornalistas, funcionários e formadores de opinião, bem como pressões bilaterais para adotar legislações favoráveis e abrir mercado às empresas do setor, etc. Na Europa, o governo espanhol é o principal aliado dos Estados Unidos nesta matéria.

Enfrentamento
Diante de todo este despropósito, muitos não calam e enfrentam. Milhares são as resistências contra a Monsanto em todo o mundo. A data de 25 de maio foi declarada o dia mundial contra esta companhia e centenas de manifestações e ações de protesto foram realizados, neste dia, ao redor do globo. Em 2013, realizou-se a primeira convocação, milhares de pessoas saíram às ruas em várias cidades de 52 diferentes países, desde Hungria até Chile, passando por Holanda, pelo Estado espanhol, Bélgica, França, África do Sul, Estados Unidos, entre outros, para mostrar a profunda rejeição às políticas da multinacional. No domingo passado, dia 25, a segunda convocação, menos concorrida, contou com ações em 49 países.
A América Latina é, neste momento, uma dos principais frentes de luta contra a companhia. No Chile, a mobilização conseguiu, em março de 2014, a retirada da conhecida Lei Monsanto, que pretendia facilitar a privatização das sementes locais e deixá-las nas mãos da indústria. Outra grande vitória foi na Colômbia, um ano antes, quando a massiva paralisação agrária, em agosto de 2013, conseguiu a suspensão da Resolução 970, que obrigava os camponeses a usar exclusivamente sementes privadas, compradas de empresas do agronegócio, e impedia que guardassem suas próprias sementes. Na Argentina, os movimentos sociais também estão em pé contra outra Lei Monsanto, que se pretende aprovar no país e subordinar a política nacional de sementes às exigências das empresas transnacionais. Mais de 100.000 argentinos já assinaram contra esta lei, no marco da campanha “Não à Privatização das Sementes”.
Na Europa, a Monsanto agora quer aproveitar a fenda que se abre nas negociações do Tratado de Livre Comércio União Europeia - Estados Unidos (TTIP), para pressionar em função de seus interesses particulares e poder legislar acima da vontade dos países membros, a maioria contrária à indústria transgênica. Esperamos que não demorem as resistências na Europa contra o TTIP.


A Monsanto é a semente do diabo, sem sombra de dúvidas.

* Publicado no jornal espanhol Público. Tradução do Cepat
 
 

terça-feira, 27 de maio de 2014

Eternos Migrantes





Por Jader Resende
Todos os dias somos sufocados pelas modificações na sua estrutura física e lógica, com pequenas, planejadas e homeopáticas novidades, que diariamente aparecem para a felicidade do bilionário comercio digital e desumano suplício da natureza na exploração dos recursos naturais do nosso solo.
Esta parafernália comercial acaba transformando a todos em eternos migrantes nesse mundo binário. Pela impossibilidade de acompanhar esta transformação constante e forçada, seremos considerados seres inferiores e continuaremos explorados e sem liberdades.
Como se não bastasse fazer vista grossa diante dos infinitos meios de manipulações nesta confusão que cobre o ar que respiramos na ilusão de bem próximo os distantes e longe os bem próximos. Partem para controle absoluto dos meios de comunicação e impiedosamente as corporações controlam tudo e todos eliminando qualquer vestígio de inteligência de um povo. A dominação pelas armas tornou-se dispendiosa para os que nada têm e tudo quer. Mesmo assim, bilhões são gastos militares e sacrifício de muitas vidas acontecem. Interesses econômicos de gananciosos grupos dominam através de sofisticadas manipulações e espionagens.
A condenação ou recriminação tem agora maior visibilidade e facilidades de registro dos fatos com fotos e filmes através do mundo virtual e também enganos são cometidos pela velocidade na comunicação. Justiçamentos, linchamentos e assassinatos de reputações tornaram-se uma constante, melhor dizendo, já ganhou o domínio público, de forma não tão sofisticada quanto às impostas pelas ditas corporações, mas de grande efeito na insegurança generalizada nas básicas necessidades do povo.
A importância das manifestações através das redes sociais mostra como nunca, a força e poder da periferia, da favela e das minorias na vida política e cultura da cidade.
O mundo invisível dos bytes nos contamina diariamente e nos envolve nesse mundo binário que veio para ficar.
Web esta presente em todo e qualquer lugar, dependemos dela para tudo, dela fazemos parte e ninguém escapa. A Web superficial é um verdadeiro mercado da diversidade apesar de ser um terço do desconhecido e profundo mundo da Deepnet.
De grande importância na superfície da internet, entre muitos outros, temos a participação no sistema de transplantes de órgãos, salvando vidas, trazendo novas chances para muitos voltarem ao prazer de viver. Através da presteza e agilidade da internet na simples organização da fila de espera de um transplante, até os precisos instrumentos utilizados pelos médicos, tudo passa pelo computador para o bem da humanidade.
O mal também se faz presente, pode estar no mais alto escalão do poder, até bandidos de todos os tipos. Existem os que por pouco se vendem, outros a troco de vantagens ou favores, alguns com técnicas avançadas são capazes de mirabolantes transações desonestas, outros nem tanto, contudo com uma vírgula elimina alguém ou faz de sua vida um inferno.
Fingimos não ver invasões, mortes em massa, destruição de países, espionagem na vida privada e econômica pelos verdadeiros donos do poder. Fingimos não ver o roubo de nossas riquezas, destruição de nossos códigos de honra, nossas tradições e principalmente a imposição de consumo planejado que só destrói a vida.
Fingimos não sentir a manipulação de nossas emoções, onde somos atingidos facilmente pelos invisíveis crimes cibernéticos, destruindo principalmente os que se manifestam contra o poder corporativo, por mínimo que seja o protesto será castigada de forma impiedosa e desumana.
Esse é o preço que pagamos pelas facilidades e importância da Web.
Enfim. Sem levar em conta o poder da robótica. O seu domínio principalmente na indústria substituindo o operariado, na repressão social, tal qual nos filmes que já tivemos a oportunidade de ver. Teremos outros desafios, outros amigos e outros inimigos. As inovações tornaram os robôs cada vez mais humanos e também mais cruéis.
Diante de todos os avanços seguirei acreditando que por traz de um computador terá sempre alguém salvando ou destruindo vidas.
Acima de tudo continuarei acreditando que não conseguiremos resolver nenhum problema se não darmos a natureza o que ela merece e transformá-la no que sempre foi, a essencia da vida.



