sexta-feira, 7 de junho de 2013

Henfil: “Isto não é um papel histórico, isto é um Modess…”


buscado no Gilson Sampaio 

 

Sanguessugado do Boitempo

O humor de Henfil contra quem oprime

13.05.05_Henfil

Dênis de Moraes*

Para Janio de Freitas

Este artigo relembra o momento marcante do cartunista Henfil (1944-1988) no veículo pioneiro da imprensa alternativa dos últimos decênios, o saudoso semanário Pasquim. Foi lá, em plena ditadura militar, que este notável artista do traço se projetou nacionalmente viveu uma das fases mais criativas da carreira. O seu humor debochado, cortante e feroz se ajustou como uma luva ao espírito indomável de um jornal que desafiava a cara feia de censores e ditadores e sabia, a cada edição, aquecer nossas esperanças e utopias. Entre Henfil e Pasquim houve a junção das forças demolidoras do sarcasmo e da ironia para “oxigenar as mentes oprimidas pelo pesadelo diuturno da boçalidade ditatorial”, como magistralmente definiu Janio de Freitas no prefácio de meu livro O rebelde do traço: a vida de Henfil.
Além do espaço precioso para dar vazão ao inconformismo com as injustiças e preconceitos sociais, Henfil ressaltava sempre o valor das transformações de linguagem, de estilo e de conteúdo que o semanário introduziu na cena jornalística. “O Pasquim foi a Lei Áurea da imprensa”, avaliaria em depoimento a Jorge Ferreira (GAM, julho de 1976). “O jornal modificou a linguagem; a gente podia escrever e desenhar de uma maneira muito pessoal – foi essa a chave do negócio – e muito irreverente. Tínhamos liberdade para usar palavrões, se fosse o caso, nos textos. O Pasquim ousava na crítica política no momento em que a imprensa estava toda calada, e fazia crítica de costumes. Era um exercício muito grande de democracia: ninguém pensava igual ao outro, ninguém concordava com ninguém (…), houve, inclusive, grandes paus dentro do próprio jornal.”
Mesmo censurado pelo regime e acossado, até a asfixia, por dificuldades financeiras, o Pasquim impôs-se pela imaginação incontrolável e por alvos claros: a ditadura, a classe média moralista, a imprensa reacionária, os coniventes de plantão. E ainda ocupou o vácuo existente entre a cultura oficial e a tradição de esquerda, discutindo modos de vida, padrões de comportamento e até ecologia. A diagramação valorizava ilustrações, desenhos, caricaturas e montagens fotográficas. As frases no cabeçalho da capa aturdiam: “Pasquim, ame-o ou deixe-o”, “Um jornal que tem a coragem de não se definir”, “O papel da grande imprensa: papelão”, “Imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”.
Henfil começou a destacar-se na galáxia de gênios do Pasquim (Ziraldo, Jaguar, Millôr Fernandes, Fortuna, entre tantos outros) com as tiras da dupla de frades dominicanos Baixinho e Cumprido. A série havia sido publicada originalmente de julho a dezembro de 1964, na revista Alterosa, em Belo Horizonte, quando o cartunista tinha 20 anos. O diabólico Baixinho arrastava o comedido Cumprido em suas estripulias nada puritanas. Chutavam latas de lixo pelas ruas; tocavam campainha nas casas e saíam correndo; cuspiam nos pedestres que passavam embaixo das árvores em cujos galhos se escondiam.

