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No dia 11 de junho de 2011, numa noite fria de Porto  Alegre, seu Valdir e sua cadela Princesa dormiram sob um teto e não mais  sob a marquise que os abrigava até então. No dia 13 de setembro o Seu  Valdir tocou o interfone. Estava trêmulo e com os olhos mareados. Tinha  três folhas de papel em mãos e uma carta, da Previdência Social, com um  texto que começava assim: “Em atenção ao seu pedido...informamos que foi  reconhecido o direito ao Benefício de Prestação Continuada...”.  Acionado em um desafio para dar vida nova a um morador de rua, o Estado  brasileiro respondeu com políticas de carne e osso.
 
Porto Alegre - Se os números  apresentados pelo governo federal são verdadeiros, então qualquer pessoa  deve poder pegar um morador de rua, ou uma pessoa em situação de risco,  e inscrevê-la ao menos no Bolsa Família. Depois de pesquisar e  acompanhar os dados sobre a redução da desigualdade, a entrada de mais  de 30 milhões de pessoas na classe C e a saída de 28 milhões da extrema  pobreza, eu pensei que poderia “ver” esses números encarnados. Trata-se  de uma população maior que a de muitos países, então não deveria ser  muito difícil “tirar alguém da rua”, por exemplo. Teria de ser ao menos  possível e relativamente fácil; caso contrário, esses números  necessariamente seriam falsificações.
É verdade que muitos dentre  os que Jack London chamou de o povo do abismo já se quebraram, e a sua  ida para as ruas não é outra coisa que a porta de entrada para todo tipo  de quebradeira: a psíquica, a física, a emocional, a social. Os  moradores de rua e a população excluída das cidades parecem existir para  interpelar, intermitentes, o poder do estado, os governos, a  assistência social. 
Muitos do que se julgam bem informados leem  nas magazines de fofocas semanais que o governo ou os governos seriam  entidades comandadas por ladrões manipuladores. Indignados sem saber ao  certo o porquê, passam pelos moradores de rua invariavelmente com raiva,  quando não tampam os narizes e saem esbravejando contra o governo, que  “permite” essa “palhaçada” ou “sujeira” ou “vagabundagem”.
Com  tudo isso em mente e de certa forma apesar de tudo isso, eu quis testar o  Estado brasileiro para ver se esses milhões tinham “carne”. Eu quis  saber se esses números são reais ou ao menos se faz sentido e como pode  fazer sentido ter gerado uma ascensão de classe social de 60 milhões de  pessoas, em menos de dez anos. E isso sem um Plano Marshall, e sem um  New Deal, e com uma política econômica determinada pela finança  globalizada, engessada pela trindade do superávit primário, do câmbio  flutuante e controle inflacionário via taxação de juros.
Um carrinho de supermercado era a sua casa
Mas  essa decisão foi movida por um encontro, mais do que por informação. Eu  quis testar o Estado brasileiro depois de ter conhecido o Seu Valdir e a  sua filhote, a cadela Princesa, caminhando nas ruas do Bairro Bom Fim,  em Porto Alegre. Ele empurrando um carrinho de supermercado que era a  sua casa, cheio de coisas, bolsas, cobertores, tudo muito organizado,  sob a triunfante Princesa, sentada no carrinho. Pensei que não podia ser  pelas razões que imaginava, então perguntei-lhe por que ela estava  sobre o carrinho, ao que ele me respondeu, confirmando a hipótese mais  estapafúrdia que eu imaginara: “é que ela não tomou todas as vacinas,  ainda, e a doutora disse que não era para pôr os pés na rua”. (Uma  veterinária, Marília Jaconi, cuidou da Princesa gratuitamente, em  solidariedade).
Começamos a conversar e eu perguntei se ele tinha  o Bolsa Família. Não tinha. Perguntei se tinha documentos; tinha todos,  aliás, além dos documentos, retirou do seu lar móvel uma pasta com uma  inacreditável quantidade de exames, laudos, prescrições médicas e  medicamentos (ordenados por cor, já que é analfabeto). “As radiografia e  aqueles outros, né, de imagem, ficam lá no posto, lá, no meu arquivo”. 
O  Seu Valdir cuidava da Princesa (que salvou de um espancamento por um  drogadito) e cuidava de si mesmo, inclusive tomando antidepressivos,  “daquele comprimido branco (prozac), que a doutora, lá do Posto Santa  Marta, me deu, pra meus problemas de depressão”. Também não se droga,  não bebe. “O que mais o senhor tem?” “Ah”, disse, “tive um joelho  esmagado na construção civil, né, quando trabalhava de assistente de  pedreiro, também tenho uns problemas de coluna” e seguiu falando. Tinha  carteira de isenção de passagem de ônibus, estadual e municipal, como  deficiente físico.
