segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Comparato e a “democracia de fancaria”

do Conversa Afiada


O Conversa Afiada republica artigo do professor Fábio Konder Comparato em defesa de uma consulta ao povo sobre os salários dos representantes políticos.

Em seguida, a proposta de projeto de lei que poderia ser endossada por um legislador que tivesse a bravura de Luiza Erundina, por exemplo.


UMA DEMOCRACIA SEM POVO


Fábio Konder Comparato
Suponhamos que alguém entre em contato com um advogado para que este o represente em um processo judicial. O causídico aceita o patrocínio dos interesses do cliente, mas não informa o montante dos honorários, cujo pagamento será feito mediante a entrega de um cheque em branco ao advogado.
Disparate sem tamanho?
Sem a menor dúvida. Mas, por incrível que pareça, é dessa forma que se estabelece a fixação dos subsídios dos (mal chamados) representantes políticos do povo. Com uma diferença, porém: os eleitos pelo povo não precisam pedir a este a emissão de um cheque em branco: eles simplesmente decidem entre si o montante de sua auto-remuneração, pagando-se com os recursos públicos, isto é, com dinheiro do povo.
Imaginemos agora que o advogado em questão, sempre sem avisar o cliente, resolve confiar o patrocínio dos interesses deste a um companheiro de escritório, por ele designado, a quem entrega o cheque em branco.
Contrassenso ainda maior, não é mesmo?
Pois bem, é assim que procedem os nossos senadores, em relação aos suplentes por eles escolhidos, quando se afastam do exercício de suas funções.
Não discuto aqui o montante da remuneração percebida pelos membros do Congresso Nacional, embora esse montante não seja desprezível. Além dos subsídios mensais propriamente ditos – quinze por ano –, há toda uma série de vantagens adicionais. Por exemplo: o “auxílio-paletó” no início de cada sessão legislativa (no valor de um subsídio mensal); a verba que cada parlamentar pode gastar como bem entender no seu Estado de origem; as passagens aéreas gratuitas para o seu Estado; sem falar nas múltiplas mordomias do cargo, como moradia amplamente equipada, carro oficial e motorista etc. Segundo o noticiado na imprensa, esse total da auto-remuneração pessoal dos membros do Congresso Nacional eleva-se, hoje, à cifra (modesta, segundo eles) de R$114 mil por mês.
Ora, tendo em vista o estafante trabalho que cada deputado federal e senador realizam – eles trabalham, em média, três dias por semana –, resolveu o Congresso Nacional, por um Decreto Legislativo datado de 19 de dezembro de 2010, elevar o montante do subsídio-base para a legislatura em curso em 62% (por extenso, para confirmar a correção dos algarismos: sessenta e dois por cento).
Ao mesmo tempo, consternados com o fato de perceberem remuneração superior à do presidente e vice-presidente da República, bem como à dos ministros de Estado, os parlamentares decidiram, pelo mesmo Decreto Legislativo, a equiparação geral de subsídios.
Acontece que o subsídio dos deputados federais serve de base para a fixação do subsídio dos deputados estaduais e dos vereadores, em todo o país. Como se vê, a generosidade dos membros do Congresso Nacional, com dinheiro do povo, não se limita a eles próprios.
Agora, perguntará o (indignado, espero) leitor destas linhas: – Como pôr fim a essa torpeza?
Pelo modo mais simples e direto: transformando o falso mandato político em mandato autêntico. Ou seja, instituindo entre nós um verdadeiro regime democrático, em substituição ao fraudulento que aí está. Se o povo é realmente soberano, se ele elege representantes políticos para que eles atuem, não em proveito próprio, mas em prol do bem comum do povo, então é preciso inverter a relação política: ao em vez de se submeter aos mandatários que ele próprio elegeu, o povo passa a exercer controle sobre eles.
Alguns exemplos. O povo adquire o poder de manifestar livremente a sua vontade em referendos e plebiscitos, sem precisar da autorização do Congresso Nacional para tanto, como dispõe fraudulentamente a Constituição (art. 49, inciso xv). O povo adquire o poder de destituir pelo voto aqueles que elegeu (recall), como acontece em várias unidades da federação norte-americana.
Nesse sentido, é de uma evidência palmar que a fixação do subsídio e seus acréscimos, de todos os que foram eleitos pelo voto popular, deve ser referendada pelo povo.
Para tanto, o autor destas linhas elaborou um anteprojeto de lei, apresentado pelo Conselho Federal da OAB à Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados em 2009, instituindo o referendo obrigatório do decreto de fixação de subsídios, quer dos parlamentares, quer dos membros da cúpula do Executivo. Sabem qual foi a decisão da Comissão? Ela rejeitou o anteprojeto por unanimidade.
Confirmou-se assim, mais uma vez, o único elemento absolutamente constante em toda a nossa história política: o povo brasileiro é o grande ausente. A nossa democracia (“um lamentável mal-entendido”, como disse Sérgio Buarque de Holanda) é realmente original: logramos a proeza de fazê-la funcionar sem povo.

