quinta-feira, 24 de abril de 2014

Trêlêlê e democracia

 

buscado no Matutações

 

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Trêlêlê – caso amoroso informal; conversa íntima; namorico

por  Gustavo Lapido Loureiro
Reproduzimos abaixo trecho de uma entrevista dada à Rede Brasil Atual pelo escritor moçambicano Mia Couto para reforçar a mensagem que Matutações há tempos vem martelando: o discurso que reveste a aproximação recente do Brasil com os países africanos, especialmente os lusófonos, é uma construção ideológica com propósitos outros, e corre o risco de se tornar ridículo. [1]
Aproveitamos para incluir também outro trecho da entrevista sobre um assunto menos abordado aqui, mas do qual nos alinhamos igualmente à análise do escritor moçambicano: o significado dos protestos de Junho de 2013.

Segue.

Sobre as relações Brasil-África

No Brasil, há uma grande ignorância sobre o que se passa na África de um modo geral. Como o senhor pensa que deve ser a relação entre Brasil e países irmãos lusófonos, como Moçambique e Angola?
Nós achamos que somos parecidos, mas não queremos levar essa familiaridade até o fim. Ficamos naquilo que é muito formal. E festejamos uma coisa que é muito folclórica. Temos essa ideia de que nossa proximidade se dá, porque falamos a mesma língua e temos uma história comum como colônias. Mas isso é meio mentira. Falamos a mesma língua, sim, com algumas diferenças.
Mas a nossa história é bastante diferente. Fomos colônia de outra maneira. E nos tornamos independentes de outra maneira. É preciso reconhecermo-nos como primos, como parentes, cada um com sua própria história. Agora existe aquela coisa de abraçarmo-nos como irmãos, etc, e de repente, ausentamo-nos completamente, com o pretexto que temos um mundo diverso, com uma posição  geográfica diferente. Não vamos nos tratar como irmãos que se ajudam, mas como irmãos que fazem negócios, com economias que partilham interesses.
A Vale está aqui hoje explorando carvão, e isso não se deve ao fato de Moçambique ser amável e de o Brasil ser simpático. Não nos ajudamos mutuamente. É mais verdadeiro dizer que são interesses econômicos, de ganhos de lucros. Eu não tenho muita simpatia em relação a isso, mas eu prefiro o que é posto em cima da mesa com toda a verdade a um discurso de solidariedade, de uma amizade muito especial, que é falso.

Sobre o significado dos protestos de Junho de 2013 no Brasil

Se essa paz que se alcançou é falsa [2], que tipo de paz pode ser concebida aqui em Moçambique?
É preciso de uma paz que seja ela própria sustentável, que não seja só uma reconciliação de forças políticas, formalmente estabelecida entre dois partidos, mas entre os cidadãos desse país e entre o cidadão e sua própria cidadania, que ainda está em construção. Isso é tudo novo em Moçambique. Muita gente vive no mundo rural e não teve nenhum contato sequer com o Estado. É preciso que Moçambique abrace um modelo de desenvolvimento que seja realmente integrado, participativo, justo e equitativo.
É preciso que haja possibilidade de uma democracia que não seja só formal. Uma democracia viva, que seja vivenciada pelas pessoas, que não vão lá só dar o voto. A crise que Moçambique vive é uma profunda crise para chegar a um modelo de fazer política que já sabemos que morreu, não é? E nós fazemos de conta que está ainda vivo.
A qual modelo de fazer política se refere?
Esse modelo da democracia representativa, com os partidos políticos, os sindicatos e essas coisas. Hoje, nós sabemos que o cidadão tem outra maneira de intervir, não precisa de um partido pra se organizar e sair à rua. Vemos o que aconteceu no seu próprio país em junho do ano passado.

Notas

[1] Reprodução do trecho de um post antigo de Matutações, que sintetiza a nossa posição a respeito das recentes relações Brasil-África:
Recentemente, a burguesia brasileira, a reboque de um suposto discurso anti-hegemônico de cooperação Sul-Sul, tenta aproximar-se dos povos africanos, muitos dos quais fizeram a verdadeira descolonização fanoniana: pegaram em armas e expulsaram o colono.
Este pequeno detalhe deveria agigantar esses países aos olhos de qualquer brasileiro que queira se aventurar em suas terras, e diminuir o ímpeto de uma aproximação que se quer baseada em supostos laços de fraternidade de uma suposta história comum.
Muitos africanos, por mais frágeis que sejam as economias e índices de desenvolvimento humano de seus países, conhecem a farsa da descolonização brasileira, e não aceitarão facilmente a falsa cordialidade dos discursos diplomáticos da moda.
Essa burguesia, quando em África, põe-se a analisar exaustivamente a presença chinesa, e tem até a pretensão de achar, em determinado momento, que pode oferecer um modelo de cooperação melhor que o de Pequim.
Esquece-se de um pequeno detalhe: a China colaborou ativamente com os movimentos de libertação em África ocorridos em meados do século passado. Acolheu africanos em solo chinês, treinou-os, ofereceu armas e dinheiro, em suma foi solidária com a África, em palavras mas, sobretudo, em gestos concretos.
Os fortes laços que hoje existem entre os países africanos e a China não são só econômicos, mas históricos e fraternos.
Não de uma história e fraternidade à revelia de uma das partes, como é a “fraternidade” que une brasileiros à África em função do transporte forçado de escravos africanos para o Brasil, mas uma história e fraternidade livre e conscientemente buscada por ambas as partes, como é o caso de China e África.
Convenhamos: há uma “pequena” diferença aqui!!
Segundo depoimento de uma pesquisadora brasileira que esteve diversas vezes em Luanda, durante seminário sobre a cooperação brasileira em África, os brasileiros, ao contrário do que seria de esperar de um povo tão “simpático”, são vistos como pessoas que não se misturam com o povo africano: ficam isolados nas ilhas-de-fantasia dos alojamentos luxuosos (para os padrões africanos) fornecidos pelas empresas brasileiras (em Angola, leia-se Odebrecht) aos seus funcionários brasileiros. Ao contrário dos chineses que, segundo a mesma pesquisadora, moram nos mesmos lugares dos africanos.
Por incrível que pareça, a verdadeira história em comum com os africanos é muito mais com a China do que com o Brasil.
[2] Referência aos acordos de paz que puseram fim a 16 anos de guerra civil em Moçambique, com um saldo de aproximadamente 1 milhão de mortos. Este – à luz da ocorrência de novos conflitos em Moçambique – é o tema principal da entrevista, , que merece ser lida na íntegra. Para isso, clique num dos links fornecidos abaixo.

Fontes

http://www.redebrasilatual.com.br/entretenimento/2014/04/para-mia-couto-e-preciso-resolver-o-passado-de-mocambique-para-curar-o-presente-9008.html

ou

http://www.diarioliberdade.org/artigos-em-destaque/414-batalha-de-ideias/47464-entrevista-a-mia-couto-sobre-a-reabertura-do-conflito-civil-em-mo%C3%A7ambique.html


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