Ao final deste texto do Alfredo Sirkis tem entrevistas com os guerrilheiros que lutaram contra a ditadura e vários documentários.
Carlos Lamarca e o embaixador Giovanni Enrico Bucher
Na História do Brasil existem acontecimentos surpreendentes, mas infelizmente pouco conhecidos do grande público. Um deles é o sequestro do Embaixador Suíço, que foi trocado por 70 prisioneiros que estavam sendo torturados nos porões da ditadura militar. Esta ação foi liderada por Carlos Lamarca da VPR – Vanguarda Popular Revolucionária. Durante 40 dias angustiantes os guerrilheiros mantiveram o embaixador Giovanni Enrico Bucher em cativeiro, aguardando a resposta dos militares. Dentro do “aparelho” clandestino também estavam a mulher de Lamarca: Yara Iavelberg e Alfredo Sirkis. É ele quem narra essa emocionante história no livro Os Carbonários.
O GRANDE ENGARRAFAMENTO
Curiosos e policiais olham o local do sequestro
Surgiram no espelho às 9,15 hs., em ponto.
Abri a porta do Volks bege para os três que chegaram a passo apressado, vindos do outro lado do muro. A rua do transbordo era serpenteada de paralelepípedos, uma das curvas à volta de um muro fortificado.
O fuscão turqueza, que instantes antes os deixara do outro lado dessa curva, passou apressado ladeira acima. Nisso Ivan já segurava 1 porta e fazia sinal pro embaixador entrar. Paulista mão no Smith & Wesson, dava a cobertura.
Me deparei com ele, de terno e gravata, rosto carnudo, avermelhado, um nariz grosso, robusto jeitão europeu bem nutrido. Um par de olhos assustados.
— You will be well treated. (Você vai ser bem tratado.)
Assumi de novo minhas funções de intérprete oficial da VPR.
— Porrra. - . Eu não sou americano, sou suíço! Não tenho nada com isso. Rapazes vocês, certamente cometeram um engano! Falava um português excelente, com leve sotaque.
— É o senhor mesmo que queremos. Imperialismo ianque já pagou quinze presos, Japão cinco, Alemanha quarenta. Tá na hora dos bancos suíços comprarem a vida dalguns companheiros torturados. A Suíça é a quarta investidora na miséria do nosso povo.
Subimos as ruas serpenteadas, ultrapassando um bonde que apareceu pela frente. Pequeno trecho de Santa Teresa e toca pro Rio Comprido, ladeiras abaixo. Depois Tijuca.
São Francisco Xavier, trânsito desimpedido, sinais verdes a favor. Nenhum cambura visível.
9.25 hs. Já devem ter dado o alarme, pensei.
— Teve tiro na ação? Ivan diz que sim.
— Paulista teve que ferir o guarda-costas que reagiu e quase acertou um tiro no Daniel. Puxou uma tremenda PPK. Depois apareceram dois guardas de trânsito. Tinha um desastre perto dali. Botei a INA prá fora do carro, eles voaram pro chão, um bateu até com a cabeça no poste. A saída foi incrível, pela calçada. O sinal em frente o Fluminense tava fechado, perdemos mais de um minuto.
Pensei no esquema de contra-informação que já devia ter sido acionado naqueles instantes pelos simpas na equipe de inteligência. Tocavam telefones de delegacias e redações de jornais com a deduragem de “uma Kombi verdinha com uns elementos estranhos, pinta de terroristas e um senhor de mais idade”, alhures na floresta da Tijuca. Ou “uma Rural Wlllys estranha”, com rapazes barbudos e um caixote esquisito, na subida do Cosme Velho prá Santa Tereza.
Enquanto isso, nos distanciávamos pelos subúrbios da Central. Na altura de Engenho Novo, o primeiro camburão da jornada. Sirene ligada e manobrava no calcadão, em frente à delegacia. Cruzamos por baixo dos trilhos da Central e seguindo a rota prevista, por um emaranhado de ruas secundárias, rápidas passagens por algumas artérias. Em Cascadura, parei uns instantes numa rua deserta prá Ivan tirar as mar-tarochas.
9,30 hs. Do transbordo até ali o carro viera com um par de chapas “frias”, cobrindo as legais. Estavam atarrachadas naqueles acessórios que o VW fornece aos fusquinhas mais chiques, uma armação de metal cromaido. Punha-se uma tira forte de elástico prá prender a armação sobre a placa legal.
Em menos de três segundos se calçava ou descalçava. Por que Marta Rocha? Até hoje é mistério.
lvan voltou com elas e jogou debaixo do banco. Paulista papeava animadamente com o embaixador, agora mais calmo. Prosseguimos a viagem rumo a Madureira. Paulista cuidava do enxoval do diplomata para a crucial entrada na infra do rapto.
Guarda-pó de pintor, boné claro e os óculos escuros de ceguim.
Era mais simpático o disfarce que o caixote da vez anterior. Além do que a infra da Tacaratú era muito mais devassável do que a do von Holleben.
Madureira, estrada do Sape, Portela querida. Orações a todos os deuses e santos de todas as crenças prá que a ladeira da Tacaratú estivesse vazia, vazia, naquela abafada manhã de 7 de dezembro.
Evitamos o quartel da PM e chegamos pela transversal que cortava rua mais acima. Rua deserta, saravá!
9.45 hs. Fiz meia volta frente a casa e colei no portão, sobre a calçada. Ivan saiu ligeiro seguido de seu Giovanni, o pintor de paredes e Paulista,. sempre na cobertura.
— O seu João, vem cá ver a parede que tá precisando duma mão.
Num segundo tinham cruzado o portão e a varanda. A porta que se abriu e sumiram, enquanto eu tirava o carro da calçada, estacionava pouco 1 mais abaixo. Antes de entrar, dei uma panorâmica na rua. O dia era muito quente e preguiçoso, trinavam insetos e não se via ninguém, nem nas calçadas, nem nas janelas. Um rádio tocava alto na casa dos vizinhos, às voltas com a louça do almoço, as roupas do tanque, os cheiros matinais.
