sexta-feira, 30 de setembro de 2011

ESTUDOS SOBRE A GANÂNCIA

Mauro Santayana

Em 1899, o jovem Frank Norris escreveu cortante romance sobre a ganância. Não era a primeira vez que se ocupava do capitalismo selvagem e audacioso, que crescia no território americano. Já escrevera sobre o conflito entre as empresas ferroviárias e os agricultores, cujas terras eram invadidas pelos trilhos, sem indenização justa. E em Octopus fizera o libelo contra os trustes e monopólios empresariais que se formavam naquelas décadas. Jornalista, educado em Londres e em Paris, tendo sido correspondente na África do Sul, Norris era um desses homens que combinavam a inquietação intelectual com a ação prática da vida. Entre outros, de seu mesmo nível e da mesma época, foram Jack London e Theodore Dreiser. Norris morreu aos 32 anos, em 1902.
O livro, McTeague, narra a história de dois amigos gananciosos. Um deles, falso dentista, rouba a noiva do companheiro, apropria-se do dinheiro da mulher e a mata. Perseguido pelo outro, os dois entram em luta, no Vale da Morte, e ambos morrem. A obra foi tão importante que Erich Von Stroheim a filmou, em 1924, com o título de Greed e, com tal interesse, que a versão original era de dez horas de projeção. Von Stroheim não escondeu a relação da obra com o capitalismo dos anos 20, também feito de fraudes bancárias, especulação criminosa nas bolsas, de brutal desigualdade social, economia globalizada, causas da Grande Depressão dos anos 30.
Durante as três últimas décadas, sem o eufemismo dos teóricos antigos, a máxima de Wall Street é a de que “greed is good”. A ganância é, em suma, a lei do maior lucro. Há, sem embargo, diferença considerável entre o capitalismo industrial do passado e o capitalismo financeiro de nossos dias. A eficiência do sistema exigiu, em determinado momento, que as famílias confiassem a administração de seus negócios aos profissionais. Ainda assim, manteve-se a cultura de empresa familiar, da qual o fordismo foi o grande exemplo, ao vincular o trabalhador à indústria. Em nosso tempo, as grandes empresas, os conglomerados “industriais” já nada produzem, salvo poucas exceções. São apenas instituições proprietárias de marcas e, eventualmente, de patentes, controladas pelo capital financeiro, que terceirizam tudo e praticamente não têm empregados próprios, a não ser privilegiados executivos, da mesma forma intercambiáveis e descartáveis. A pesquisa tecnológica, o design dos artigos, a ação de marketing, a produção, a distribuição - tudo é terceirizado. Da mesma forma, essas empresas terceirizadas, terceirizam as operações menores. O pessoal de limpeza e de vigilância procede desses fornecedores de mão de obra, que se assemelham aos donos de escravos de ganho, conhecidos no Brasil do passado.
Ao fragmentar-se a operação, o trabalho deixa de ser socializado, o trabalhador perde a capacidade de resistência: não há mais o companheirismo, base essencial a um sindicalismo sólido e aguerrido. Isso agrava ainda mais a alienação denunciada por Marx, principalmente em sua melhor e mais concisa obra, os Manuscritos Econômicos-Filosóficos de 1844. Nesse texto, Marx encontra a chave do sistema: “As únicas forças propulsoras reconhecidas pela Economia Política são a avareza e a guerra entre os gananciosos, enfim, a competição”.
Norris fora influenciado por Émile Zola, com seus romances naturalistas e sociais, e serviria de inspiração a três ou quatro gerações de escritores, fiéis às denúncias contra as injustiças sociais. Depois de Faulkner e Steinbeck, coincidindo com o fim da guerra, o capitalismo administraria também a literatura, mediante as grandes editoras, que publicam best-sellers, mas raramente obras comprometidas com a realidade do mundo e o humanismo. Isso explica, em parte, a impunidade dos criminosos de colarinho branco.
Henry Ford desprezava as cotações das ações em bolsa. Seu argumento era o de que o valor real de seus ativos não se alterava com a especulação dos indolentes, que viviam de negociar papéis. Ele sabia o valor de cada um de seus negócios – valor real e concreto. Aconselhava a outros empresários que não perdessem o sono com a oscilação do mercado. Suas empresas, talvez mesmo em razão disso, foram das que menos sofreram com a grande depressão dos anos 30. O grande fabricante de automóveis, não obstante as suas posições políticas discutíveis, percebeu a importância do trabalho na prosperidade dos negócios. Para ele, a sua mercadoria – o automóvel – devia estar ao alcance de seus operários. Como não podia baixar mais ainda o preço dos carros, elevou o salário dos trabalhadores, e lhes vendeu automóveis a prestações alongadas.
Anteontem, o New York Times noticiou que, não obstante a crise bancária, que ainda continua, os executivos financeiros tiveram, em 2010, substancial aumento em seus ganhos. Jammie Dimon, do JP Morgan, que havia recebido US$1.300.000 em 2009, teve sua remuneração aumentada para US$ 20.800.000 no ano passado – apesar de o grande banco continuar perdendo dinheiro. TIM Armstrong, da AOL, recebeu US$ 15,300.000 (40%) de aumento, e sua empresa continua operando no vermelho. A lista é grande. Enquanto isso, os Estados Unidos enfrentam uma dívida de quase 15 trilhões de dólares, com o déficit anual de mais de um trilhão, e o desemprego chegou a 9%, o que é um exagero para os padrões norte-americanos.
A ganância cega os homens. O que pode fazer Jammie Dimon com mais de vinte milhões de dólares por ano? Mais alguns milhões de dólares, é certo. Rico com sua arte, Chaplin, em sua autobiografia, despreza os grandes ganhos, com o argumento de que, a partir de certas cifras, o dinheiro perde a sua relação com a realidade: um homem não pode vestir dois ternos, nem calçar dois pares de sapatos, nem viver ao mesmo tempo em duas casas.
