domingo, 19 de fevereiro de 2012

SEMANA DE 22 E A BRASILIDADE QUE PERDEMOS

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ALGUNS MODERNISTAS DE 22, COM DESTAQUE PARA MÁRIO DE ANDRADE (ABAIXO).

Por Alexandre Figueiredo

Há 90 anos, um simples evento cultural era realizado no Teatro Municipal de São Paulo. Seria um evento como tantos outros, talvez com expressiva repercussão dentro de seu tempo. Mas o acontecimento, que então causou muita controvérsia, ultrapassou os limites geográficos e temporais e influiu na transformação da cultura brasileira do século XX, com reflexos que prevaleceram até meados dos anos 70.

Era um evento que reunia artes plásticas, literatura, música, entre outras expressões. E sabemos que, embora sejam os artistas em idade adulta, o clima da Semana de Arte Moderna mais parecia o de uma algazarra estudantil. Só isso fazia o evento ser transformador, por sua informalidade bastante inusitada para os padrões da época.

Havia nomes hoje bastante famosos, como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Heitor Villa-Lobos, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Patrícia Galvão, a Pagu. Mas houve nomes também hoje meio esquecidos, como Ronald de Carvalho. E outros nomes que depois vieram a constituir o movimento integralista, como Menotti Del Picchia e, sobretudo, Plínio Salgado.

No histórico evento, se reuniam artistas dos mais diversos perfis, em busca de uma linguagem moderna que colocasse a cultura brasileira a par das tendências mundiais. Negava-se a tradição cultural não por si mesma, mas negava-se a hegemonia da tradição como obstáculo para a transformação cultural brasileira.

Embora várias visões tenham se expressado na Semana, duas se destacavam. Uma era a que valorizava as tradições culturais das classes populares, defendida pelo escritor Mário de Andrade. Outra era a tese da "antropofagia", defendida pelo também escritor Oswald de Andrade, que admitia a influência estrangeira como fator de acréscimo para as expressões culturais nacionais.

A Semana de Arte Moderna, antes de deixar seus frutos, causou muita controvérsia. Só a partir de 1930 é que se pensou no legado modernista como elemento fundamental para a modernização e libertação da cultura brasileira, então escravizada pelo galicismo e pelo formalismo extremo da literatura parnasiana.

A partir do movimento do Modernismo, veio uma geração de intelectuais preocupada em zelar pelo nosso patrimônio histórico cultural, produzido e manifesto pelos vários componentes sociais do nosso país, de uma riqueza ímpar e diversificada.

A cultura popular foi bastante beneficiada, porque houve o apoio de intelectuais realmente preocupados com nossa identidade cultural. Mário de Andrade, sobretudo, realizou uma grande turnê pelo país, pesquisando expressões culturais diversas, sobretudo musicais.

O legado modernista ampliou a difusão de movimentos culturais antes ocultados pelo isolamento regional. E a linguagem rica da cultura popular e das manifestações diversas, seja das classes populares, seja de intelectuais simpatizantes, tornou-se soberana até 1964, quando o sentimento de brasilidade foi banido pelos rumos políticos da ditadura militar.

O ANTI-MODERNISMO DA "CULTURA TRANSBRASILEIRA"

Houve resistências, mas o que veio a seguir foi o desmantelamento das identidades sócio-culturais através da indústria cultural. Tendências brega-popularescas vieram, com sua "brasilidade" esquizofrênica, não muito "brasileira", embora também não muito "mundializada".

A cafonice que hoje domina o establishment da chamada "cultura de massa" - embora seus ideólogos ainda insistam que ela está "fora da mídia" - é, na verdade, um amontoado de cacos resultantes das crises sócio-culturais vividas pelas classes pobres. E que, pelo paternalismo intelectual, hoje é tido como "diversidade", embora suas diferenças regionais não sejam essencialmente grandes.