O embaixador da Suíca, Giovanni Enrico Bucher, já estava instalado nas poltronas da sala do meio, quando cheguei. Em mangas de camisa, vermelho e transpirando, fumava seu Benson & Hedges. Paulista lhe explicava algo, Helga fazia um suco de maracujá e lvan revistava sua pasta.
Estavam todos de capuz negro, mas, faziam o possível para atenuar a imagem um tanto tenebrosa.
Bucher mais sossegado, ar até meio cúmplice, pediu-nos que queimássemos um documento que trazia na pasta. Um informe reservado de Berna para a embaixada na qual vinham tratados vários temas, inclusive a situação brasileira. Havia algumas observacões críticas sobre questões da direitos humanos, nada muito duro, mas, o suficiente para que temesse um problema diplomático como o ocorrido com Elbrick.
— Nunca se sabe o que pode acontecer, argumentou.
Paulista concordou com o pedido de Bucher prá criar um ambiente colaboração mútua, agora que estávamos todos na mesma canoa.
Deixamos que ele próprio queimasse o memorando. Helga trouxe um balde com álcool no fundo e acendeu, enquanto Bucher picava um monte de vezes o documento, deixando cair um por um os pedaços que iam sendo consumidos pela chama, dançando alto.
Parecia se divertir com a ocupação.
Mais tarde chegou Daniel com um sorriso excitado. Já estávamos preocupados com a sua demora.
— Pô, cês não imaginam como tá a cidade! Eles fecharam tudo, tudo! Pararam o trânsito prá nos pegar. Não sei como vocês passaram, vim de ônibus no Engenho Novo e pelo Meier já estava o trânsito parado, os homis revistando todos os carros.
O rádio, onde a notícia já tinha estourado há mais de meia hora, confirmava a situação. O trânsito em toda cidade foi bloqueado, para que centenas de milhares de veículos fossem revistados, em busca do embaixador suíço.
No centro da cidade, regiões extensas das zonas sul, norte e subúrbios, o enorme dispositivo policial-militar, desencadeado, menos de cinco minutos após os acontecimentos da rua Conde de Baependi, paralisava as gigantescas filas de automóveis e coletivos.
As forças da ordem e da lei filtravam os veículos. Dezenas de suspeitos já estavam detidos e esperavam o desvendar do caso rapidamente — segundo fonte dos órgãos de segurança nacional, precisava o locutor.
E passamos o resto da tarde ouvindo, de meia em meia hora, as notícias do maior engarrafamento da história do Rio de Janeiro.
O SUÍÇO
Casa onde o embaixador suíço ficou "guardado" por 40 dias
— Compreendo que vocês queiram de alguma maneira salvar seus companheiros. A situação dos presos políticos desse continente, e desse país, — porque não dizê-lo francamente? — é péssima. Mas, não posso deixar de estranhar (e de protestar), por que diabos, logo eu? Eu não tenho nada a ver com essa situação. Como embaixador intercedi pelo Jean Marc, presidente da UNE, tentei valer sua dupla cidadania. Sua condição de suíço. Não houve nada a fazer neste caso. O chanceler Gibson Barbosa me respondeu: na dupla nacionalidade, prevalecia a do país onde se encontra o cidadão. Ele tinha razão, pelas leis internacionais.
Suspirou, remexeu na poltrona e continuou a argumentar para os capuzes negros.
— Levantei até com o vosso, quer dizer... o deles, chanceler Gibson, que é um homem ponderado, devo dizer-lhes — o problema das torturas que, segundo fui informado pela família, o rapaz sofrera. O chanceler me respondeu que realmente tinha havido alguns casos escassos de responsabilidade de alguns policiais comuns. Que o exército já tinha coibido essas práticas por interferência direta do próprio presidente Médici. De resto, que este era um assunto interno brasileiro e que estranhava um pouco a minha insistência. À saída, já menos irritado, me garantiu que os excessos já haviam sido totalmente sanados, graças a Deus.
— Pô, e o senhor acredita nisso? Minha voz se fez céptica sob o capuz.
— O ministro é um homem distinto. Mas, aí existe naturalmente Ia raison d’état. Se vocês me disserem que as torturas continuam não vou deixar de acreditar. Disse acrreditar, com sotaque no crê.
— Conheço bem o país de vocês, estou aqui há cinco anos. Conheço os empresários, mas, também já freqüentei favelas. Acho a miséria espantosa. Mais espantosa a causa do luxo da pequena parcela rica, riquíssima.
— isso aí. O capitalismo. Por isso que a solução é o socialismo. A revolução.
Eu preparava-me prá nova esgrima, com novo embaixador.
— Às vezes é a única saída, em países atrasados. Talvez alguma forma de socialismo seja a solução pro Brasil. Mas acho difícil vocês conseguirem isso. Talvez impossível. São poucos e o povo não os conhece. É analfabeto e trabalha para comer todos os dias. Não liga para política e parece contente como Carnaval e o Tricampeonato.
— Podemos tentar, né? Os bancos suíços com certeza é que não vão.
Ele se remexeu novamente, enxugou o suor da testa e reclamou do calor dos diabos. Realmente, fazia quase 40º naquele dia.
— Eu sou o representante do governo suíço, os bancos têm outros canais próprios. Sou um simples diplomata de carreira. Represento meu país nos vários continentes. Minha interferência pelo Jean Marc von der Weid, teve seu custo. Gibson passou a me tratar friamente nas recepções. Sei que o ministro Buzaid não gosta de mim. Homem estranho, tem uma cara horrorosa.
Ele agora estava com toda a corda.
— Bem, diríamos, então, que o senhor está praticamente do nosso lado?
Levantou as duas mãos num gesto de não-me-comprometa, e sentenciou com a voz ligeiramente empostada e sotaque um pouco mais perceptível:
— Não, porque sou contra uma violência que sofri. Além disso estou com receio que aconteça algum problema. - O que vai acontecer se descobrirem a casa?
— A segurança da casa é perfeita. Ninguém nos viu entrar, a repressão perdeu completamente o traço. Agora se descobrirem resistimos até o fim e morremos todos.