domingo, 25 de maio de 2014

Monika Ertl: a justiceira do homem que cortou as mãos ao Che


buscado no Odiario.inf


 

A forma e o conteúdo deste texto não são habituais em odiario.info. Mas a trajectória da vida que evoca constitui, na sua escala própria, uma peça da história em construção que partilhamos. Em que a coragem de agir de acordo com as suas convicções, mesmo que com o risco da própria vida, faz parte daquilo que caracteriza o revolucionário. Seja ele homem ou mulher.


Eram dez menos vinte da manhã de 1 de Abril de 1971 em Hamburgo, Alemanha. Uma bela e elegante mulher de profundos olhos cor do céu entra no escritório do cônsul da Bolívia e espera pacientemente ser atendida. Enquanto espera, olha indiferente os quadros que adornam o escritório. Roberto Quintanilla, cônsul boliviano, vestindo elegantemente um fato escuro de lã, aparece no escritório e saúda, impressionado pela beleza dessa mulher que diz ser australiana, e que dias antes lhe havia pedido uma entrevista.
Por um instante fugaz ambos se encontram frente a frente. A vingança surge encarnada num rosto feminino muito atractivo. A mulher de beleza exuberante fixa-o nos olhos e sem mais palavras empunha um revolver e dispara três vezes. Não houve resistência, nem confronto, nem luta. Os disparos acertaram em cheio. Na sua fuga, deixou para trás uma peruca, a sua bolsa, o seu Colt Cobra 38 Special, e um pedaço de papel onde se lia “Vitória ou morte. ELN”.
¿Quem era esta audaz mulher e porque teria assassinado “Toto” Quintanilla?
Na milícia guevarista havia uma mulher que se fazia chamar Imilla, palavra cujo significado em língua quechua e aimara é menina ou jovem indígena (agora considerado um insulto na Bolívia). O seu nome de origem: Mónica (Monika) Ertl. A alemã de nascimento que havia realizado uma viagem de onze mil quilómetros desde a perdida Bolívia com o único propósito de justiçar um homem, o personagem mais odiado pela esquerda mundial: Roberto Quintanilla Pereira.
A partir desse momento ela converteu-se na mulher mais procurada do mundo. Surgiu nas primeiras páginas dos diários de toda a América. Mas ¿quais eram as suas razões e quais as suas origens?
Regressemos a 3 de Março de 1950, data em que Mónica havia chegado à Bolívia com Hans Ertl – seu pai – através da que seria conhecida como a “rota das ratazanas”, a via que facilitou a fuga de membros do regime nazi para a América do Sul no final do maior e mais sangrento conflito armado da história universal: a II Guerra Mundial.
A história de Mónica veio a ser narrada em grandes traços graças à investigação de Jürgen Schreiber. A que lhe apresento é apenas um esboço desta apaixonante história que envolve muitos sentimentos e personagens.
Hans Ertl (Alemanha, 1908 - Bolívia, 2000) alpinista, inovador de técnicas submarinas, explorador, escritor, inventor e materializador de sonhos, agricultor, converso ideológico, cineasta, antropólogo e etnógrafo amador. Muito cedo alcançou notoriedade ao retratar os dirigentes do partido nacional-socialista quando filmava a majestade, a estética corporal e a destreza atléticas dos participantes nos Jogos Olímpicos de Berlim (1936), sob a direcção da cineasta que glorificou os nazis, Leni Riefenstahl.
Entretanto, teve o infortúnio (e a posterior desgraça) de ficar conhecido para a história como o fotógrafo de Adolf Hitler, embora o iconógrafo oficial do Führer tenha sido Heinrich Hoffman, do esquadrão de defesa. Algumas fontes referem que Hans estava destacado para documentar as zonas de acção do regimento do famoso marechal de campo Erwin Rommel, apelidado ”Raposa do Deserto” , na sua travessia para Tobruk em África.
Como dado curioso o facto de Hans não ter pertencido ao partido nazi embora, apesar de detestar a guerra, exibisse com orgulho o casaco desenhado por Hugo Boss para o exército alemão, como símbolo das suas aventuras de outrora e do seu garbo ariano. Detestava que lhe chamassem “nazi”, não tinha nada contra eles, como tão pouco tinha contra os judeus. Por irónico que pareça foi outra vítima da Schutzstaffel.
No final da Segunda Guerra Mundial, quando o Terceiro Reich ruiu, os altos responsáveis, colaboradores e próximos do regime nazi fugiram da justiça europeia refugiando-se em diversos países, entre os quais os do continente americano, com o beneplácito dos respectivos governos e o apoio incondicional dos Estados Unidos. Diz-se que era uma pessoa muito pacífica e que não tinha inimigos, de modo que optou por ficar na Alemanha durante algum tempo trabalhando em tarefas inferiores ao seu status, até que emigrou com a sua família. Primeiramente para o Chile, no arquipélago austral de Juan Fernández, “fascinante paraíso perdido” onde realizou o documentário “Robinson” (1950) e outros projectos.
Após uma longa viagem, Ertl estabelece-se em 1951 em Chiquitania, a 100 quilómetros da cidade de Santa Cruz. Chegou até aí para se instalar nas prósperas e virgens terras, qual conquistador do século XV, entre a espessa e intrincada vegetação brasileiro-boliviana. Uma propriedade de 3.000 hectares onde construiria com as suas próprias mãos e com materiais locais o que foi o seu lar até aos últimos dias; “La Dolorida”.
O vagabundo da montanha, como era conhecido pelos exploradores e cientistas, deambulava com o seu passado às costas pela imensa natureza com a visão ávida de descobrir e capturar por meio da sua objectiva toda a percepção da sua mágica envolvente na Bolívia, ao mesmo tempo que começava uma nova vida acompanhado da sua esposa e das suas filhas. A mais velha chamava-se Mónica, tinha 15 anos quando teve lugar o exilio, e aqui começa a sua história…