Leia, também, a proposta de projeto de lei:
Emenda Constitucional nº …, de …

Submete a referendo popular obrigatório a fixação dos subsídios do Presidente e do Vice-Presidente da República e dos Ministros de Estado, dos Deputados Federais e Senadores, dos Governadores e Vice-Governadores de Estado e dos Deputados Estaduais, do Governador e Vice-Governador do Distrito Federal e dos Deputados Distritais, dos Prefeitos e Vice-Prefeitos Municipais e dos Vereadores das Câmaras Municipais
A Mesa da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte Emenda ao texto constitucional:

Art. 1º  
Acrescente-se ao art. 14 da Constituição Federal o § 12, assim redigido:


§ 12 – A fixação dos subsídios do Presidente e Vice-Presidente da República e dos Deputados Federais e Senadores; dos Governadores e Vice-Governadores de Estado e dos Deputados Estaduais; do Governador e Vice-Governador do Distrito Federal e dos Deputados Distritais; dos Prefeitos e Vice-Prefeitos Municipais e dos Vereadores das Câmaras Municipais será submetida a referendo popular obrigatório.


Art. 2º  
O § 2º do art. 27 passa a ser assim redigido:

§ 2º O subsídio dos Deputados Estaduais será fixado por lei de iniciativa da Assembléia Legislativa, na razão de, no máximo, setenta e cinco por cento daquele estabelecido, em espécie, para os Deputados Federais, observado o que dispõem os artigos 14, § 12, 39, § 4º, 57, § 7º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º.


Art. 3º  
O § 2º do art. 28 passa a ser assim redigido:

§ 2º Os subsídios do Governador, do Vice-Governador e dos Secretários de Estado serão fixados por lei de iniciativa da Assembléia Legislativa, observado o que dispõem os artigos 14, § 12, 37, XI, 39, § 4º, 57, § 7º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º.


Art. 4º  
Os incisos V e VI do art. 29 passam a ser assim redigidos:

V – subsídios do Prefeito, do Vice-Prefeito e dos Secretários Municipais, fixados por lei de iniciativa da Câmara Municipal, observado o que dispõem os artigos 14, § 12, 37, XI, 39, § 4º, 57, § 7º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º.
VI – o subsídio dos Vereadores será fixado pelas respectivas Câmaras Municipais em cada legislatura para a subsequente, observado o que dispõem os artigos 14, § 12, 37, XI, 39, § 4º, 57, § 7º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º.


Art. 5º  
Os incisos VII e VIII do art. 49 passam a ser assim redigidos:

VII – fixar idêntico subsídio para os Deputados Federais e os  Senadores, observado o que dispõem os artigos 14, § 12, 37, XI, 39, § 4º, 57, § 7º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º.
VIII – fixar os subsídios do Presidente e do Vice-Presidente da República e dos Ministros de Estado, observado o que dispõem os artigos 14, § 12, 37, XI, 39, § 4º, 57, § 7º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º.


Art. 6º  
Esta Emenda  Constitucional entra em vigor na data de sua publicação.

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