— Não é uma boa perspectiva. Espero que não descubram.
Descobrem não. A única questão é o governo ceder e não vemos porque não cederia. Há três precedentes favoráveis. Estamos seguros que tudo correrá bem em breve nossos companheiros, bem como o senhor, estarão todos em liberdade, numa boa.
Ele ficou muito sério, pensou e depois disse, preocupado:
— Meu governo fará, tenho certeza, muitos esforços. Mas, os senhores devem saber que eu não sou o von Hoileben. O von Holieben — repetiu, batendo as sílabas do nome do colega — é muito, muito importante. Também não sou ambasador Elbrick. Nixon pessoalmente, intercedeu por ele. Richard Nixon em pessoa.
— I want to talk with the man in charge of this fucking country (Quero falar com o homem que manda nesta porra deste país). Foi o que Dirty Dicky disse pelo telefone aos próceres da Junta Militar, queria saber qual deles era o “fucking man”.
Ele não ria da graça e preocupado repetiu:
Como dizia, não sou nem o von Hoileben, nem o Elbrick, sou muito menos importante. A Suíça é um pequeno país.
— Um pequeno país, mas, um grande banco, Ivan entrou de sola.
Prosseguiu impassível mostrando porque os outros embaixadores linham sido melhor escolhidos que ele. Revelou que era amigo do chanceler Graber e que este certamente moveria os canais competentes temia que o governo brasileiro não se sensibilizasse pela sua sorte.
— Acho que eles não gostam de mim.
Daniel que assistia a conversa silencioso detrás do capuz, quis animá-lo:
Mais importante que o cônsul japonês você é.
Rimos todos, diplomaticamente.
Já era tarde da noite quando me instalei à mesa da cozinha, guarita da minha primeira ronda, enquanto Ivan e Helga deitavam no sofá-cama da sala de entrada e Paulista e Dan se acomodavam no quartinho dos fundos.
Fiquei jogando paciência junto a M-1 sobre a mesa. Ouvindo rádio à espera de alguma notícia, quem sabe a leitura do nosso comunicado nº. 1, com as exigências, que seguira logo após a acão. Mas, nada de comunicado e nenhuma resposta oficial do governo. Só notícias sobre buscas frenéticas, em toda cidade. Fora isso, as condenações de variados círculos e autoridades públicas e privadas da indústria e do comércio.
Sentia-me preocupado e angustiado, os minutos passavam lentos, muito lentos e quanto mais analisava os dados, mais crescia dentro de mim o receio de que a coisa corresse mal. E se não cedessem? Se desta vez se recusassem a negociar?
Acabei minha ronda mergulhado numa poça viscosa de grilos e incertezas, o M-1 sobre a mesa no a dar respostas, o rádio emudecera em estática e as cartas não revelavam nada do futuro, apenas estavam lá todas misturadas no jogo de paciência, que eu tinha desfeito, impaciente.
Fui acordar o Paulista. Levantou silencioso e fomos cruzando de volta na ponta dos pés, a sala do meio, escura, onde dormia o embaixador. Esbarrei no pé de uma cadeira e da cama veio um esgar de susto.
— Calma, tudo bem, somos nós.
Murmurou algo e virou nos lençóis, entre sonhos agitados. Fechamos a porta para a saleta de entrada e fomos prá cozinha. Paulista fez um café e ficamos algum tempo comentando os lances do dia. Me animei um pouco com o seu aparente otimismo e só aí comecei a me sentir cansado, muito cansado. Voltei ao quarto dos fundos pela janela da área e me atirei na cama. Fui expulsando lentamente a angústia que voltou, quando me lembrei de que dia era aquele.
Eram as 3 da manhã do dia 8 de dezembro. Naquela data eu completava 20 anos. Restava saber se chegaria inteiro aos 21, se iam me dar os 70 presos de aniversário e se o astral estava ou náo prá Sagitário.
"ROUBARAM O CONSUL!"
‘Levanta cedo e trata de se preparar
Vamo prá Porte/a, que o reino do samba é lá
Levanta cedo.”
Soou às sete o clarim carnavalesco. Emergi dum sono inquieto, de sonhos confusos. Tinha dez anos e queria uma bicicleta. Levantei lépido de ansiedade. Notícias?
Paulista ouvia o rádio na cozinha, não tinha dormido, mas parecia impávido.
— Ói Felipe, dormiu legal?
Helga preparava-se para sair. Daniel, sem sono depois da última onda, lia um livro em castelhano, encostada na porta de entrada, vigiando de rabo de olho a porta do banheiro onde Bucher fazia a sua toilete. lvan saíra prá comprar os jornais e dar uma urubusservada geral nas redondezas.
Voltou logo, trazendo o JB que dava o rapto na manchete e lhe dedicava um furibundo editorial de apoio total ao governo Médici, seja qual fosse a política que este viesse a adotar. Algumas notas e comentários conduziam à idéia de que desta vez o governo mudaria sua atitude.
Ao folhear melhor o matutino, nos deparamos com uma notícia que no primeiro momento passara despercebida. Era um comunicado da repressão de São Paulo, anunciando a morte de Eduardo Leite, o Bacuri, num tiroteio perto de Santos.
Pairou na casa um silêncio glacial.
A notícia era das mais calhordas. Lembrava a “fuga” dele, várias semanas antes e comentava lances do tiroteio no qual tinha sido morto, ao “resistir à prisão”.
Sabíamos que Bacuri nunca fugira. Na época da prisão e morte do velho Toledo, fora retirado, uma noite, da sua cela no DOPS de SP, por Fleury e sua equipe. Os demais presos promoveram um escarcéu, gritando e batendo com as canecas nas grades das celas, em protesto pelo seqüestro. Não adiantou nada.
Ele foi transferido para um dos sítios clandestinos e lá começaram a matá-lo aos pouquinhos. Segundo uma informação que tínhamos recebido, estava cego e tinham lhe quebrado as pernas. Era torturado todos os dias.