Mónica tinha vivido a infância no meio da efervescência do nazismo na Alemanha e quando emigraram para a Bolívia aprendeu a arte do seu pai, o que lhe valeu trabalhar depois com o documentarista boliviano Jorge Ruiz. Hans realizou na Bolívia vários filmes (“Paitití” e “Hito Hito”) e transmitiu a Mónica a paixão pela fotografia. Na verdade facilmente podemos reivindicá-la como pioneira das mulheres realizadoras de documentários na história da sétima arte.
Mónica criou-se num círculo tão fechado como racista, no qual brilhavam tanto o seu pai como outro sinistro personagem a quem ela se acostumou a chamar com carinho “O tio Klaus”. Um empresário alemão (pseudónimo de Klaus Barbie (1913-1991) e ex chefe da Gestapo em Lyon, França) mais conhecido como o “Carniceiro de Lyon”.
Klaus Barbie mudaria o seu apelido para ”Altmann” antes de se envolver com a família Ertl. Este homem ganhou suficiente confiança no estreito círculo de personalidades em La Paz a ponto de o próprio pai de Mónica, que foi quem o apresentou, lhe ter inclusivamente conseguido o seu primeiro emprego na Bolívia como cidadão Judeu Alemão. Diz-se dele que posteriormente assessorou ditaduras sul-americanas.
A célebre protagonista desta história casou-se com outro alemão em La Paz e viveu nas minas de cobre do norte de Chile mas, ao fim de dez anos, o seu matrimónio fracassou e ela converteu-se numa activa política que apoiou causas nobres. Entre outras coisas ajudou a fundar um lar para órfãos em La Paz, agora convertido em hospital.
Viveu num mundo extremo rodeada de velhos lobos torturadores nazis. Não estranhava qualquer indício perturbador. Entretanto, a morte do guerrilheiro argentino Ernesto Che Guevara na selva boliviana (Outubro de 1967) tinha significado para ela o impulso final no que diz respeito aos seus ideais. Mónica – segundo a sua irmã Beatriz – ”adorava o “Che” como se fosse um Deus”.
Em resultado disto a relação entre pai e filha tornou-se difícil pela combinação desse fanatismo associado a um espírito subversivo, que constituíram talvez os factores detonantes na geração de uma postura combativa, idealista, perseverante. O seu pai foi o mais surpreendido e, embora isso lhe custasse, expulsou-a da granja. Talvez esse desafio tenha produzido nele, nos anos 60, uma certa metamorfose ideológica, a ponto de se converter em colaborador e defensor indirecto dos esquerdistas na América do Sul.
“Mónica foi a sua filha favorita, o meu pai era muito frio em relação a nós e ela parecia ser a única que amava. O meu pai nasceu como resultado de uma violação, a minha avó nunca lhe mostrou afecto e isso marcou-o para sempre. O único afecto que mostrou foi para Monika”, disse Beatriz em entrevista à BBC News.
Em finais dos anos sessenta tudo mudou com a morte do Che Guevara. Rompeu com as suas raízes e empreendeu uma viragem drástica para entrar em pleno na milícia empunhando a bandeira da Guerrilha de Ñancahuazú, tal como o seu herói fizera em vida no combate contra a desigualdade social.
Mónica deixou de ser aquela rapariga apaixonada pela objectiva para se converter em “Imilla a revolucionária” refugiada num acampamento das colinas bolivianas. À medida que foram desaparecendo da face da Terra a maior parte dos que integravam a guerrilha, a sua dor transformou-se em força para reclamar justiça convertendo-se numa peça chave operacional para o ELN.
Durante os quatro anos que permaneceu retirada no acampamento apenas uma vez por ano escreveu ao seu pai , para dizer textualmente; não se preocupem por mim… estou bem. Lamentavelmente, nunca mais voltou a vê-la; nem viva, nem morta.
Em 1971 cruza o Atlântico e volta à sua Alemanha natal, e em Hamburgo executa pessoalmente o cônsul boliviano, o coronel Roberto Quintanilla Pereira, responsável directo pelo ultraje final a Guevara: a amputação das suas mãos, na altura do seu fuzilamento em La Higuera. Com essa profanação assinou a sua sentença de morte e, desde então, a fiel “Imilla” propôs-se uma missão de alto risco: jurou que vingaria o Che Guevara.
Depois de cumprir o seu objectivo começaria uma perseguição que atravessou países e mares e que apenas encontrou o fim no ano de 1973 quando Mónica caiu morta, numa emboscada que segundo algumas fontes fidedignas lhe montou o seu traiçoeiro “tio” Klaus Barbie.
Depois da sua morte, Hans Erlt continuou a viver e a filmar documentários na Bolívia, onde morreu com a idade de 92 anos (ano 2000) na sua granja agora convertida em museu graças à ajuda de algumas instituições de Espanha e Bolívia. Ali permanece enterrado, acompanhado pelo seu velho casaco de militar alemão, seu fiel companheiro dos últimos anos. O seu sepulcro permanece entre dois pinheiros e terra da sua Baviera natal. Ele mesmo se encarregou de o preparar e a sua filha Heidi de tornar realidade seus desejos. Hans tinha expressado numa entrevista concedida à agência Reuters:
“Não quero regressar ao meu país. Quero, mesmo morto, ficar nesta minha terra.”
Diz-se que num cemitério de La Paz descansam “simbolicamente” os restos de Mónica Ertl. Na realidade nunca foram entregues ao seu pai. Os seus pedidos foram ignorados pelas autoridades depois do acontecimento. Os restos permanecem em algum sítio desconhecido do país boliviano. Jazem numa fossa comum, sem uma cruz, sem um nome, sem uma bênção do seu pai.
Assim foi a vida desta mulher num período em que, no dizer da direita fascista daqueles anos, campeava “o comunismo” e por conseguinte “o terrorismo” na Europa. Para uns o seu nome ficou gravado nos jardins da memória como guerrilheira, assassina ou talvez terrorista, para outros como uma mulher valente que cumpriu uma missão.
Na minha opinião, é a costela feminina de uma revolução que lutou pelas utopias da sua época, e que perante os nossos olhos obriga a reflectir uma vez mais sobre a frase: “Nunca subestime o valor de uma mulher”.

