Posted by Quem tem medo da democracia?
Prezado professor Freud,
A proposta da Liga das Nações e de seu Instituto Internacional para a Cooperação Intelectual, em Paris, de que eu convidasse uma pessoa, de minha própria escolha, para um franco intercâmbio de pontos de vista sobre algum problema que eu poderia selecionar, oferece-me excelente oportunidade de confereciar com o senhor a respeito de uma questão que, da maneira como as coisas estão, parece ser o mais urgente de todos os problemas que a civilização tem de enfrentar. Este é o problema: Existe alguma forma de livrar a humanidade da amaeaça da guerra? É do conhecimento geral que, com o progresso da ciência de nossos dias, esse tema adquiriu significação de assunto de vida ou morte para a civiliazação, tal como a conhecemos, não obstante, apesar de todo o empenho demosntrado, todas as tentativas de solucioná-lo terminaram em lamentável fracasso.
Ademais, acredito que aqueles cujas atribuição é atacar o problema de forma profissional e prática, estão apenas adquirindo crescente consciência de sua impotência para abordá-lo, e agora possuem um vivo desejo de conhecer os pontos de vistas de homens que, absorvidos na busca da ciência, podem mirar os problemas do mundo da perspectiva que a disntância permite. quanto a mim, o objetivo habitual de meu pensamento não me permite uma compreenssão interna das obscuras regiões da vontade e do sentimento humano. assim, na indagação ora proposta, posso fazer pouco mais que esclarecer a questão em referênciae, prepaprando o terreno das soluções mais óbvias, possibilitar que o senhor proporcione a elucidação do problema mediante o auxílio do seu profundo conhecimento da vida instintiva do homens. Existem determinados obstáculos pasicológicos cuja existência um leigo em ciências mentais pode obscuramente entrever, cujas inter-relações e filigranas ele, contudo, é incompetente para compreender; estou convencido que o senhor sera capaz de sugeriri métodos educacionais situados mais ou menos fora dos objetivos da política, os quais eliminarão esses obstáculos.
Como pessoa isenta de preconceitos nacionalistas, pessoalmente vejo uma forma simples de abrodar o aspecto superficial (isto é, administrativo do problema: a instituição, por meio de acordo internacional, de um organismo legislativo e judiciário para arbitrar todo conflitto que surja entre nações. Cada nação submeter-se-ia à obediência às ordens emanandas desse organismo legislativo, a recorrer às suas decisões em todos os litígios, e aceitar irrestritamente suas decisões e a pôr em prática todas as medidas que o tribunal considerasse necessárias para a execução de seus decretos. Já de início, todavia, defronto-me com uma dificuldade; um tribunal é uma instituição humana que, em realação ao poder a que se dispõe, é inadequada para fazer cumprir seus veredictos, está muito sujeito a ver suas decisões anuladas por pressões extrajudiciais. este é um fato com que temos que contar; a lei e o poder inevitavelmente andam de mãos dadas, e as decisões juridicas se aproximam mais da justiça ideal exigida pela comunidade (em cujo nome e em cujos interesses esses veredictos são pronunciados), na medida em que a comunidade tem efetivamente o poder de impor o respeito aos seu ideal jurídico.
Como pessoa isenta de preconceitos nacionalistas, pessoalmente vejo uma forma simples de abrodar o aspecto superficial (isto é, administrativo do problema: a instituição, por meio de acordo internacional, de um organismo legislativo e judiciário para arbitrar todo conflitto que surja entre nações. Cada nação submeter-se-ia à obediência às ordens emanandas desse organismo legislativo, a recorrer às suas decisões em todos os litígios, e aceitar irrestritamente suas decisões e a pôr em prática todas as medidas que o tribunal considerasse necessárias para a execução de seus decretos. Já de início, todavia, defronto-me com uma dificuldade; um tribunal é uma instituição humana que, em realação ao poder a que se dispõe, é inadequada para fazer cumprir seus veredictos, está muito sujeito a ver suas decisões anuladas por pressões extrajudiciais. este é um fato com que temos que contar; a lei e o poder inevitavelmente andam de mãos dadas, e as decisões juridicas se aproximam mais da justiça ideal exigida pela comunidade (em cujo nome e em cujos interesses esses veredictos são pronunciados), na medida em que a comunidade tem efetivamente o poder de impor o respeito aos seu ideal jurídico.