A única esperança — remota — de salvá-lo, era aquela ação. O nome de Bacuri encabeçava a lista. O anúncio da sua morte, no dia seguinte ao seqüestro, ensombreceu o ambiente. Depois ficaríamos sabendo que o companheiro, barbarizado durante semanas a fio e já totalmente irreconhecível, foi executado com uma machadada logo que chegou a notícia da operação. Antes cortaram-lhe a orelha.
Os jornais da manhã, bem como o rádio, diziam que o governo não tinha recebido nenhum comunicado dos raptores do embaixador suíço. Ficamos tentando interpretar o significado daquela contra-informação. O comunicado n.º1 seguira minutos depois da ação, há quase 24 horas. Mais de cinco cópias tinham sido enviadas a diferentes órgãos de informação. Já era uma indicação do grau de controle que a repressão tinha sobre a imprensa. Para o mundo não existia nenhum comunicado.
As buscas continuavam em todo o Rio. Felizmente os estrategas deles estavam convencidos da infalibilidade da sua operação-engarrafamento, que em menos de dez minutos tinha interrompido o trânsito de toda a cidade e mantido os carros parados durante sete, oito horas, em muitos casos. Estavam absolutamente certos de que não podíamos ter ido muito longe e vasculhavam, minuciosamente, bairros próximos ao local da ação. Especialmente Cosme Velho, Santa Teresa, Catumbi e também Floresta da Tijuca. Nosso esquema de contra-informação telefônica buscava reforçar essa convicção apontando casas suspeitas nestas regiões.
De meia em meia hora o rádio dava os telefones prás deduragens anônimas. Insistiam para que a população ficasse atenta a vizinhos recentes de atividade furtiva, que mantivessem as janelas fechadas.
Debochávamos daquela babaquice. As janelas da casinha, com suas cortinas coloridas estavam abertas, escancaradas. Ivan, Helga e secundariamente Daniel tinham um excelente contato com os vizinhos, moravam no local há mais de seis meses.
“Fazer fachada” era uma arte e Paulista se revelava um virtuoso na matéria. Assim como eu estava “fechado”, não podia aparecer para o mundo exterior do afastado subúrbio. Mas constantemente dava autênticos cursos daquela arte de camuflagem social e existencial.
— Temos que partir do conhecimento do povo dos arredores, dos seus hábitos. um bairro pobre, mas, não miserável. As cortinas sâo fundamentais. Têm que ser bonitas e coloridas. São o orgulho da casa do pobre.
Também sugeriu que Helga levasse uma bandeja de doces pros vizinhos do lado — “sobrou ontem à noite, trouxe prá vocês experimentarem”
— ao dar a idéia ele garaniu que no dia seguinte a bandeja ia voltar cheia de doces da vizinha.
Dito e feito. A “fachada” era tanto mais sólida que Ivan e Helga já tinham feito
muitas amizades na rua. Ele entrava nas peladas, ela nas rodas de comadres.
Era necessário, porém, evitar que as boas relações acarretassem demasiada familiaridade. Criou-se o hábito de receber os vizinhos sempre na varanda e de manter, por trás do trato amistoso, aquele recato próprio da gente humilde.
Do quartel da PM, embaixo da ladeira, saiam constantemente choques e jipões para operações em áreas suburbanas, mais próximas ao centro. Em Cascadura e Madureira havia bfitzen esporádicas mas o bairro parecia outro planeta. Apesar do intenso noticiário de rádio e TV, o povão da Tacaratú estava a muitos anos-luz de tudo aquilo.
O único comentário que Ivan conseguiu captar nas suas rondas exploratórias pelos bares da região, foi um crioulinho muito invocado, reclamando do policiamento no Meier, por onde passara na véspera.
— Os homis tava tudo oriçado! Diz que roubaram o cônsul!
Ivan voltou prá casa alardeando:
— Roubaram O cônsul! Roubaram O cônsul!
Tudo isso tinha graça, mas, enquanto as horas passavam lentamente, e os noticiários continuavam a anunciar que o governo não recebera nenhum comunicado, a angústia pairava densa. O ambiente foi ficando sombrio e todos concordavam em achar que o governo estava armando alguma maneira sutil de recusar as negociações
Eu temia as conseqüências O que aconteceria com o embaixador? A resposta a uma recusa era a morte. Tal era o postulado inerente à natureza daquele tipo de ação. ‘Se não se está disposto a levar até o fim, não se faz”. Era o refrão da firmeza revolucionária
No íntimo me era ainda mais difícil aceitar a lógica deste esquema, do que da outra vez. Era demasiada abstração frente ao ser humano, de carne e osso ali na minha frente. Não era um torturador, um responsável pela repressão ao nosso povo. Era apenas um sujeito boa praça, meio boêmio, que não tinha nada a ver com aquilo e até nutria sentimentos contrários ao regime, por trás da etiqueta diplomática.
— O que vocês vão fazer comigo, se o governo não soltar os presos? Foi lhe explicado que nesse caso ele seria transferido para outro aparelho mais confortável, onde ficaria preso indefinidamerte. Que seria um outro “caso Gomide”. Era uma alusão ao seqüestro do cônsul brasileiro em Montevidéo, que naquela época estava, já fazia meses, nas mãos dos Tupamaros, numa ação que, para nós no Brasil, foi péssima, pois, transformou o cônsul, um membro importante da TFP, num mártir.
Mas eu não estava certo desta explicação. Sabia que tínhamos um aparelho de recuo, onde funcionava o esquema médico e que ficava na zona rural. Nenhuma decisão fora tomada, mas, conhecendo a organização, eu achava que a tendência, em caso de recusa, era a sua “transferência”, mas não de aparelho.
A engrenagem era aterradora. Uma coisa era enfrentar a repressão a tiro, matar prá não morrer, durante uma ação ou uma fuga. Era concebível, também, o justicamento de torturadores e mesmo um episódio do tipo Dan Mitrione, o professor de interrogatórios da CIA, que ensinara a sua triste arte à polícia brasileira e uruguaia, antes de ser eliminado pelos Tupamaros depois que o governo de Montevidéo se tinha recusado a libertar os presos.