Buscando as políticas em carne e osso
Depois  de dois encontros e muitas perguntas respondidas, tomei a decisão de  buscar a carne ou alguma carne do número de 60 milhões de brasileiros.  Fazer esse cara acessar ao menos o Bolsa Família ou quem sabe o BPC,  pensei, tinha de ser possível e relativamente fácil. Estávamos em maio  de 2011 e hoje, passados mais de 8 meses, digo sem pestanejar que foi  fácil, rápido e uma experiência surpreendente.
No dia 13 de maio  de 2011, fui com o Seu Valdir à Fundação de Assistência Social – FASC,  de Porto Alegre. Tinha na mente a informação de que o programa Bolsa  Família havia se ampliado para abranger a população em situação de rua,  desde 2010. Tinha também a informação de que o Seu Valdir preenchia  requisitos para receber o BPC (embora julgasse esse um desejo  irrealizável, um benefício no valor de um salário mínimo, para um cara  que tá na rua e caminha?). No dia 23 de maio entramos juntos pela  primeira vez no Prédio da Previdência Social, quando se abriu o processo  de requerimento do BPC.
Depois de aberto o processo na  Previdência, fui impedida de acompanhar o Seu Valdir. Dali em diante eu  poderia ter me despedido dele, e esperaria pelas respostas que o Estado  iria ou não dar, a contento. Se o Estado denegar, vou à Defensoria  Pública Federal, pensei, entro com um mandado de segurança. Em um ano,  no máximo, a vida desse cara vai mudar. Porque se não mudar, então esses  números todos, todos esses milhões, isso tudo é mentira. Se é verdade  que o Seu Valdir foi resgatado, em termos de saúde e alguma qualidade de  vida, de integridade física e psíquica, pelo SUS, na pessoa da médica  comunitária Isabel Munaretti, também é verdade que não cabe ao SUS tirar  ninguém da rua.
Porque existe o SUS e ele funciona
O  sujeito pode viver na rua, não ter onde dormir, nem como cozinhar, e ter  assistência médica, acesso a medicamentos e exames. Porque existe o SUS  e ele funciona. “Quando o senhor vai no Posto Santa Marta (ele tinha  uma carteirinha de consulta em mãos), onde deixa o seu carrinho, com a  Princesa?”. Respondeu-me que deixava na portaria, porque o vigilante  gostava muito de brincar com ela e cuidava do carrinho dele. Na volta  dessa consulta, que já estava marcada antes mesmo de nos encontrarmos,  ele tocou o interfone de meu apartamento. Queria me mostrar o laudo que a  doutora escreveu, recomendando a concessão do benefício. Um laudo  escrito com clareza, cheio de detalhes.
Era inacreditável. Cada  etapa da história parecia desmontar parte de um certo universo de  crenças de classe média que eu cultivava, talvez nem sequer lendo as  magazines de fofocas (que não leio nem nunca li), mas simplesmente com  aquela percepção meio consolidada, embora pouco vivida, de que o estado  não funciona, de que os médicos do SUS não querem saber dos pacientes,  de que os funcionários públicos são inoperantes, toda essa tralha  simbólica que tornou intuitiva a crença nas decisões, expectativas e  apostas unicamente privadas e particulares. Tão extraordinário como  cuidar da saúde de sua cadela foi saber que aquele homem, que estava na  rua há mais de dez anos, tinha mais exames e diagnósticos e assistência  médica do que eu, usuária de plano de saúde.
O acesso ao poder  público, por meio da inscrição nos programas sociais não apenas requer  um certo tempo, como pode ser insuficiente para a garantia da dignidade.  Dizer que o Estado funciona não é dizer, pelo menos não ainda, que no  Brasil a miséria deixou de ser uma chaga e a desigualdade, um tumor  maligno. Além disso, estamos em Porto Alegre, o estado mais meridional  do país, onde o frio é hostil e às vezes mortal, para quem está  vulnerável. O inverno se aproximava e o Seu Valdir iria enfrentá-lo, uma  vez mais, na rua. Não iria para um abrigo, nem mesmo nos piores dias,  dessa vez porque não abandonaria a sua Princesa, ao relento. (O capítulo  do descaso do poder público com os animais de estimação dos moradores  de rua ainda será escrito com as denúncias cabíveis. A única exceção de  que tenho notícia se deu na gestão de Marta Suplicy, na prefeitura de  São Paulo, quando abrigos para moradores de rua contemplavam canis).