Fonte: Cubadebate

Veja o vídeo, com narrativa em espanhol sobre o dia em Mônica vingou El Che.
Leia também

Mónica Ertl, “a mulher que vingou Che Guevara”





quinta-feira, 22 de maio de 2014

A RAPOSA E O GALINHEIRO (Falta de vergonha na cara-GS)


buscado no Gilson Sampaio 

por Mauro Santayana

(Hoje em Dia) - O escritor Hans Christian Andersen, que entendia do assunto, dizia que “os contos de fadas são escritos para que as crianças durmam, e os adultos despertem.”

Em uma das fábulas que envolvem canídeos e galináceos, ambas da tradição lusitana, aprende-se porque não se deve deixar a segurança do galinheiro a cargo desses predadores.
A lembrança vem à tona com a notícia, publicada pelo Valor Econômico, de que a Boeing, norte-americana, está trazendo, para o Brasil, sua divisão de Defesa, Espaço e Segurança, para tentar prestar serviços de segurança cibernética a órgãos como o Ministério da Defesa, o da Ciência e Tecnologia, grandes estatais, bancos e companhias do setor privado.
Justamente algumas das áreas que foram mais visadas, e que, com certeza, continuam a ser  espionadas, por agências norte-americanas de informação, como a NSA, no âmbito do vasto “galinheiro cibernético” da rede mundial de computadores.
Embora no site oficial da BDSS – o braço de defesa da Boeing – o link relativo à “defesa nacional” não leve mais a parte alguma, na seção Government Operationsfica clara, como não poderia deixar de ser, a estreita ligação da empresa com o seu país de origem, onde tem fábricas e instalações em mais de 50 estados, e conta com 58 mil funcionários, e um faturamento de 33 bilhões de dólares.
No Brasil – mesmo que contem com fortes concorrentes de outras regiões do mundo -  basta que empresas sejam norte-americanas, e tenham certa reputação estabelecida, ao longo dos anos, por meio de ações de marketing, para que as portas se abram como em um passe de mágica, muitas vezes, sem que sequer seja obedecida a legislação, do ponto de vista de licitação e contratação de serviços.
Esse está sendo agora o caso da joint- venture assinada pela CEF com a IBM, em 2012, para prestar serviços no montante de mais de 1 bilhão de reais, que está sendo contestada e avaliada pelo TCU – o Tribunal de Contas da União.
Na administração pública, é preciso tomar cuidado com quem se coloca dentro de casa, e  se assinam certos convênios, como foi o caso da contratação da Academi, ex-Blackwater -uma empresa privada de mercenários, acusada de crimes em várias regiões do globo -  para o treinamento de policiais brasileiros responsáveis pela segurança da Copa do Mundo.    
No lugar de contratar empresas estrangeiras, o Governo Federal – e os estaduais – por meio do SERPRO, da TELEBRÁS, de nossas universidades e institutos de pesquisa, precisa investir em software nacional e livre, servidores próprios, e criptografia. E  estabelecer parâmetros que proíbam ou desestimulem a compra de soluções externas – principalmente de países que já nos espionaram –  nas quais, eventualmente, como a raposa dentro do galinheiro, possam vir “portas” ocultas  para dar acesso a empresas e governos de outros países a nossas informações nacionais estratégicas.