Mas, o caso do embaixador suíço, era totalmente diferente e a sua “transferência” seria uma tragédia de conseqüências incalculáveis, política e humanamente. Seria de certa forma, nos nivelarmos com os que matavam a sangue frio nossos companheiros.
Durante todo o dia, o governo continuou a negar ter recebido qualquer comunicado. Eu não tinha estômago para conversar com Bucher. Passei o dia do meu vigésimo aniversário, tentando me concentrar num livro de Wilfred Burchett sobre o Vietnã, fumando um cigarro atrás do outro e trocando monossílabos com os companheiros.
Ivan parecia muito calmo e eu sentia que ele me observava, tentando perscrutar por trás do meu silêncio tenso, alguma vàcilacão de índole pequeno burguesa Helga cuidava dos afazeres do lar, com ar de rotina. Daniel lia, lia, impassível.
Paulista rabiscava umas notas no papel. Ele tinha o hábito de escondê-las numa pasta. Naquele dia, porém, ele deixou o papel em cima da mesa, quando foi fazer o café na cozinha. Curioso, mas, autoreprimido, pelas regras de segurança, passei perto e dei uma vista d’olhos em diagonal nas anotações. Não retive o conteúdo, mesmo porque o que me chamou a atenção foi a caligrafia. Redondinha, bem desenhada, muito regular, parecia letra de menina-moça, bem comportada.
Eu conhecia aquela letra. Era a mesma dos bilhetes do comando nacional pro setor de inteligência, assinadas Cláudio. Agora tudo encaixava: o Smith & Wesson 38, cano longo, o “conheço esse cara de algum lugar”, a caligrafia. Paulista era Cláudio, isto é: Carlos Lamarca.
NEURA DE APARELHO
Dia 9. Alívio pela manhã. Declaração do governo admitindo ter tecebido um comunicado dos terroristas e enunciando seu propósito de salvaguardar a integridade de S. Excia., o embaixador helvético, sem, no entanto, se sujeitar a exigências de natureza a interferir na ordem pública. Pedia a lista dos 70 presos exigidos pelos seqüestradores.
Os jornais davam a entender que o governo Médici soltaria 70 presos sem atender, porém, às demais exigências que se supunham ser, por fontes dos órgãos de segurança, a difusão de um profuso comunicado, repetidas vezes e passagem gratuita nos trens da Central, Leopoldina e Linha Auxiliar, hipótese que segundo os jornais já fora descartada de véspera.
No mais, diatribes e editoriais inflamados contra os “terroristas apátridas”, pedindo mais repressão à subversão de inspiração forânea.
O governo suíço mal abriu a boca. Parecia cauteloso, muito cauteloso.
Reunião geral de nossa cédula político-militar, prá avaliar a situação. O governo não tinha aceito as exigências de cunho político e não tinha dito, ao certo, se libertava ou não, os 70 presos que íamos pedir. Solicitava apenas a lista dos companheiros.
Ivan insistia que não podíamos recuar em nada. Exigir todas as condições. Minha avaliação era diferente:
— Esse negócio de manifesto pela TV, de 4 em 4 horas, e passagem de trens grátis são exigências demasiado elevadas pro equilíbrio de forças que existe. As condições prá ditadura são diferentes da época do alemão. Suíça não tem tanta força e tá com uma posição um bocado mole. O governo Médici tá mais forte, que antes da copa. Tão todos cagando prá vida do embaixador e fazendo o possível prá localizar o aparelho. Querem uma lista. Pode ser uma indicação que eles aceitam soltar os presos. Prá nos tá grandioso, perfeito. Mais que isso, meu chapa, só com outro exército, mais forte que o deles!
Daniel concordou que seria muito difícil que aceitassem as demais exigências, e que devíamos limitar nossas ambições aos presos, e depois dar ainda uma insistida nas outras condições. Que em todo caso, porém, devía- mos mandar outro comunicado, cobrando as outras exigências formalmente e querendo a explicitacão, se iam realmente soltar todos os 70 que pedíssemos. Ivan reviu a sua posição e fechou com ele. Lamarca ouviu muito atentamente e lhe deu razão. Eu próprio terminei concordando, apesar de achar que ia ser um desperdício de tempo.
Mas, tinha a vantagem de mostrar ao inimigo que não estávamos ansiosos, nem amedrontados. Távamos aí, firmes, no aparelho mais procurado do Brasil.
Helga voltou da rua. Seguindo instruções detalhadas de Lamarca, tinha feito compras fora do bairro. Naquela manhã, já fizera as diárias para a trinca oficial da casa, na venda habitual do fim da ladeira. Mas, as
despesas a mais, devia ser enrustidas. Num bairro pobre, qualquer gasto maior chama atenção. Mesmo em comida.
Inda mais que as despesas que trazia eram de natureza especial. Quase luxo.
A caixa pesada continha um ventilador, que instalamos na sala de Bucher. Helga trazia igualmente uma bermuda bege, duas camisas e um par de chinelos. Para os cigarros, ela tivera um ponto com o pessoal da logística da UC. Alguém foi ao Copacabana Palace comprar um pacote de Bensori & Hedges, longos, que ele consumia a razão de 4 por dia.
— Na verdade fumo Bensons curtos, sem filtro — explicava.
Provou as bermudas e os chinelos e instalou-se frente ao ventilador.
— Vocês são uns caras muito amáveis, vejo que fazem o possível para minorar minhas privações, agora que já me seqüestraram. Os jovens são sempre idealistas, pensam em fazer revoluções, salvar o mundo. Depois é que um se convence de que é tudo um jogo de cartas marcadas, impossível de mudar, a não ser aos pouquinhos. Gostaria de tê-los conhecido noutras circunstâncias, lá na embaixada.
— Tá legal. Depois que tudo isso acabar, o senhor nos convida prum Chivas Regal na Embaixada, prá retribuir a hospitalidade, mas não pretendemos pedir asilo. Uisque puro com gelo.
— E como vou apresentá-los à minha governanta?