Faz sentido a intelectualidade defender, até com certa agressividade, a cafonice reinante. Há um mercado por trás, há quem fature muito por cima, de donos de casas noturnas a empresários de redes de supermercados. Há também bolsas de patrocínio de grandes capitalistas em jogo. Tudo para que cientistas sociais e críticos musicais criem um discurso que dê a falsa impressão de que o brega-popularesco é o "moderno folclore brasileiro".

Tudo isso teve direito até a Hermano Vianna criar um arremedo de turnê, imitando (mal) o exemplo de Mário de Andrade. E outros "pensadores" seguiram seu exemplo, como o próprio Hermano que seguiu o exemplo do "tradicionalista" do brega, Paulo César Araújo.

Essa intelectualidade é o que há de mais antagônico em relação ao legado modernista (do qual se derivam desde a Rádio Nacional ao ISEB, passando pela TV Excelsior e pelos CPCs da UNE). São intelectuais que, em que pese o discurso "progressista", seguem uma linhagem iniciada por cientistas sociais conservadores do porte de Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort, José Serra e outros.

Juntando a Teoria da Dependência de FHC com o discurso "modernista" trabalhado pelo Tropicalismo, mas distorcido depois com a formação da tal "máfia do dendê" (o sistema clientelista de Caetano Veloso e Gilberto Gil quando passaram a chefiar o mainstream da música brasileira), a cultura brasileira passou a sofrer a hegemonia de uma "visão oficial" que determina a hegemonia absoluta do brega-popularesco, a pretexto da "diversidade" cultural.

E o que se vê é a apropriação de antigos discursos, para justificar a mediocrização cultural dominante. Ver gente com diploma de doutorado e com currículo de grandes entrevistas distorcer e se apropriar de antigas ideias, para justificar coisas que os falecidos intelectuais do passado não apoiariam, é constrangedor.

A título de comparação, uma coisa a refletir. A Semana de Arte Moderna de 1922 foi patrocinada pelo governo paulista da época e pela elite cafeeira. Seu enunciado não presumia um evento tão arrojado e desafiador aos interesses dos próprios patrocinadores.

Por outro lado, os eventos do Coletivo Fora do Eixo de hoje em dia, embora mais "modestos" que a Semana de 22, são também patrocinados pelas elites, e talvez por elites ainda mais ricas e poderosas. E, do contrário da Semana de 22, o FdE é "desafiador" apenas no enunciado, mas no seu processo é mais acomodado com o "sistema". O evento modernista foi o contrário: "comportado" no seu anúncio, tornou-se desafiador e revolucionário no seu processo.

Hoje queremos reencontrar a nossa brasilidade. É difícil, porque o discurso globalizante se lança ferozmente contra até mesmo o mais modesto e flexível nacionalismo. Não podemos ter nossa cara, não temos uma cara, mas podemos ter mil máscaras. Elas são "a nossa cara".

Vivemos a "ditabranda" do mercado, que feito um inseto traiçoeiro interviu na nossa cultura de forma que ele não é visto pela intelectualidade dominante. Esta comemora a "morte" do mercado, apenas por superestimar a queda da indústria fonográfica internacional e da mídia dos "grandes centros". Mas o mercado está ali, ressuscitado milagrosamente a revelia de qualquer retórica.

Desse modo, a tal "cultura transbrasileira" não passa mais do que uma "modernização" neoliberal de clichês banalizados das culturas regionais. Tudo virou uma "linha de montagem", para alimentar o lucro dos grandes empresários a pretexto de "expressão das periferias".

Tudo isso parece neo-modernismo. Mas não é. É mais um anti-modernismo. É o esquecimento das lições de Mário de Andrade e Oswald de Andrade, entre tantos outros, apesar de evocados, bajulados e com suas ideias mal interpretadas.

Só que isso é feito em nome do atual espetáculo neoliberal de bregas, neo-bregas e pós-bregas, que se acham o futuro da cultura popular brasileira. Mas o tempo provará que não, que essa "brincadeira" toda com a cafonice dominante só representa o triunfo do mercado sobre a cultura, o que deixa os barões da grande mídia mais tranquilos.

Para seus ideólogos, a verdadeira cultura popular que se dane.

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