Uma  amiga teve a ideia, diante de minha angústia frente ao frio que se  aproximava, de alugarmos uma casa para ele e a cadelinha passarem pelo  inverno. Com uns trezentos reais por mês isso seria possível. Mas e a  comida, e os cuidados veterinários, e a luz? Estava fora de cogitação.  Sozinha, não poderia arcar com isso, ainda mais correndo o risco de os  benefícios não saírem. O que estava fazendo, adotando um sem teto? Mas o  objetivo não era testar o Estado, além de ajudar esse homem a acessar  os seus direitos? Irrefletidamente, a pergunta que fazia era: daqui para  a frente eu não tenho mais nada a ver com isso, por que me envolver?  Ele só não seria invisível porque, a título do teste em curso, eu  aguardava as respostas do estado brasileiro. Até lá, a sua estada na rua  não era problema meu.
Generosidade, amizade e solidariedade
A  segunda parte desta história é feita da generosidade, da amizade e da  solidariedade, como valores cultivados. A sua relação com o governo é  inexistente. Testar o Estado teve um efeito rebote: e se as minhas  crenças na delegação republicana das tarefas próprias do estado  democrático de direito estivessem, eventualmente, a serviço da  manutenção de preconceitos e de um universo de crenças mesquinhas de  classe média, que mira a pobreza com uma tonalidade de indecência  intolerável?
Escrevi um e-mail, contando essa história toda, para  30 pessoas, alguns mais, outros menos, amigos. Pedi ajuda para tirar o  Seu Valdir da rua. Disse que ele tinha 53 anos, que era analfabeto, que  tecnicamente não tinha como conseguir trabalho, dadas as suas (não)  qualificações. E que a marquise onde se abrigava iria levar muita água,  nos meses que se aproximavam. Seria um inverno chuvoso, além de frio.  Contei que tinha encontrado uma casa, na região metropolitana. A duas  quadras da casa da amiga, havia uma casa com pátio para alugar. Pelo  menos até que a concessão dos benefícios ocorresse (pensava que  esperaríamos 10, 12 meses, sem falar nas eventuais ações judiciais que  teríamos de ajuizar), ele teria um teto, se cada um desse uma pequena  quantia, seria possível. 20 pessoas responderam, topando a empreitada.  Eu alugaria no meu nome, dois seriam fiadores. Cada um daria entre 20 e  50 reais por mês. “Se eu soubesse que com 50 pilas por mês tiraria um  cara da rua, já estava fazendo isso há muito tempo”, disse uma das  amigas. Dentre os 20 amigos e parceiros na empreitada há jornalistas,  professores universitários, estudantes, advogados e servidores públicos.
Nem  todos podiam contribuir com dinheiro, ou queriam fazê-lo. Mas todos,  sem exceção, tinham em casa provas de uma certa abundância de consumo  que tem acometido a classe média brasileira, para além dos 60 milhões:  um colchão de casal novo, uma cama de casal, botijão de gás, um fogão,  banco, mesa, cadeiras, sofá, guarda-roupa, máquina de lavar roupa,  talheres, panelas, copos, lençóis, toalhas, roupa, muita roupa. Tudo  sobressalente. Em dois meses, o Seu Valdir tinha tudo isso e ainda uma  televisão de 20 polegadas, colorida, com antena, para ver o jogo do  Internacional. Compramos um balcão de pia em aço inox e uma geladeira (o  sogro de nossa amiga resolveu trocar de geladeira, para abrigar as  cervejas geladas num novo modelo, e vendeu uma geladeira seminova, por  240 reais).
"Isso deve ser o paraíso, né?"
Uma casa  metade de madeira, metade de alvenaria, com dois quartos, um pátio na  frente e um atrás, uma sala. Ele e a Princesa lá, sob a marquise,  estavam prontos, aguardando a minha chegada, numa Kombi, para leva-los.  Nervoso, em silêncio, o Seu Valdir olhava para mim como se perguntando  se era verdade. Ele queria sair da rua, tinha dito isso, enfático. No  dia 11 de junho, numa noite fria do inverno que ainda nem tinha chegado  oficialmente, Seu Valdir e sua Princesa dormiram sob um teto. A luz só  foi ligada 4 dias depois. Mas naquela noite, com as mãos trêmulas, ele  se despediu de nós com a chave da casa nas mãos. Duas horas depois  telefonou, para dizer que “isso deve ser o paraíso, né?”. Deve ser.