Atualmente, porém, estamos longe de possuir qualquer organização supranacional competente para emitir julgamentos de autoridade incontestável e garantir absoluto acatamento à execução de seus veredictos. Assim, sou levado ao meu primeiro princípio; a busca da segurança internacional envolve a renúncia incondicional, por todas as nações, em determinada medida, à sua liberdade de ação, ou seja, a sua soberania, e é absolutamente evidente que nenhum outro caminho pode conduzir a essa segurança.
O insucesso, malgrado sua evidente sinceridade, de todos os esforços, durante a última década, no sentido de alcançar essa meta, não deixa lugar a dúvida de que estão em jogo fatores psicológicos de peso que paralisam tais esforços. alguns desses fatores são mais fáceis de detectar. O intenso desejo de poder, que caracteriza a classe governante em cada nação, é hostil a qualquer limitação de sua soberania nacional. Essa fome de poder político está acostumada a medrar nas atividades, de um outro grupo, cujas aspirações são de caráter econômico, puramente mercenário. Refiro-me especialemente a esse grupo reduzido, porém decidido, existente em cada nação, composto de indivíduos que, indiferentes às condições e aos controles sociais, consideram a guerra, a fabricação e venda de armas simplesmente como uma oportunidade de expandir seus interesses pessoais e ampliar sua autoridade pessoal.
O reconhecimento deste fato, no entanto, é simplesmente o primeiro passo para uma situação da situação atual. Logo surge uma outra questão, como é possível a essa pequena súcia dobrar a vontade da maioria, que se resigna a perder e a sofrer com uma situação de guerra, a serviço da ambição de poucos? (Ao falar em maioria, não excluo os soldados, de todas as graduações, que escolheram a guerra como profissão, na crença de que estejam servindo à defesa dos mais altos interesses de sua raça e que o ataque seja, muitas vvezes, o melhor meio de defesa.) Parece que uma resposta óbvia a essa pergunta seria que a minoria, a classe dominante atual, possui as escolas, a imprensa e, geralmente também a Igreja, sob seu poderio. Isso possibilita organizar e dominar as emoções das massas e torná-las instrumento da mesma minoria.
Ainda assim, sequer essa resposta proporciona uma solução completa. Daí surge uma nova questão: como esses mecanismos conseguem tão bem despertar nos homens um entusiasmo extremado, a ponto de sacrificarem suas vidas? Pode haver apenas uma resposta. É porque o homem encerra dentro de si um desejo de ódio e destruição. Em tempos normais, essa paixão existe em estado latente, emerge apénas em circunstâncias anormais; é, contudo, relativamente fácil despertá-la e elevá-la à potência de psicose coletiva. Talvez ai esteja o ponto crucial de todo o complexo de fatores que estamos considerando, um enigma que só um especialista na ciência dos instintos humanos pode resolver.
O reconhecimento deste fato, no entanto, é simplesmente o primeiro passo para uma situação da situação atual. Logo surge uma outra questão, como é possível a essa pequena súcia dobrar a vontade da maioria, que se resigna a perder e a sofrer com uma situação de guerra, a serviço da ambição de poucos? (Ao falar em maioria, não excluo os soldados, de todas as graduações, que escolheram a guerra como profissão, na crença de que estejam servindo à defesa dos mais altos interesses de sua raça e que o ataque seja, muitas vvezes, o melhor meio de defesa.) Parece que uma resposta óbvia a essa pergunta seria que a minoria, a classe dominante atual, possui as escolas, a imprensa e, geralmente também a Igreja, sob seu poderio. Isso possibilita organizar e dominar as emoções das massas e torná-las instrumento da mesma minoria.
Ainda assim, sequer essa resposta proporciona uma solução completa. Daí surge uma nova questão: como esses mecanismos conseguem tão bem despertar nos homens um entusiasmo extremado, a ponto de sacrificarem suas vidas? Pode haver apenas uma resposta. É porque o homem encerra dentro de si um desejo de ódio e destruição. Em tempos normais, essa paixão existe em estado latente, emerge apénas em circunstâncias anormais; é, contudo, relativamente fácil despertá-la e elevá-la à potência de psicose coletiva. Talvez ai esteja o ponto crucial de todo o complexo de fatores que estamos considerando, um enigma que só um especialista na ciência dos instintos humanos pode resolver.