Aumentam as advertências contra a insânia da economia mundial, ditada pelos banqueiros aos governos, que eles financiam e comandam. Não são apenas os pensadores de esquerda. Paul B. Farrell, reputado economista e ex-diretor do banco de investimentos Stanley Morgan, é hoje colunista do Wall Street Journal, o diário do mercado de capitais dos Estados Unidos. Em artigo recente, que El Pais reproduziu ontem, Farrell adverte que se os ricos não pagarem os impostos necessários, que sirvam para financiar a retomada da produção e o pleno emprego, com salários justos – isso no mundo inteiro – uma revolução será inevitável. A desigualdade, nos Estados Unidos, é hoje mais grave do que em 1929 – e o fosso entre um por cento dos grandes ricos e os 99% restantes da população se tornou insuportável. Os ricos, no entanto, se movem no plano da ilusão. Eles vivem em ambientes seguros, guardados por mercenários; têm os melhores médicos e hospitais, freqüentam os melhores restaurantes, vivem em outro mundo. Vivem – diz Farrell – como os opulentos dirigentes dos países árabes, sem qualquer preocupação: bem seguros em seus palácios, com a família vivendo no fausto, felizes e distantes da realidade. Mas, tal como ocorreu no Egito, bastará uma pequena fagulha, para o incêndio revolucionário. Farrell relembra os anos loucos, os twenties, que levaram Fitzgerald a redigir o romance-inventário daquela época, The Great Gatsby. Farrell termina de forma profética, ao dirigir-se aos 99% dos outros americanos: não digam que não foram advertidos. Preparem-se para a revolução, ou para outra Grande Depressão. E, desta vez, sem Roosevelt, acrescentamos nós.
Em seu excelente estudo sobre a falta de sentido da economia moderna, baseada na ganância, Greg e Paul Davidson (pai e filho) fazem inquietante pergunta: o que difere o amor da prostituição? E respondem: o amor não tem valor de mercado. Se o amor tiver valor de mercado, podemos concluir que não se trata bem daquele sentimento que une homens e mulheres, por exigência da vida.
A sociedade não pode impedir o lucro, ou seja, a vantagem relativa obtida na troca de bens, com ou sem a intermediação da moeda, esta invenção engenhosa, que “torna iguais as coisas desiguais”, de acordo com Aristóteles (ou o pseudo-Aristóteles, de acordo com alguns autores). A sociedade organizada em estados políticos não só pode, como deve, opor limites à ganância do mercado. Entre outras razões para que os homens criassem o Estado, destacou-se a necessidade de que se impusesse a justiça. Não havendo a consciência de solidariedade, por parte de alguns, as primeiras comunidades criaram sistemas de coerção, que se desenvolveram até chegarem às complexas formas constitucionais modernas.
Um ano antes da Revolução Francesa, o abade Sieyès publicou incitante estudo – “Essai sur les privilèges”, com algumas idéias que seriam o grande motor teórico da Assembléia Constituinte. Nesse estudo, Sieyès vai ao ponto, ao afirmar que as leis garantem os privilégios que deveriam extinguir. A razão é que os legisladores, quase sempre ricos, tratam de se proteger, de assegurar suas vantagens. O controle da moeda é o principal instrumento para promover a justiça ou servir à opressão. Durante séculos seguidos, a moeda vinha sendo emitida pelos estados, qualquer fosse seu sistema, garantida por bens imperecíveis, como os metais. Mesmo assim, a moeda se funda na confiança atribuída aos que a emitem. É uma questão de fé.
O grande homem público dos Estados Unidos, no processo da independência, Roger Sherman, é autor de estudo contra o uso do papel moeda – ou de documentos nele baseados – como meio de pagamento. Ele só admitia um único meio, o metálico, em ouro ou seu equivalente em prata. Sabiamente, ele não confiava nos banqueiros. Sua lucidez, em todos os assuntos de que tratou, foi reconhecida por Jefferson, com o juízo definitivo: Mr. Sherman, de Connetticut, é um homem que jamais disse alguma coisa tola, em toda a sua vida.
Os Estados Unidos se tornaram o único país que emite meios internacionais de pagamento, desde 1944, com o encontro de Bretton Woods, quando o dólar foi reconhecido como moeda internacional – teoricamente garantido por ouro ou prata. Em 1972, Nixon mudou as regras do jogo. Com a crise do petróleo, e a fácil previsão de que o FED emitiria bilhões a fim de compensar, com a inflação, a alta do preço do combustível, houve pressão dos portadores de créditos em dólares para receber em ouro, e os Estados Unidos declararam que não mais honrariam seus bilhetes com os metais, mas sim, com os ativos nacionais, que são, como qualquer um pode concluir, intransferíveis.
Calcula-se que circulem, hoje, no mundo, mais de 600 trilhões de dólares, em moeda e em títulos norte-americanos (a maior parte deles, nos famosos “derivativos”, que trocam de dono centenas de vezes por dia, nas especulações cambiais): quarenta vezes o PIB dos Estados Unidos. Quem ganha com isso é o sistema financeiro internacional, dominado pelos estelionatários de Wall Street, de que é modelo Mr. Madoff.
Greg e Paul Davidson, em seu livro, dão o exemplo de economia solidária na reação dos homens diante das grandes catástrofes - como as inundações, os terremotos, as epidemias. O sistema financeiro internacional é mais do que terremoto, tsunami ou epidemia. Seus interesses movem as guerras, determinam o desenvolvimento tecnológico que lhes serve, destroem a natureza e pervertem os homens. Até que o instinto de sobrevivência da espécie nos salve.

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