terça-feira, 20 de maio de 2014

Algumas considerações sobre ser mulher negra e estudante de Direito



buscado nas Blogueiras Negras


por Amanda Beatriz •  
“Sou negra e estudante de Direito.” Conforme a própria afirmação sugere, a interlocução que se pretende desenvolver ao longo do texto é a de construir uma reflexão crítica acerca da condição da mulher negra inserida no meio universitário. Aqui, em específico, a daquela que está regularmente inscrita em cursos de bacharelado em Direito. Deste modo, é possível que, muito legitimamente, vários leitores se questionem: “Qual a pertinência do texto com a condição da mulher?” E, ainda, poderão se indagar: “Qual a relação do tema com o feminismo negro” e “Por que, em particular, a condição social da mulher negra e estudante de Direito merece tamanho destaque a ponto de se converter em texto submetido à publicação no Blogueiras Negras?”.
Antes de abordar a questão em si, gostaria de registrar que a redação não pretende – de forma alguma – esgotar o assunto em tela. Dados a complexidade da matéria e os propósitos didáticos a que se destina o texto, o objetivo primordial é o de tão somente estimular reflexões correlatas ao tema apresentado.
Dito isto, a partir de agora, é viável enfrentar o primeiro degrau da nossa reflexão, o qual se remete à presença do negro nas universidades. Ao contrário do que muita gente pensa, o debate em torno da população negra nos cursos de ensino superior – sejam estas instituições de ensino público ou privado – vai muito além da questão das cotas, pois para o senso comum, tudo relacionado ao negro e a faculdade se exaure neste ponto.
Obviamente, em momento algum estou dizendo ou quero dar a entender que as cotas não são relevantes. O que desejo é chamar atenção para o fato de que a análise do acesso da população preta à educação de terceiro grau se define a partir de sua compreensão como resultado maduro das lutas históricas em prol da ocupação de espaços destinados à produção do saber científico e, portanto, ambientes elitizados e profundamente excludentes em sua essência.
Transitar em terreno político outrora restrito à classe privilegiada é consequência da afirmação dos direitos fundamentais do negro – o qual foi compulsoriamente, em boa parte de nosso processo histórico, direcionado à realização de trabalhos braçais que se caracterizavam por requisitar nenhuma ou pouquíssima competência intelectiva para sua fiel execução .
Destaco ainda que, em paralelo à dinâmica histórica evidenciada e em posição desfavorável ao negro, se organizam todos os demais bloqueios “invisíveis” e impeditivos a sua formação. Dentre eles, por exemplo, podemos citar a conjuntura social e econômica, vez que diversos alunos estudam com muita dificuldade e esforço justamente por se encontrarem em condição de vulnerabilidade social.
Somado a isto, também se verifica o contra-ataque do racismo institucional da sociedade brasileira, identificado em várias ocorrências não-esporádicas e não-isoladas. A título de exemplo, pontuo os casos mais recentes como os da aluna Stephanie Ribeiro, estudante de Arquitetura e Urbanismo na PUC-Campinas e o de Mônica Gonçalves, aluna da Faculdade de Saúde Pública da USP. Não é difícil perceber que o efeito psicológico da violência em que se constitui o racismo é o mais deletério possível na vida das pessoas que passam por essa experiência. Ademais, a partir dos depoimentos das alunas, podemos mensurar nitidamente todo o mal que essa doença ocasiona na vida de suas vítimas.
Após esta breve ambientação, já entendo ser oportuno raciocinar em torno de um universo mais fechado, restringindo daqui por diante, a abrangência do contexto. O cerne da questão não mais tratará da conjuntura social relativa ao “ser negra e estudante universitária”, mas sim, do “ser negra e estudante de Direito”.
A primeira consideração que desejo tecer, neste segundo degrau, é aquela que vai ao encontro da atmosfera elitizada e altamente classista que permeia o curso de Direito. É preciso entender que – em se tratando de curso de nível superior – o Direito é uma das graduações mais antigas no Brasil. Uma rápida busca na internet acerca da polêmica no uso da palavra “doutor” para advogados e toda a argumentação histórica a favor de sua manutenção (assim como as dos que se manifestam contra o seu emprego) muito bem corroboram a essência aristocrática do curso. Ainda nessa esteira, se tiverem curiosidade de verificar a história dos cursos de ensino superior no país, também comprovarão facilmente que o bacharelado em ciência jurídica é um dos mais antigos no país.
O Direito, entre muitas acepções possíveis, pode ser entendido como reflexo da vontade de quem manda. Direito, portanto, seria nesse sentido uma superestrutura desenhada com fins de atendimento aos anseios da classe dominante e, por isso mesmo, excludente e elitista em sua natureza ontológica.
Muito importante ressaltar que esta reflexão tudo tem a ver com o ser negra e estudante de Direito. Você, caro leitor, perguntará: “De que forma o que já foi dito se relaciona com a mulher negra e as reivindicações do feminismo negro?”. Eu, de pronto, posso responder a você: “considerando que o Direito se impõe nos espaços decisórios como instrumento concretizador de uma vontade, o sujeito que exerce o uso da habilidade jurídica com fins de argumentar, sentenciar, condenar e absolver pessoas; tem em suas mãos o poder decisório”. Historicamente, o manejo da verve forense sempre foi feito por aqueles que estavam em condição social mais privilegiada. Assim, mediante este raciocínio, conclui-se que nem o negro e tampouco a mulher negra, participaram do processo de tomada das decisões políticas e fundamentais no qual se inscreveu o Direito na História.
Quando ocorreram as reivindicações iniciais do feminismo branco cujo objetivo se assentou em seus primórdios na luta para que mulheres brancas tivessem o direito de trabalhar, fas mulheres negras já trabalhavam. Nós trabalhamos desde sempre. Fomos forçadas ao trabalho compulsório ainda cedo. Mulheres negras ao lado de homens negros foram os braços e as pernas que ajudaram a construir a economia deste país.
Além disso, na ocasião da “libertação dos escravos”, momento em que os negros se viram completamente desamparados pelo Governo e alijados de chance na obtenção de emprego, foram as mulheres negras que proveram o sustento de suas casas por meio de trabalhos domésticos. É por isso que a mulher negra não luta para ter o direito de trabalhar, pois isso já nos impuseram a fazer desde sempre. Nossa luta é para que tenhamos o acesso a espaços monopolizados pela classe mais privilegiada e dessa forma possamos fazer uso dos instrumentos acadêmicos que possibilitam a mobilidade social e o engrandecimento pessoal da mulher negra.
Daí é que se descortina toda a pertinência da temática, já que é uma conquista significativa e substanciosa dos pontos de vista político, histórico, social e pessoal para esta mulher historicamente oprimida, violentada e explorada, seu ingresso em um curso de nível superior reconhecidamente elitista assim como o Direito. Já escutei, inclusive, várias pérolas a respeito disso ao longo da minha trajetória: “Faculdade de Direito não é coisa para neguinha” e “Quem nasceu para o trabalho duro não deveria se aventurar em fazer Direito”…