Com isso chegamos à nossa última questão. é posssível controlar a evolução da mente do homem, de modo a troná-la à prova das psicoses do ódio e da destrutividade?
Aqui não me estou referindo tão-somente às chamadas massas incultas, a experiência prova que é, antes, a chamada “Intelligetzia” a mais inclinada a ceder a essas desastrosas sugestões coletivas, de vez que o intelectual não tem contato direto com o lado rude da vida, mas as encontra em suas formas sintéticas mais fácil -na página impressa.
Para concluir: Até aqui somente falei das guerras entre nações, aquelas que se conhecem como conflitos internacionais. Estou, porém, bem consciente de que o instinto agressivo opera sob outras formas e em outras circusntâncias. (Penso nas guerras civis, por exemplo, devidas à intolerância religiosa, em tempos precedentes, hoje em dia, contudo, devidas a fatores sociais; ademais, também nas perseguições a minorias raciais.) Foi deliberada a minha insistência naquilo que é a mais tipica, mais curel e extravagante forma de conflito entre homem e homem, pois aqui temos a melhor ocasião de descobrir maneiras e meios de tornar impossível qualquer conflito armado.
Para concluir: Até aqui somente falei das guerras entre nações, aquelas que se conhecem como conflitos internacionais. Estou, porém, bem consciente de que o instinto agressivo opera sob outras formas e em outras circusntâncias. (Penso nas guerras civis, por exemplo, devidas à intolerância religiosa, em tempos precedentes, hoje em dia, contudo, devidas a fatores sociais; ademais, também nas perseguições a minorias raciais.) Foi deliberada a minha insistência naquilo que é a mais tipica, mais curel e extravagante forma de conflito entre homem e homem, pois aqui temos a melhor ocasião de descobrir maneiras e meios de tornar impossível qualquer conflito armado.
Sei que nos escritos do senhor podemos encontrar respostas, explícitas ou implicitas, a todos os aspectos desse problema urgente e absorvente. Mas seria da maior utilidade para nós todos que o senhor apresentasse o problema da paz mundial sob o enfoque das suas mais recentes descobertas, pois uma tal apresentação bem poderia demarcar o caminho para novos e frutíferos métodos de ação.
Muito cordialmente,
A. Einstein
Viena, setembro de 1932
Prezado professor Einstein,
Quando soube que o senhor tencionava convidar-me para um intercâmbio de pontos de vista sobre um assunto que lhe interessava e que parecia merecer o interesse de outros além do senhor, aceitei prontamente. Esperava que o senhor escolhesse um problema situado nas fronteiras daquilo que é atualmente congnoscível, um problema em relação ao qual cada um de nós, físico e psicólogo, pudesse ter o seu ângulo de abordagem especial, e no qual pudéssemos nos encontrar, sobre o mesmo terreno, embora partindo de direcções diferentes.
O senhor apanhou-me de surpresa, no entanto, ao perguntar o que pode ser feito para proteger a humanidade da maldição da guerra. Inicialmente me assustei com o pensamento de minha -quase escrevi “nossa”- incapacidade de lidar com o que parecia ser um problema prático, um assunto para estadistas. Depois, no entanto, percebi percebi que o senhor havia proposto a questão, não na condição de cientista da natureza e físico, mas como filantropo: o senhor estava seguindo a sugestão da Liga das Nações, assim como Fridtjof Nansen, o explorador polar, assumiu a tarefa de auxiliar as vítimas famintas e sem teto da guerra mundial. Além do mais, considerei que não me pediam para propor medidas práticas, mas sim apenas que eu delimitasse o problema da evitação da guerra tal como ele se configura aos olhos de um cientista da psicologia. Também nesse ponto, o senhor disse quase tudo o que há a dizer sobre o assunto. Embora o senhor se tenha antecipado a mim, ficarei feliz em seguir no seu rasto e me contentarei em confirmar tudo o que o senhor disse, ampliando-o com o melhor do meu conhecimento -ou das minhas conjecturas.
O senhor começou com a relação entre o direito e o poder. Não se pode duvidar que seja este o ponto de partida correto da nossa investigação. Mas permita-me substituir a palavra “poder” pela palavra mais nua e crua , violência? Atualmente, direito e violência se nos afiguram como antíteses. No entanto, é fácil mostrar que uma se desenvolveu da outra e, se nos reportarmos às origens primeiras e examinarmos como essas coisas se passaram, resolve-se o problema facilmente. Perdoe-me se, nessas considerações que se seguem, eu trilhar chão familiar e comummente aceito, como se isto fosse novidade, o fio de minhas argumentações exige.