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Os contornos dos Fradinhos espelhavam um conflito de personalidades que, na realidade, era do próprio Henfil: o lado careta, carola e conservador, representado por Cumprido; e o lado revolucionário, anarquista e utópico, encarnado pelo Baixinho. O primeiro herdado da formação familiar mineira e católica; o segundo inspirado na pregação libertária dos dominicanos e agudizado pela consciência de viver numa sociedade de desigualdades e imposturas.
No Pasquim, Henfil injetou uma overdose de sadismo no Baixinho, reforçando-lhe a índole anárquica. A marca indelével era o gesto obsceno da mão esquerda fechada, formando o punho, e a direita, espalmada, batendo sobre a esquerda. O efeito sonoro – “top, top, top” – equivalia a uma maneira pouco ortodoxa de dizer que o outro estava ferrado. Sem abdicar do hábito dominicano, Baixinho atropelava os mais transcendentes pruridos. Tirava meleca e grudava no corrimão da escada; colocava casca de banana para alguém se arrebentar no chão; atraía um esfomeado cãozinho com um osso e o abatia com um porrete; empesteava um velório com uma essência fétida para espantar os amigos do morto, esperava uma criança na descida do escorrega com uma gilete… A cada crueldade, inacreditavelmente sorria.
Outra etapa culminante de Henfil no Pasquim foi o Cemitério dos Mortos-Vivos, por ele idealizado no auge da repressão do governo do general Médici. Nele, o cartunista enterrava, com sete palmos de desacato e desprezo, personalidades que, a seu juízo, colaboravam ou simpatizavam com a ditadura, se omitiam politicamente ou eram porta-vozes do conservadorismo. Nessa espécie de “tribunal da causa justa”, Henfil pôs a nu cumplicidades, falhas de caráter, oportunismos de toda ordem e desvios ideológicos. Ele não chegou a explicitar os critérios para expor determinadas figuras à condenação ético-política. “Caráter não dá cupim”, era a sua frase favorita ao exigir máxima coerência das pessoas.
A relação das celebridades enterradas no Cemitério foi extensa e eclética: os cantores Wilson Simonal e Don e Ravel; o dramaturgo Nelson Rodrigues; o sociólogo Gilberto Freyre; os economistas Roberto Campos e Eugênio Gudin; o ensaísta Gustavo Corção; os escritores Rachel de Queiroz e Josué Montello; os apresentadores de TV Flávio Cavalcanti, Hebe Camargo e J. Silvestre; o técnico de futebol Zagalo; os jornalistas David Nasser e Samuel Wainer; os compositores Sérgio Mendes e Carlos Imperial; o maestro Erlon Chaves; o humorista José de Vasconcelos; os bispos direitistas Dom Vicente Scherer e Dom Geraldo Sigaud; o presidente da Confederação Brasileira de Desportos e depois da Fifa, João Havelange; parlamentares da Arena, o partido da ditadura; os atores Jece Valadão e Bibi Ferreira; o conjunto Os Incríveis; o fotógrafo Jean Manzon; o líder integralista Plínio Salgado; Plíno Corrêa de Oliveira, fundador da Tradição, Família e Propriedade (TFP); o astro de futebol Pelé; o empresário da comunicação Adolpho Bloch; “The Globe” (alusão a O Globo), entre outros.
Dentro e fora do meio literário, houve protestos quando Clarice Lispector figurou entre os Mortos-Vivos. Henfil teria se excedido ao nivelar a escritora, sem vínculos com a ditadura, a papa-hóstias de reconhecida subserviência ao regime. Em depoimento a O Jornal (20/7/73), Henfil tentou justificar o severíssimo (e injusto) castigo imposto à autora de Felicidade clandestina:
“Eu a coloquei no Cemitério dos Mortos-Vivos porque ela se coloca dentro de uma redoma de Pequeno Príncipe, para ficar num mundo de flores e de passarinhos, enquanto Cristo está sendo pregado na cruz. Num momento como o de hoje, só tenho uma palavra a dizer de uma pessoa que continua falando de flores: é alienada. Não quero com isso tomar uma atitude fascista de dizer que ela não pode escrever o que quiser, exercer a arte pela arte. Mas apenas me reservo o direito de criticar uma pessoa que, com o recurso que tem, a sensibilidade enorme que tem, se coloca dentro de uma redoma.”
Clarice, ofendida, fez chegar ao cartunista a sua contrariedade: “Se eu topasse com o Henfil, a única coisa que eu lhe diria é: ouça, quando você escrever a meu respeito, é Clarice com ‘c’, não com dois ‘s’, está bem?”
Outra inclusão que gerou controvérsias foi a da cantora Elis Regina, após ter cantado o Hino Nacional no show de abertura da Olimpíada do Exército de 1972.  Quarenta e cinco dias depois, Henfil emitiu um sinal de que havia se arrependido do vitupério – inclusive porque admirava a intérprete Elis. No número 154, elogiou o novo disco de Elis, com um resquício de mordacidade: “Fiquem certos de uma coisa: Elis Regina é melhor que a Elis Regente!” O episódio foi esquecido pelos dois, tanto que namoraram na década seguinte.