Eu até entendo (mas não aceito, é claro!) as observações apontadas, uma vez que ser mulher, negra, pobre e, ainda por cima, aluna do curso de Direito em instituição de ensino público federal –por si só – já é uma tremenda afronta ao orgulho dessa sociedade racista!
E ainda haverá quem fale: “Amanda Beatriz, que exagero; isso é só pode ser piada de mau gosto!”. E eu então lhe responderei: “Lamento profundamente, mas, ainda nos dias de hoje, encontramos pessoas com este tipo de pensamento. Isso é mais recorrente do que se imagina e só alguns dos casos extremos de racismo ganham visibilidade nos grandes meios de comunicação. Os episódios que a gente ouve no noticiário são apenas a ponta do iceberg”.
Em 1984, Luislinda Valois Santos, neta de escravos, filha de mãe lavadeira e costureira e de pai motorneiro de bonde, tornou-se a primeira juíza negra do Brasil. Proferiu, em 1993, a primeira sentença brasileira contra o racismo na qual condenou o supermercado Olhe Preço a indenizar a empregada doméstica Aíla de Jesus, acusada injustamente por furto. O futuro, por sua vez, se delineou na vida da magistrada Luislinda a partir de um acontecimento bastante emblemático em sua trajetória pessoal.
Anos atrás, em uma escola de Salvador, uma menina negra de nove anos não pôde comprar o material de desenho conforme o determinado pelo professor. Para que melhor seja entendido por todos, o episódio ocorreu mais ou menos assim:
Professor: – Mais isso não foi o que eu pedi!
Luislinda: – Bom, isso foi o que meus pais puderam comprar.
Professor: – Menina, se seus pais são tão miseráveis assim, vou lhe dar um conselho: pare de estudar e vá aprender a fazer feijoada na casa da branca. Você será mais feliz.
A garotinha da nossa história correu para o pátio, chorou, enxugou as lágrimas, retornou para sala de aula e disse ao professor:
- Não vou aprender a fazer feijoada na casa da branca. Vou ser juíza e voltar aqui para prender o senhor!
Dito e feito. A primeira parte da declaração profética, ela cumpriu. Aos 39 anos, Luislinda formou-se em Direito pela Universidade Católica de Salvador – UCSAL. Em 2009, A magistrada lançou seu primeiro livro: “O negro no século XXI”. No ano de 2011, depois de oito anos de espera e às vésperas de completar 70 anos, foi promovida a desembargadora titular do Tribunal de Justiça da Bahia. Quando indagada sobre a existência do racismo no Brasil, em entrevista concedida à Revista Visão Jurídica, a juíza declarou: “Quem quiser saber o que é ser negro, fique negro por apenas 24 horas”. Esta é sua máxima para quem duvida que ocorra discriminação racial no país.
Já com relação ao Judiciário, eis algumas considerações importantes de Luislinda:
1) Em 2009, na reportagem da Revista Visão Jurídica:
- O Judiciário é preconceituoso? Por quê?
- O Judiciário não é preconceituoso, apenas nos seus quadros existem, como em todas as esferas, profissionais preconceituosos.
Vale dizer que o Judiciário brasileiro não tem o histórico de grande número de magistrados negros integrarem seus quadros. A situação fica mais difícil quando constatamos que durante a sua existência, pelo menos que eu saiba, nenhum Tribunal pátrio teve um presidente negro, mas já é perceptível que a situação está mudando até porque o negro está mais unido e lutando pelos seus direitos, sem esquecer suas obrigações e deveres.
Todavia, quero crer que muito em breve teremos mais negros não apenas ocupando espaços de execução e apoio mas exercendo cargos de ministros de Estado, presidentes de Tribunais, governadores, prefeitos, presidentes da República, senadores, executivos de empresas multinacionais, procuradores etc., até porque também somos competentes; falta-nos apenas oportunidade. O Judiciário está mudando. Aqui, ali e alhures já nos deparamos com magistrados negros (ministros, desembargadores, juízes) atuando nesse grandioso e indispensável Poder.
2) No IV Congresso Estadual dos Servidores do Judiciário, promovido em Porto Alegre, em 2011: “É o Poder menos democrático. Não evolui em termos da democracia que vivenciamos hoje no Brasil. Há uma orquestração de inclusão no Brasil, mas isso não aconteceu no Judiciário”.
3) Em entrevista concedida ao Portal R7 Notícias, em 08/03/2014:
“Nos Tribunais, os cargos de comando são ocupados por homens brancos e de famílias tradicionais e, eu sou negra, pobre, periférica, nordestina, e divorciada. Foi muito difícil pra mim”. O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) determinou que a juíza baiana Luislinda Valois fosse promovida ao cargo de desembargadora do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA). O CNJ utilizou como argumento principal o critério de antiguidade para a concessão da promoção. O relator do caso, Jorge Hélio Chaves de Oliveira, e todos os demais conselheiros decidiram de forma unânime em prol do requerimento.
“Para ser desembargadora eu tive que recorrer a um processo junto ao CNJ. É difícil ser negra neste país, a situação é muito difícil”. Na sequência, a desembargadora Luislinda Valois ainda disse que para a mulher conquistar um espaço com visibilidade na sociedade, ela precisa ousar e lutar pelos seus direitos.
Concluo, então, mediante a conjuntura esmiuçada ao longo do texto, que em se tratando da mulher negra e estudante de Direito, é perceptível já ter havido alguma evolução na inserção desta mulher no bojo institucional forense. Entretanto, apesar dos passos largos dados na direção ao empoderamento da mulher negra, ainda assim, identificamos muita estrada pendente por avançar.
A despeito da dificuldade e dos diversos obstáculos: culturais, sociais, econômicos e políticos que se impõem – sendo todos estes fatores, consequências diretas do andar da carruagem histórica – a mulher negra, a cada dia, luta com afinco para conquistar o seu espaço na sociedade.
Embora o Direito possua – em seus domínios de existência – uma essência subjetiva e extremamente conservadora, sendo, portanto, bastante refratária a mudanças; muitas de nós, mulheres negras, temos logrado êxito nos embates políticos em prol de nossa inserção no arcabouço do Judiciário.
Por fim, gostaria de destacar que o grande desafio e principal objetivo é a “conquista” do nosso lugar nas Escolas de Direito. Desejo faculdades mais plurais, inclusivas e coloridas. Quero centros de produção do saber jurídico onde existam muitas Luislindas Valois, Amandas Beatrizes, Alessandras Gabriellas, Marjores Janis, Márcias Vasconcelos, Stephanies Ribeiro, Mônicas Gonçalves, Anas, Ritas, Marias e Franciscas e não apenas um ou outro caso isolado. Desejo ver empoderadas todas as mulheres negras universitárias e aqui, em especial, as negras do Direito. Sonho com o futuro próximo em que mulheres negras sejam respeitadas e protegidas no pleno exercício do seu direito social à educação.