Risos gerais no aparelho, capuzes negros sacudindo em gargalhadas.
Tinha governanta. Era solteirão, segundo alguns, bicha. Mas, lá na Infra, ele não desmunhecava e só se queixava da falta de presença feminina.
Prresença feminina dizia, carregando no pre. Helga, com sua carinha japonesa e jeitão interior paulista, meio sem sal — e ainda por cima dentro do capuz — não entrava nos cômputos.
Bucher foi contando casos da sua vida de diplomata. Negociações secretas franco-argelinas, na Suíça, que ajudara a organizar, em 61, entre os representantes de De Gaulie e da FNL argentina. Viagens de barco, pelo mar Vermelho, num calor de 60º. Aventuras com Lady Hunt, antes dela ser mulher do embaixador britânico.
Depois acompanhava Lamarca, lvan e eu numa biriba a 2 mil, em parceria com o primeiro. Mais metódicos batiam a nossa dupla com inesperadas canastras e finalizações. Depois a janta e as primeiras rondas
A noite na Tacaratu era calma e poucos veículos passavem pela lodeira. Era dominada pelos trinados dos insetos e pelo latir dos cães. Até o cantar dos galos, no meio da penúltima ronda, de 2 às 6.
Engrenamos um cotidiano a infra da Tacaratu e se passaram uns três dias inconclusivos, feitos de espera, atenção nos noticiários, longas conversas e jogos de cartas com o embaixador, reuniões da célula, críticas e autocríticas, agressividade e angústia, dominando o astral. O governo Médici negava ter recebido qualquer comunicado.
Era tudo espera, muita espera, os minutos perpétuos, uns atrás dos outros, feito lesmas.
As manhãs, porém, eram boas. Na Tacaratu o sol brilhava preguiçoso. As lavadeiras atiravam as roupas aos tanques, a criançada e os desocupados jogavam pelada na rua, seus cantos e gritos chegavam ao aparelho, que pela manhã ficava mais descontraído. O sol fazia uma curta trajetória, entre as sombras do telhado e do muro externo. Era a hora do banho de sol democrático, em turnos de dois a dois, turno duplo e exclusivo pro hóspede, noblesse oblige.
Bucher, já vermelho por natureza, ficava um pimentão. Era um ritual divertido, sua ida ao banho de sol.
Primeiro ele se preparava. Ficava de bermuda e chinelos. Aí passávamos uma cadeira pela janela do quartinho dos fundos e ele dava a volta pelo outro lado, pela saleta da frente e cozinha. Disfarçávamos cada vez menos a cara. Os capuzes eram incômodos prá respirar e falar e os furos estavam ficando cada vez maiores. Na hora da sua passagem matinal pela cozinha, ninguém tinha saco de vestí-los. Simplesmente se virava a cara. Ele muito aéreo, fingia não olhar.
De manhã, Helga, Ivan e Daniel, costumavam sair, em horas diferentes, para compras e contatos. O espaço vital da casinha crescia um pouco. Lamarca, eu e o embaixador, permanecíamos “fechados” na casa. Quase sempre, porém, ficava um dos outros três para atender a eventualidades.
Era freqüente a presença de vizinhos ao portão, às vezes na varanda. Eram todos muito respeitosos da intimidade daquele lar de pobre. Um pequeno senão. A filha da vizinha, uma negrinha de 15 anos, vivia cercando a casa, curiosa. Vinha até a varanda sorrateira, espichando o olho, quando a porta se abria e Helga saía para atendê-la.
Depois ficava de papo furado, sempre muito curiosa. Será que tinha desconfiado de alguma coisa?
Muitas horas foram consumidas na elaboração de uma política prá pretinha curiosa. Era engraçado, porque nem eu, nem Lamarca a tínhamos visto, só os residentes oficiais a conheciam. Vivíamos numa brincadeira de esconde-esconde com ela.
Lamarca gostava muito de escrever na mesinha que ficava sob a janela da entrada. Por ali entrava mais luz e era mais agradável, que a mesa da cozinha ou o quartinho dos fundos. Era obrigado a interromper, cada vez que a menina aparecia, prá pedir um ovo ou um espremedor de laranja, prá mãe que tinha mandado.
A arte era procurar os ângulos cegos da porta entreaberta e evitar as frestas entre as dobradicas. Ficamos exímios, mas, nesta reunião foram decididas medidas mais severas para a situação provocada pela abelhuda. Nossa circulação ficou restrita às outras peças, até a noite. Enquanto durasse a insistência da filha do vizinho. Assim a infra da Tacaratu, ficou ainda mais apertada.
RASGANDO CAPUZ
Os órgãos de informação sustentaram até o fim a inexistência de qualquer comunicado n.° 2. O governo, através de Buzaid, negava sua autenticidade e, segundo a imprensa, dezenas de outros comunicados falsos tinham sido recebidos.
Não íamos nessa conversa, pois, junto ao nosso, ia um bilhete de Bucher, em francês, para o chanceler Graber. A repressão tinha se antecipado à imprensa na recolha da maioria das cópias, deixadas em vários Pontos da zona sul e a mesma ficou proibida de falar no assunto. Era a censura, e mais: a mobilização de todos os midia pelo regime.
Decidimos mandar o comunicado n.° 3, cobrando apenas a garantia da soltura dos 70 presos.
Passaram mais dois ou três dias e o poder com seus midias amestrados, seguiu no mesmo jogo. Não recebia nenhum comunicado. Ao mesmo tempo, o tom do vídeo, emissoras e jornais passou a patético. Por trás do “silêncio desumano”dos seqüestradores, descortinavam-se as mais negras suspeitas. Estaria ainda vivo o diplomata do país amigo? ou já teria sido vitimado pela sanha sangüiriária dos agentes de Havana?
Nestas alturas, era evidente que havia, por parte do governo, um jogo maquiavélico, muito competente. Para o mundo — que tirava suas informações dos midia, ou dos canais oficiais — parecia solícito, disposto a negociar, de acordo com os padrões consagrados nos precedentes anteriores. De fato, tentava ganhar tempo, para localizar e estourar o aparelho.