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Henfil edificou jazigos para economistas que se converteram em tecnocratas a soldo do regime; para arquitetos que se aliaram à especulação imobiliária; para medicos e advogados que cobravam fortunas dos clientes; para cientistas que punham os cérebros a serviço da corrida armamentista.
E o que dizer da repulsa de Henfil ao Festival Internacional da Canção (FIC), promovido anualmente pela TV Globo na passagem dos anos 1960 e 1970? Primeiro, ele achava que o festival era uma “armação” da TV Globo para desviar a atenção dos desmandos da ditadura. Segundo, que o evento favorecia a divulgação massiva da música estrangeira, relegando a música popular brasileira à subalternidade.  Henfil considerava adesão ao sistema qualquer participação no FIC – o que o impedia de considerar, por exemplo, que cantores e compositores estavam exercendo seu ofício em evento com similares em vários países, além de prestigiado pelo grande público. Para tripudiar do “Galo de Ouro”, símbolo do FIC difundido pela Globo, Henfil inventou o “Urubu de Prata”, conferido a personalidades da MPB, como Pixinguinha e Chico Buarque.
Em entrevista que me concedeu, o jornalista e escritor Zuenir Ventura relembrou o choque causado na área cultural com o Cemitério dos Mortos-Vivos: “Havia uma quase unanimidade em relação a determinadas pessoas estarem no cemitério, mas em relação a outras, não. Era uma coisa muito forte e agressiva, até irritante.” Para Zuenir, a radicalidade das cobranças de Henfil não pode ser vista como uma mera patrulha, muito menos como uma expressão de ressentimento ou vingança. “Por trás daquele humorista cáustico e radical, havia em Henfil uma pessoa amorosa, incapaz de ódios.” O Cemitério dos Mortos-Vivos, no entender de Zuenir, traduzia “um desesperado, às vezes injusto e extremado gesto de conclamação à resistência democrática”:
“Henfil tinha razão ao achar que vivíamos um período em que não dava para você ficar em cima ou atrás do muro. Era importante, no processo de reconquista da democracia, a mobilização da sociedade civil e da intelectualidade. Henfil sabia que era indispensável ter todo mundo que se opunha à ditadura dentro de um mesmo saudável saco-de-gatos. O que nos levou à abertura? Foi o fato de que se conseguiu dividir o país, maniqueisticamente (e tinha que ser assim), entre as trevas e as luzes, entre o bem e o mal. Hoje, a minha leitura daquele sectarismo aparente do Henfil leva-me a crer que o Cemitério dos Mortos-Vivos embutia uma metáfora: quem não está lutando e resistindo está morrendo ou já morreu. Ele ressaltava essa morte simbólica e nos dizia: precisamos resistir de alguma maneira.”
O próprio Henfil, sem conhecê-la, validou a linha interpretativa de Zuenir Ventura. “Na ditadura, eu acentuava muito a agressividade do humor. Tínhamos que encontrar um jeito de obrigar as pessoas a refletirem sobre o que estava acontecendo.” Aqui e ali, o cartunista cometeu erros de avaliação – mas é indiscutível que muitas de suas estocadas aclaravam a consciência crítica, expunham mazelas das elites e classes dominantes e destilavam indignação cívica contra o colaboracionismo e o adesismo à ditadura. Um humor de combate, fundamentalmente.
Ele odiava o humor pelo humor e arremessava dardos contra o que classificava de “a ditadura do riso, que leva todo mundo a rir de qualquer bobagem”. Em 1985, por exemplo, torpedeou os humoristas do Casseta e Planeta: “Esse pessoal pensa que está fazendo humor. Não está. Eles apelam para o besteirol, com piadas preconceituosas até contra deficientes físicos.”
Para Henfil, o único humor que contribui para o esclarecimento da cidadania é “aquele que dá um soco no fígado de quem oprime”.
Henfil jamais afastou-se do Pasquim. Reaparecia quando menos se esperava. O jornal seguia em instável equilíbrio, como se a qualquer minuto pudesse despencar da corda bamba. Já não pontificava sozinho na imprensa alternativa, pois tinham aparecido o Opinião, o Movimento e o EX para dividir os leitores progressistas. No Pasquim Henfil publicou, em capítulos semanais, os relatos dos dois anos em que viveu em Nova York e da épica viagem à China. Lá criou tipos famosos como o Delegado Flores (um policial que protegia os oprimidos e reprimia os corruptos). Em abril de 1976, lançou Ubaldo, o Paranóico, que refletia os medos coletivos na lúgubre atmosfera de perseguições e violências praticadas pelo governo do general Geisel contra organizações de esquerda, notadamente o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e o Partido Comunista do Brasil (PC do B).
Em 1978, Henfil reaqueceu as vendas do semanário ao abrir polêmica com os baianos Caetano Veloso, Gilberto Gil e Glauber Rocha, aos quais acusava de “alienados” por externarem simpatias, em maior ou menor grau, com a abertura “lenta, gradual e segura” do general Geisel. Na contenda, Henfil cunhou a expressão “patrulha odara” como contraponto às “patrulhas ideológicas”, expressão usada pelo cineasta Cacá Diegues para definir o que ele considerava equívocos de esquerda patrocinados pelo sectarismo ideológico. Os patrulheiros odaras exigiam criações apolíticas e atitudes escapistas.
Nas páginas do Pasquim, Henfil participou das memoráveis campanhas pela anistia ampla, geral e irrestrita, pelo restabelecimento das eleições diretas para governadores e pela convocação da Assembléia Nacional Constituinte. E defendeu a criação de um partido de esquerda combativo e ético, tendo sido depois um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), ao lado de seu amigo Luiz Inácio Lula da Silva e outros companheiros.
A agonia final do Pasquim, na segunda metade da década de 1980, coincidiu com a doença e a morte de Henfil, por complicações decorrentes da Aids, depois de contrair o vírus HIV em transfusões de sangue exigidas por sua condição de hemofílico. Nos derradeiros anos, o ganha-pão de Henfil vinha das charges que publicava diariamente em O Globo e O Estado de S. Paulo. Por ironia, empregos em jornalões que sempre combatera ideologicamente – e nos quais procurou, a todo custo, preservar os conteúdos críticos de seus desenhos.
A eventual válvula de escape era o combalido Pasquim, no qual publicou uma de suas últimas tiras, tão reveladora da genuína rebeldia que caracteriza seu extraordinário legado. Baixinho e Cumprido caminham juntos. Cumprido discursa: “Meu papel histórico é estancar o pus dos sofredores, absorver o sangue dos injustiçados.” Baixinho vira-lhe as costas, rebatendo: “Isto não é um papel histórico, isto é um Modess…”

* Este texto é uma versão revista e condensada de capítulo de meu livro O rebelde do traço: a vida de Henfil (José Olympio, 1996).


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