Em  julho ele começou a plantar. Fez uma pequena lavoura, com tomates,  alfaces, beterrabas (que chama de batata roxa, talvez porque seja  guarani), espinafre, pimentão, temperos, abóboras. Pegou mais três cães,  enxovalhados por donos cruéis ou simplesmente abandonados na rua. E os  amigos começaram a se beneficiar da colheita desses vegetais feios,  miúdos e deliciosos, sem nada de agrotóxico. Montamos um blog, ainda  incipiente, para contar a história toda. Queríamos dizer às pessoas que é  possível tirar um cidadão ou cidadã da rua, que há dinheiro e política  em curso, no país, que é verdade e nós estávamos experimentando o quanto  esse fato pode ser transformador na vida de uma pessoa.
Demos  entrevistas a estudantes de jornalismo. Rejeitamos aparecer em  televisões, invariavelmente dispostas a contar uma história bonita de  voluntariado. A mais recente das tentativas veio com o estranho convite,  feito pessoalmente a mim, a fim de que eu contasse sobre “a minha luta”  para tirar um morador da rua. Todos os convites foram recusados. Não  houve luta, nem voluntariado. Há um Estado e um governo que existem, nós  testamos e testemunhamos isso. E há amizade e gente para quem a  erradicação da miséria também implica mais felicidade e dignidade,  inclusive frente a si mesmo, para além das mesquinharias de classe  média.
No dia 13 de setembro o Seu Valdir tocou o interfone.  Estava trêmulo e com os olhos mareados. Tinha três folhas de papel em  mãos: uma com um comprovante de saque, no valor de 1291 reais, e uma  carta, da Previdência Social, com um texto que começava assim: “Em  atenção ao seu pedido...informamos que foi reconhecido o direito ao  Benefício de Prestação Continuada etc....”. Nos abraçamos e tudo o mais  que se diga sobre a alegria daquele momento é incapaz de descrevê-lo. Os  1291 reais eram retroativos ao dia 23 de maio, quando se abriu o  processo de pedido do benefício.
Hoje, cada um dos amigos que  participaram da ação entre amigos colabora oficialmente com 20 reais por  mês. Oficialmente, porque a imensa maioria deles se recusou a parar de  contribuir ou a diminuir a contribuição. Por decisão de todos, seguimos  pagando o aluguel e a luz (valor total chega a trezentos e poucos  reais), em troca dos produtos da lavoura orgânica. O Seu Valdir se  matriculou e depois abandonou o EJA. Teve ataques de angústia e me  telefonou muitas vezes, ansioso, receando que o benefício não saísse.  Quando o benefício saiu, comprou uma máquina fotográfica digital, um  pequeno cortador de canteiros, para aparar sua grama, um aparelho de som  para ouvir música gauchesca e estendeu o braço para a mãe, uma  descendente de guarani, também analfabeta. 
No momento, ele faz  uma dentadura, com o superávit que as contribuições do grupo de amigos  geraram. Uma veterinária amiga atende aos animais adotados por ele,  inclusive a sua Princesa, a preço de custo. A outra cadela por ele  adotada se chama Isabel, “como aquela princesa, né?”. E agora ele ficou  sabendo que tem um programa chamado “Minha Casa, Minha Vida”. Eu o  informei que as casas são muito pequenas, sem pátio, com quase nenhuma  área verde. Ele respondeu: então eu vou ter de construir um lugar,  comprar uma pré-moldada, né? Pode ser. Agora, pode ser.
Nenhum de  nós precisou fazer isso, ninguém foi forçado e menos ainda foi  requerida uma luta ou um grande esforço. A cada colheita, em cada  conquista dele, a satisfação e a alegria de quem participa dessa ação  entre amigos só se consolida. Há muitos capítulos nesta história e  muitos são de angústia e medo. E há também um aspecto que habita um  universo simbólico e afetivo de antes das palavras, que também comporta o  afeto dele e nosso com os animais domésticos, então não dá para  descrever, à altura, o que significa poder dizer que tiramos um cara da  rua, que tem carne nos números do governo e, mais ainda, que somos parte  dessa carne. Eu decidi testar o Estado e suas políticas e recebi, como  resposta, na vida nossa e do Seu Valdir, que o Brasil Sem Miséria é uma  realidade e, portanto, que um Brasil sem miséria é possível. Acionado em  um desafio para dar vida nova a um morador de rua, o Estado brasileiro  respondeu com políticas de carne e osso.