As buscas continuavam. Centenas de casas e edifícios eram vasculhados, mas, na sua maioria, as operações se concentravam nas regiões mais próximas ao local do seqüestro, e nos altos da Tijuca. Os bloqueios se multiplicavam pelas ruas e o dispositivo parecia extenuado e nervoso. Surgiam as primeiras vítimas. Na rua Alice, um casal foi alvejado e morto, num Corcel, ao se atrapalhar frente uma blitz. O rapaz estava sem carteira. Numa rua próxima, em Santa Teresa, foi metralhado o pacato habitante de um falso aparelho, “estourado” a partir duma suspeita ou denúncia. Pensou que fosse assalto e reagiu.
Pelos jornais alimentavam constantemente o clima de que o aparelho onde estava escondido o embaixador suíço, estava pra cair — já fora localizado, já tinha a luz e o gás cortados — garantiam certas versões.
Ficou claro que não receberiam nem o 2 nem o 3, mandássemos quantos mandássemos. Depois de muitas discussões e reuniões, foi decidido enviarmos a lista dos 70 nomes que a ditadura dissera aguardar “no firme propósito de salvaguardar a vida ea integridade de S. Excia., o embaixador da Suíça”.
O listão já estava pronto antes da ação. Dera muita briga, panos prás mangas. Como da outra vez, pedíamos quadros e aliados da VPR — em maior número — e companheiros de outras organizações armadas. Havia poucos dados vindos da cadeia, muitas listas propostas, muitas versões contraditórias, sobre comportamento na prisão, muitas simpatias e antipatias.
O único grupo de presos, com o qual mantínhamos um canal, era com a Ilha das Flores, e nesse caso, o critério dos próprios prisioneiros foi respeitado
Para tentar varar o bloqueio de informações, fizemos chegar uma das listas diretamente à Agência France Presse, ao mesmo tempo que remetíamos outras para os jornais cariocas.
A lista da AFP seguiu com o carimbo vermelho VPR e uma carta do embaixador e as demais cópias com bilhetes de Bucker anexos, autenticando, mas, não o fizemos rubricar a própria. No meio da tarde, pintou um comunicado do Ministério da Justiça, negando a autenticidade à lista de presos, recebida por várias redações cariocas e por uma agência internacional.
Nem por isso deixou de prender e expulsar do país o diretor da mesma, François Pelou, por ter passado no telex a notícia.
O jornalista francês ficou um dia detido no DOPS, numa cela cheia de merda. Depois foi levado ao Galeão e metido no primeiro voo prá Paris.
O ministro Buzaid fez divulgar uma nota precisando que só seria considerada oficial a lista que: 1) tosse rubricada pelo embaixador; 2) fosse endereçada ao seu ministério.
No dia seguinte mandamos outra cópia nessas condições. À noite, o governo admitiu tê-la recebido. Anunciou que seria estudada. Sem mais precisões. Os midia começaram a colocar a perspectiva de um desfecho favorável, pela primeira vez.
A tensão foi cedendo lugar ao tédio. Os minutos sempre compridos. As repetidas esperas do dia. Espera do noticiário do meio-dia. Do noticiário das oito. À espera da volta de Daniel, cujo teto era às sete. Era quem fazia o contato da tarde com a organização.
Foi depois de uma destas saídas, que trouxe um informe alarmante. Tinha caído o aparelho alternativo, na zona rural. Mais precisamente, o esquema médico em Jacarepaguá. Era alugado por um quadro legal, transferido de Porto Alegre, em contato com Inês. Tinha sumido há dias e agora ela descobrira, por vias travessas, sua prisão, lá para o dia 9. Não tinha relação com a nossa operação, mas com outras quedas no sul do país. Em todo caso, era uma pista que levaria à VPR, não tivessem eles matado o gaúcho no pau, logo nos primeiros dias.
A espera dos companheiros que saíam era angustiante. Com todos em casa era difícil o aparelho cair, porque a fachada legal estava muito boa e a repressão, perdida pela imensidão da Guanabara e do grande Rio, não dava bola praquele pacato subúrbio.
Mas, quem tinha pontos com as estruturas da organização, lá fora, podia cair nesses pontos e, com o grau de tortura que se abateria sobre um suposto membro da guarda do esconderijo, eu não botava minha mão no fogo por ninguém.
Ivan tinha contatos com os coordenadores de GTA da U. C. Juarez de Brito e Daniel, com várias áreas de simpatizantes e com as organizações da frente armada. Esses contatos eram limitados ao máximo, mas cada vez que demoravam mais, as paredes começavam a suar de angústia e.apertar ao redor.
Era semana e meia trancado naquela casa e começava a sentir uma certa claustrofobia. Os müsculos das pernas doíam de falta de andar, os cigarros queimavam a garganta.
As discussões tolas viravam rotina. Descuidei muito das tarefas de arrumação e fui duramente criticado, em sucessivas sessões de crítica e autocrítica da célula político-militar.
Além disso as picuinhas eram imensas.
Helga resmunava o tempo todo, com ou sem razão. Uma vez me acusou de pequeno-burguês, por ter fritado um ovo na manteiga.
— Gastar manteiga à toa. mesmo coisa de pequeno-burguês’
As relações com Ivan eram as costumeiras, mas quando o assunto eram quartos bagunçados e garfos sem lavar na pia, meu comportamento individualista era unanimemente fustigado. Lamarca garantia nunca ter visto nada igual na vida.
provável que tivesse razão.
Mas, a causa da minha punição formal e orgânica, aplicada nesses dias, foi outra.
Uma das terapias ocupacionais que eu tinha inventado, para aliviar o tédio daquelas horas intermináveis, era ficar limpando as armas. Gostava de desmontar a Colt 45, percrustá-la por dentro, parafuso por parafuso. Também passava tempos tirando e pondo as balas verdes-douradas no pente.