Amanda Beatriz
É estudante de Direito; negra em construção; mulher em intenso processo de individuação; humanista por excelência e partidária inveterada de um mundo em que todas as pessoas, sem distinção, sejam respeitadas em sua plenitude de autonomia e escolha.


segunda-feira, 19 de maio de 2014

Reforma do sistema político: para onde vamos?



buscado no Produto da Mente





por José Antônio Moroni

Não é de hoje que muitas organizações e movimentos discutem a questão da reforma do sistema político. Esta é uma agenda que permeia muitas organizações e discussões. Mas, assim como para os partidos, Executivo e Congresso, não era uma agenda prioritária até agora. Era a segunda prioridade. Algo mudou no último período. Esta mudança de postura foi construída ao longo dos tempos e passou por várias etapas.

Primeiramente era necessário desconstruir a ideia rasa que reforma política é o mesmo que reforma eleitoral e que dizia respeito à “vida dos parlamentares”. Portanto, os sujeitos políticos reconhecidos para este debate eram os parlamentares e no máximo os partidos e o único “lugar” para o debate era o Congresso Nacional. Esta concepção de reforma política foi aos poucos sendo substituída pelo conceito de reforma do sistema político. Sistema político envolve todos os processos decisórios, portanto é uma discussão sobre o poder, sobre mecanismos disponíveis para o exercício do poder e instrumentos existentes para controlar o poder e quais os sujeitos políticos reconhecidos para o exercício do poder.

Neste sentido abordar a temática da reforma do sistema político significa tratar de todas as formas de poder, tanto na esfera privada como na pública. Com isso incorporamos no debate questões que estruturam os processos de desigualdades no Brasil, as dimensões de classe, sexo, cor da pele, etnia e desejos sexuais.

Foi necessário também ter um olhar mais apurado para o nosso sistema político e identificar quais são as grandes questões que queremos enfrentar. Nesta leitura chegamos a conclusão, segundo as palavras do Prof. Fabio Comparato, que temos uma democracia sem povo. Isso é, os nossos processos democráticos não são alicerçados na soberania popular. Então, onde estão alicerçados? No poder econômico e na reprodução das desigualdades. É a velha forma, poder gera mais poder, que gera mais desigualdades. É uma ciranda que se auto-alimenta. Não é por acaso que temos um sistema onde as elites sempre estão no poder ou o poder está a serviço delas. Precisamos romper com esta “roda viva” que na verdade é a morte da soberania popular, portanto do poder popular. Um retrato disso é a subrepresentação nos espaços de poder de vários segmentos, como por exemplo, mulheres, população negra, indígena e homoafetiva, a juventude das periferias, a população camponesa, entre outros.

Temos um poder masculino, branco e proprietário.

Esta leitura do nosso sistema político nos leva a interrogações. Qual a institucionalidade que sustenta um sistema tão perverso e desigual? Que razões históricas, econômicas, sociais e culturais nos levaram a isso? Temos um arcabouço institucional que é incapaz de processar as grandes transformações desejadas pela sociedade. Isso ficou evidente não só com as manifestações de junho do ano passado. A institucionalidade que temos nos levou até aqui, teve condições de processar algumas demandas, principalmente as que vivemos no período pós-Constituição de 1988, mas é incapaz de processar grandes transformações.

Estamos num impasse: para  avançar precisamos criar outras institucionalidades democráticas. Por quê? Porque nunca tivemos na nossa historia política força suficiente para provocar rupturas. Sempre saímos de um “período histórico” para outro através da conciliação e não de rupturas. E esta conciliação sempre foi feita tendo como sujeito político hegemônico as forças conservadoras e as elites. Foi assim com a “independência do Brasil”, com a “abolição” da escravidão, com a proclamação da Republica, chegando a saída da ditadura militar, onde a hegemonia do processo foi das próprias forças que apoiaram o ditadura. Portanto criar novas institucionalidades significa romper com este passado conciliatório e provocar rupturas no sistema político.

Com esta avaliação do nosso sistema político, como funciona e as questões que queremos enfrentar, formulamos duas grandes estratégias políticas que se complementam, mas que apresentam horizontes políticos diversos. Uma é a Iniciativa Popular pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas e a outra é o Plebiscito Popular pela Convocação de uma Assembleia Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político.

A iniciativa popular é organizada pela Coalizão pela Reforma Política, que promoveu um processo de dialogo e unificou a proposta da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político e a do Movimento de Combate a Corrupção Eleitoral (MCCE). A iniciativa popular é um instrumento da democracia direta previsto na Constituição e tem uma serie de exigências, como por exemplo: obter perto de 1.500.000 assinaturas; não pode apresentar propostas de mudança constitucional; tem que ter o numero do titulo eleitoral, etc. Mas ela consegue, mesmo com estes limites, enfrentar questões importantes e estruturais do nosso sistema político, como o peso do poder econômico nas eleições, a sub-representação de vários segmentos no parlamento, fortalecer os instrumentos da democracia direta e criar mecanismos democráticos de controle e fiscalização do processo eleitoral.

