terça-feira, 23 de agosto de 2011

Caça noturna

Via JB

Mauro Santayana
Era um pequeno país, ocupado por tropas inimigas. Como ocorre nessas situações, não faltavam os colaboracionistas canalhas. Um deles, antigo assaltante à mão armada, e que cometera vários latrocínios, fora libertado da prisão por ordem do governo títere, a fim de integrar a equipe de interrogadores da polícia política, comandada pelos oficiais estrangeiros.
Não era um brutamontes comum. Tratava-se de criminoso frio, senhor de raciocínio rápido e lógico. Tinha suas leituras e conhecia, como poucos, as histórias reais e fictícias de grandes matadores. Um só homem seria capaz de interromper seus atos abjetos, e esse homem fora seu companheiro de delitos e de cárcere. Quando soube da crueldade com que ele agia como torturador de suspeitos de pertencer à pequena e heroica resistência, o antigo companheiro decidiu que deveria matá-lo. Não pertencia a qualquer grupo; na verdade, até então lhe era indiferente ser governado por nacionais ou estrangeiros. Como sempre agira fora da lei, não se sentia membro da sociedade e, menos ainda, patriota. Mas não podia aceitar que o companheiro se misturasse aos policiais, a eles servisse, para seviciar pessoas que estavam também contra a lei, como eles sempre haviam estado.
Como sempre agira fora da lei, não se sentia membro da sociedade e, menos ainda, patriota
Poderia armar-lhe uma emboscada, mas sabia que, astuto como sempre, dificilmente cairia no laço. Era preciso agir como agiam os resistentes, e seria melhor atribuir a eles a execução. Primeiro, porque isso o protegeria. E depois, pensando bem, como eram os resistentes jovens de grande coragem, seria uma forma de ajudá-los, na construção de sua fama e futura glória.
A grande arma do caçador é a paciência
Durante muitas semanas, usando vários disfarces, seguiu-o em sua rotina. Estava sempre protegido por um ou dois policiais de escolta, e isso tornava mais difícil construir plano seguro para o ato necessário. Se matasse quem o estivesse protegendo – o que teria que ser feito antes – haveria tempo para que ele percebesse e reagisse, o que seria muito perigoso.
E, mais: como se tratasse de um vil traidor, vivia junto com outros sujeitos também canalhas, em pequeno quartel da polícia. Não tinha como atingi-lo em casa, e dormindo, de preferência. Mas a grande arma do caçador é a paciência. Uma noite, quando já desistia da espera, em ponto conveniente do caminho, notou que seu guardião daquela noite estava bêbado. Com a boa e silenciosa arma, a bola de bilhar dentro de uma meia de cano longo, os passos ligeiros de felino atrás da presa, aproximou-se e deu o golpe seco, um pouco acima da nuca do bêbado que cambaleava. O outro voltou-se rapidamente, ao ouvir o baque do corpo sobre a calçada. A rua estava deserta, eram apenas os dois. T., o torturador, reconheceu-o logo. Na hesitação daqueles segundos, N., o justiceiro, fingiu-se assustado e surpreso, como se, só naquele momento, soubesse de que se tratava do antigo comparsa.
A luta foi curta. T. levou a mão ao coldre, sacou a arma, enquanto N. o atingia com a mesma funda, no queixo, que se abriu, jorrando sangue. T. disparou dois tiros, um atingiu N. no braço esquerdo, o outro, no pulmão. Agarraram-se, trôpegos, ambos feridos. N. conseguiu golpear mais uma vez, embora, a tão curta distância, sua arma fosse quase inútil. Não desistiu, e a mão direita conseguiu arrancar a arma do contendor e disparar duas vezes contra o ventre, no vão macio por debaixo das costelas, de baixo para cima.
Os tiros haviam atraído a patrulha policial que protegia a área. “É uma briga particular”, disse T., o torturador, pouco antes de morrer. Conduziram N. ao hospital. No caminho, com muitas dores e cansaço, ele pensou bastante no que fora a sua vida e no filho que abandonara e já devia estar um homem. Quando o médico disse ao chefe dos policiais que seria melhor levá-lo logo para o necrotério, cresceu em si mesmo. Identificou-se com o verdadeiro nome, que não usava desde o primeiro assalto. Buscando reservas de força no pulmão inundado de sangue, tentou gritar, a voz saiu curta e soturna, mas clara: Matei um traidor! Viva a nossa pátria! Médico e enfermeiros o olharam com cautelosa simpatia. Um dos policiais praguejou, o outro olhou para o teto.
Sentiu-se repentinamente leve, cansado e sonolento. A dor passou. Em segundos, seus olhos se fecharam, e ele parecia feliz.

Buyscado no Gilson Sampaio

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