Aqui em Detroit não há muitos cinemas. Os famosos multiplexes ficam mais nos shoppings dos subúrbios, e impressiona como a programação deles é uniforme: só o circuitão comercial! Assim, fomos ver “Sicko” num cinema que não é bem um cinema. É mais um bar, com ingressos a 2 dólares. O pessoal bebe, assiste ao filme, e não conversa com o amigo ou atende celular. A única desvantagem é que todo mundo fuma, argh! De qualquer modo, é incrível o timing do documentário na nossa vida pessoal. Sabe qual foi nossa maior dor de cabeça ao chegar nos EUA? Contratar um plano de saúde, um pré-requisito do governo americano pra estudante estrangeiro poder permanecer no país. A universidade queria nos cobrar os olhos da cara por um plano. Após muita pesquisa, encontrei outro um pouco menos caro. Mas sei muito bem que, se tiver que contar com assistência, vou sofrer pra tê-la.
Este documentário do grande Michael Moore (dos excelentes “Roger e Eu”, “Tiros em Columbine” e “Fahrenheit 11 de Setembro”) conta que cinquenta milhões de americanos não têm plano de saúde. Isso é o quê, um em cada seis? E os que têm não estão em situação muito melhor, pois dependem exclusivamente de empresas privadas, que visam o lucro em primeiro lugar.
O filme narra inúmeros casos escabrosos. Uma mulher que trabalha num hospital e tem plano de saúde pra toda a família não consegue tratamento pro seu marido com câncer. Outra que também tem cobertura através da empresa em que trabalha vê sua filha morrer, porque a companhia arranja uma desculpa pra não arcar com o prejuízo. Um casal com plano de saúde, que até tinha uma boa vida, precisa viver de favor na casa dos filhos após ir à falência ao pagar os impostos do plano. Um cara perde dois dedos e precisa escolher qual dos dois quer costurar de volta: o do meio, que vai sair por 60 mil dólares, ou o anular, por módicos 12 mil. E por aí vai. Mas o mais chocante, e também o que ganhou maior publicidade, é o dos heróis das Torres Gêmeas. Como esses bombeiros não têm direito à tratamento, Michael leva alguns pra Guantanamo, onde os militares americanos afirmam que as instalações hospitalares são de primeira. A hora em que ele põe a bandeirinha americana no barco é de fina ironia. Já que Guantanamo não os aceita, Michael os leva pra Cuba. Lá eles são super bem atendidos, e de graça (o documentário se perde um pouco em seguida e foge do tema ao mostrar bombeiros cubanos homenageando os americanos. Mas aí já estamos no fim. O pedacinho que eu não gosto vem antes: expatriados ianques falando sobre suas vidas em Paris).
Há também vários momentos preciosos, e o humor típico do Michael, como na hora em que ele mostra uma americana cruzando a fronteira pro Canadá pra tentar atendimento lá, e justifica: “Somos americanos. Quando a gente precisa pegar alguma coisa num outro país, a gente invade”. É difícil de acreditar, mas existe realmente americano se casando com canadense só pra conseguir assistência médica. Tem até um site pra isso, hook a canook. Mas talvez meu momento preferido seja quando o Michael tá na França, correndo atrás de algum vestígio que indique que as pessoas precisam, sim, pagar algo num hospital público, e ele encontra um caixa. Ahá! Pra quê serve um caixa, se é tudo grátis? É que o governo francês dá dinheiro pro paciente gastar com transporte na volta pra casa...
O documentário é um tratado defendendo os ideais da esquerda, e tem mais é que ser provocativo. À certa altura Michael inclui imagens de uma Inglaterra em frangalhos, após a Segunda Guerra, e a decisão de reconstruir o país com assistência médica gratuita para todos. Um ex-membro do Parlamento fala de democracia, e diz que, se um país pode pagar seus cidadãos para matar pessoas em guerras, pode perfeitamente bem pagar saúde e educação. É uma questão de priorizar as necessidades. E não resta dúvida que a prioridade do Bush é o “combate ao terrorismo” (bota aspas nisso).
Claro que o Brasil não é nenhum modelo de sistema de saúde gratuito, mas não é essa a discussão. Os EUA são o país mais rico do mundo, um verdadeiro império. O Brasil é um país pobre. E, ainda assim, eu e o maridão, que não pagamos plano de saúde privado, temos acesso a um SUS bem razoável quando precisamos (se não morássemos em Joinville seria diferente, eu sei). Eu já imaginava, mas depois de ver “Sicko”, tenho certeza: se eu ficar doente, prefiro o SUS de Joinville ao plano de saúde que comprei aqui.
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