A iniciativa popular é uma estratégia que se propõe atuar em um tempo político mais curto, isso é, mobilizar a sociedade para forçar que este Congresso aprove uma reforma política que responda aos anseios de amplos segmentos da sociedade. Como a Iniciativa popular faz isso? Na questão do financiamento propõe mecanismos democráticos proibindo o aporte de recursos por parte das empresas. As eleições passariam a ser financiadas com recursos do orçamento público, de contribuições de pessoas físicas. Tudo isso com limites e como estratégia de democratizar o processo, combater a corrupção, limitar e baratear os custos das campanhas. Propõe um sistema de escolha dos/as representantes em dois turnos. Os partidos elaboram de forma democrática listas partidárias com alternância de sexo e critérios de inclusão dos demais segmentos sub-representados. O primeiro turno visa definir quantas cadeiras no parlamento o partido vai ter. No segundo turno participa o dobro de candidatos e o/a eleitor/a vota no nome de seu representante. Para fortalecer a democracia direta propõe que determinados temas só possam ser decididos por plebiscitos e referendos, como por exemplo: grandes projetos com grandes impactos socioambientais, privatizações, concessões de bens públicos, megaeventos com recursos públicos, entre outros. Para conhecer na integra a proposta da  Iniciativa Popular acessar: WWW.reformapoliticademocratica.com.br

Já o plebiscito popular abarca três estratégias: trabalho de base, formação política e discussão ampla com a sociedade. Busca-se debater a institucionalidade que temos e a que queremos (sistema político) e o lócus político para se fazer esse debate é a convocação de uma Assembleia Constituinte Exclusiva e Soberana. Neste sentido o horizonte político do plebiscito popular é mais longo prazo, é de acumular forças na sociedade para poder provocar as rupturas que precisamos. Neste sentido é importante o processo de conquista de uma Assembleia Constituinte Exclusiva e Soberana. Esta mesma demanda por uma Constituinte Exclusiva e Soberana esteve presente em 1985. Mas, não tivemos força política suficiente para torná-la realidade na ocasião e tivemos uma Constituinte Congressual (o Congresso que fez), sem soberania (pois estava subordinada a vontade do executivo, dos militares e do poder judiciário). Em outras palavras, para provocar as rupturas que precisamos, urge criar novas institucionalidades onde o alicerce do poder é a soberania popular, onde o poder constituinte seja a próprio poder popular. Para ter acesso ao debate do  
http://www.plebiscitoconstituinte.org.br/
Como percebemos não tem contradição entre as duas estratégias e ambas procuram criar novas institucionalidades capazes de provocar as transformações estruturais que tanto precisamos.



*José Antônio Moroni, membro do INESC e da Plataforma dos Movimentos Sociais da Reforma do
Sistema Político

 

Raul Pont: Pelo fim de eleições decididas pelo poder econômico



buscado no Aldeia Gaulesa



Estamos num momento crucial da vida política brasileira. Em poucos meses, teremos eleições. Provavelmente, o pleito será regido pela mesma legislação que permite o financiamento de pessoas jurídicas nas campanhas eleitorais e, consequentemente, permite esse processo vergonhoso de corrupção, de compra de voto, de financiamento pelos grandes grupos econômicos que estabelecem, de maneira escancarada, a cooptação e o controle sobre parlamentares.
Pelas declarações no TSE das eleições de 2010, foram a mais de R$ 4 bilhões os financiamentos (doações) aos candidatos para o processo eleitoral. E candidatos escolhidos a dedo. Não é dinheiro que vai para o partido, que o distribui como quer. Não. Os financiamentos são dados por escolha direta das empresas aos candidatos. Hoje, mais de 70% dos deputados que estão na Câmara Federal, foram eleitos porque estavam entre as campanhas mais caras nos seus Estados.



domingo, 18 de maio de 2014

A VOLTA DO IMPÉRIO DO MEIO

buscado no Gilson Sampaio 

 

por Mauro Santayana

(Hoje em Dia) - Técnicos do Banco Mundial anunciaram, em estudo divulgado na semana passada, que a China acaba de ultrapassar os EUA em poder paritário de compra, como a maior economia do mundo.
Os chineses costumam dizer que “não interessa a que velocidade você caminha, mas sim, para onde está andando”.
Para o Brasil, quinto maior país e sétima economia do mundo, a inevitável ascensão chinesa, agora voltada para ultrapassar os EUA em PIB nominal, e, um dia, alcançá-lo em tecnologia, defesa, e, com menor desigualdade, em renda, traz inúmeras lições.
A mais importante delas é até onde se pode chegar com um projeto de país baseado no nacionalismo – e não no proverbial entreguismo vigente em nosso país nos últimos 20 anos.
O Estado chinês não financia capitais externos, a não ser que a eles se associe majoritariamente. Ciente da importância de seu mercado interno - convenientemente fechado por muitos anos - ele não empresta dinheiro público para que marcas de automóveis estrangeiras se instalem no país. No lugar disso, compra participação em suas matrizes. E faz isso em todos os setores da atividade econômica.
Seu bem sucedido projeto de desenvolvimento está baseado na presença – serena e incontestável - do estado como proprietário de meios de produção e elemento indutor na economia, em parceria com capitais locais e o capital estrangeiro, que tem que se contentar com um papel secundário no processo, a não ser que queira ficar de fora de um dos maiores mercados do mundo.
Os chineses sabem que de nada adianta industrializar o país e modernizar a economia, se os lucros voarem, todos os anos, para o exterior, como as andorinhas. Afinal, países não são poderosos apenas pelo que produzem, mas também pelo que consomem. Ao ultrapassar os Estados Unidos como o maior mercado do mundo, embora ainda não seja o maior importador, a China dá gigantesco passo rumo ao futuro.
Nos últimos quatro mil anos, a maior parte do tempo, os chineses estiveram à frente da maior economia. A diferença é que - fechados dentro de si mesmos - seus dirigentes encaravam o resto do planeta como bárbaros e sem o refinamento e a educação de sua cultura. Coo nações  interessadas em invadir e destruir seu império, como o “ocidente” fez tão logo pôde, implacável e solerte, em defesa, entre outras causas edificantes, do tráfico de drogas pela Coroa Britânica, que deu origem às Guerras do Ópio.
A diferença entre o Império do Meio de antes e o Império do Meio de hoje, é que a Revolução Maoísta abriu a porta para transformar os camponeses em operários, e, até mesmo, em milionários e empreendedores. Além de que o espaço natural para seus produtos e negociantes, estava, antes, quase sempre, cercado pelas sinuosas curvas da Grande Muralha, enquanto, agora, os limites da influência da Nova China avançam para se transformar, cada vez mais, nos próprios limites do mundo.