Alguém levantou objeção àquela válvula de escape. Lamarca concordou. As armas eram prá estar prontas todo o tempo. Só sair dos seus lugares de sempre, em caso de necessidade, ou então para treinamento a seco — só os revólveres — em horários preestabelecidos, no quartinho dos fundos e não ali na entrada. Isso de ficar bundando com arma pela casa, era convite prum acidente.
Ferido no orgulho — pô mexo com arma desde criança — concordei e passeis uns dias refreando os ímpetos. Mas certa ocasião sentei, inquieto no sofá da entrada e instintivamente meti a mão embaixo do travesseiro, peguei a 45 e pus uma bala na câmara, com um dique metálico que ecoou pela casa.
Nem o palavrão que soltei, ao lembrar, nem a prova cabal que a arma estava travada me pouparam do monumental estouro, da descompustura que nos seus tempos de capitão, Lamarca devia passar nos recos recalcitrantes.
Humildemente fiz minha autocrítica, só faltei bater continência e fui me isolar no quartinho dos fundos. Quando Daniel regressou, reuniram- se ambos e, ouvido brevemente Ivan, decidiram, em nome do comando nacional, punir-me com a suspenso de duas reuniões da célula políticomilitar.
Pedi asilo na sala do embaixadór e ficamos jogando uma biriba a 4 mil. Ele estava bem disposto sob a permanente fumaça do seu Benson & Hedges, ao lado do cinzeiro, transbordando guimbas. Lembrei dele, boquiaberto, quando lhe informamos o número de presos a serem pedidos.
—Setenta... Setenta???
Tinha ficado repetindo com os olhos muito arregalados e as duas mãos nos ouvidos. Achou graça quando alguém lhe disse que era o mais valioso de todos embaixadores. A Suíca, quem diria.
À medida em que jogávamos longas partidas de alternadas vitórias, eu sentia o rosto coçar cada vez mais, sob a fazenda suada do capuz. No início eram três furinhos. Um prá cada olho e um prá respirar. Foram crescendo até se transformar num único, grande. Meu rosto, já praticamente aparecia, mas o pano negro continuava a esquentar terrivelmente e penicar as partes cobertas.
Libertei-as de um último rasgâo. Pouco depois, entraram na sala os outros e fiquei meio inquieto de estar com a cara destapada. Mais uma crítica?
Lamarca já estava de bom humor e teve um acesso de riso. Ivan também, se divertiu com aquele capuz desfeito e minha cara de fora.
Bucher já vira praticamente todo mundo e decidimos, naquela hora,. abolir os capuzes. Não acreditávamos que uma vez em liberdade, ele aceitasse colaborar com a polícia na nossa identificação.
Ao contrário do alemão, que pedira para o Bacuri pôr o capuz — “I dont want to see faces” — Bucher ficou contente com os rostos descobertos.
— Dava-lhes uma aparência muito sinistra. Prefiro ver as caras. Imaginava-os mais velhos. Que idade têm vocês?
O mais velho era Lamarca, com 32 anos. Daniel andava pelos 24, Ivan 21 e eu 20, revelamôs-lhe.
Ele ficou matutando e mais tarde, quando estávamos sozinhos de novo na peça, me perguntou:
— Será que vale a pena entrar nessa, com vinte anos? Arriscar a vida por uma causa política? Você realmente está convencido que pode mudar is coisas? Está realmente, convencido disto?
Eu estava.
Ao contrário dos outros sequestros, o do embaixador suiço foi o mais dramático. Pois o governo demorou a atender as exigências e se recusou a libertar muitos prisioneiros que foram pedidos na primeira lista mandada pelos guerrilheiros. Após mandarem outra lista, com mudança de algus nomes, o governo militar cedeu às exigências e aceitou libertar os 70 presos políticos que foram banidos do país e exilados no Chile.
Lá eles gravaram o documentário BRAZIL: A REPORT ON TORTURE – Brasil:
Um relatório sobre a tortura, denunciando as torturas praticadas pelo regime militar.
Durante a soltura do embaixador suíço aconteceu algo inusitado. Ele seguiu as instruções dos guerrilheiros de pegar um táxi e ir até a casa de seu Auxiliar mais próximo. De lá ele foi de carro oficial até a sua casa onde aguardavam jornalistas e um grupo de homens da repressão fortemente armados esperando um táxi e, talvez, um guerrilheiro que porventura estivesse com Bucher. De tanto esperarem um táxi ninguém notou a cara risonha do embaixador no vidro aberto da limusine, passando por eles, e entrando tranquilamente na casa. Os jornalistas e os policiais somente viram o embaixador quando ele, já de banho tomado, apareceu para entrevistas ao lado de sua governanta como podemos ver na foto abaixo.
Com isso surgiu até uma lenda de que Giovanni Enrico Bucher nunca foi sequestrado. Mas, na verdade, havia ficado escondido em sua mansão por 40 dias, pegando sol na varanda, até ser descoberto pelos jornalistas. Há quem acredite.
Reportagem da Globo sobre o Sequestro do Embaixador Suíço
Carbonário. [Do it. carbonaro, ‘carvoeiro’] S. m. 1. Membro de uma sociedade secreta e revolucionária que atuou na Itália, França e Espanha no princípio do século XIX. 2. P. ext. Membro de qualquer sociedade secreta e revolucionária.
Sirkis, Alfredo. Os Carbonários: memórias da guerrilha perdida. São Paulo: Editora Parma, 1981.
Veja entrevistas com ex-guerrilheiros:
Veja documentários sobre a guerrilha no Brasil:
Documentário Tempo de Resistência: é o mais completo sobre a luta do povo brasileiro contra a ditadura militar.
Documentário Hércules 56: sobre o sequestro do embaixador americano
Documentário Brasil: um relatório sobre tortura: feito pelos guerrilheiros trocados pelo embaixador suiço.
Reportagem sobre a Guerrilha do Araguaia
Veja o documentário 15 filhos de guerrilheiros: Eles falam de suas vidas no meio da ditadura.
Veja o grupo da Revista Subversivos - Histórias em quadrinhos baseada na luta armada.
Leia mais no Comunistas.
Buscado no GilsonSampaio
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