É, pois, um princípio geral que os conflitos de interesse entre homens são resolvidos pela violência. É isso que se passa em todo o reino animal, do qual o homem não tem motivo por que se excluir. No caso do homem, sem dúvida ocorrem também conflitos de opinião que podem chegar a atingir as mais raras nuanças da abstracção e que parecem exigir alguma outra técnica para sua solução. esta é, contudo, uma complicação a mais.
No início, uma pequena horda humana, era a superioridade da força muscular que decidia quem tinha a posse das coisas ou quem fazia prevalecer sua vontade. A força muscular logo foi suplementada e substituída pelo uso dos instrumentos: o vencedor era aquele que tinha as melhores armas ou aquele que tinha a maior habilidade no seu manejo. A partir do momento em que as armas foram introduzidas, a superioridade intelectual já começou a substituir a força muscular bruta; mas o objetivo final da luta permanecia o mesmo – uma ou outra facção tinha de ser compelida a abandonar suas pretensões ou suas objeções, por causa do dano que lhe havia sido infligido e pelo desmantelamento de sua força.
Conseguia-se esse objetivo de modo mais completo se a violência do vencedor eliminasse para sempre o adversário, ou seja, se o matasse. Isto tinha duas vantagens: o vencido não podia reestabelecer sua oposição, e seu destino dissuadia outros de seguirem o seu exemplo. Ademais disso, matar um inimigo satisfazia uma inclinação instintual, que mencionarei posteriormente. À intenção de matar, opor-se-ia a reflexão que o inimigo podia ser utilizado na realização de serviços úteis, se fosse deixado vivo e num estado de intimidação. Nesse caso, a violência do vencedor contentava-se com subjugar, em vez de matar, o vencido.
Foi este o início da ideia de poupar a vida de um inimigo, mas a partir daí o vencedor teve que contar com a oculta sede de vingança do adversário vencido e sacrificou uma parte de sua própria segurança.
Esta foi, por conseguinte, a situação inicial dos fatos, a dominação por parte de qualquer um que tivesse poder maior – a dominação pela violência bruta ou pela violência apoiada no intelecto. Havia um caminho que se estendia da violência ao direito ou à lei. Que caminho era este? Penso ter sido apenas um; o caminho que levava ao reconhecimento do fato de que a força superior de um único individuo, podia se contrapor a união de diversos indivíduos fracos.
“L’union fait la force.” A violência podia ser derrotada pela união, e o poder daqueles que se uniam representava, agora, a lei, em contra posição à violência do indivíduo só.
Vemos, assim, que a lei é a força de uma comunidade. Ainda é violência, pronta a se voltar contra qualquer indivíduo que se lhe oponha: funciona pelos mesmos métodos e persegue os mesmo objetivossuperintender a execução dos atos legais de violência. O reconhecimento de uma entidade de interesse como estes levou ao surgimento de vínculos emocionais entre os membros de um grupo de pessoas unidas – sentimentos comuns, que são a verdadeira fonte de sua força.
Acredito que com isso, já tenhamos todos os elementos essenciais: a violência suplantada pela transferência do poder a uma unidade maior, que se mantém unida por laços emocionais entre seus membros. O que resta dizer não é senão uma ampliação e uma repetição deste fato.
A situação é simples enquanto a comunidade consiste em apenas poucos indivíduos igualmente fortes. as leis de uma tal associação irão determinar o grau em que, se a segurança da vida comunal deve ser garantida, cada indivíduo deve abrir mão de sua liberdade pessoal de utilizar a sua força para fins violentos.
Um estado de equilíbrio dessa espécie, porém, só é concebível teoricamente. Na realidade, a situação complica-se pelo fato de que, desde os seus primórdios, a comunidade abrange indivíduos de força desigual -homens e mulheres, pais e filhos – e logo, como conseqüência da guerra e da conquista, também passa a incluir vencedores e vencidos, que se transformam em senhores e escravos. A justiça da comunidade então passa a exprimir graus desiguais de poder nela vigentes. as leis são feitas por e para os membros governantes e deixam pouco espaço para os direitos daqueles que se encontram em estado de sujeição. Dessa época em diante, existem na comunidade dois fatores em atividade que são fonte de inquietação relativamente a assuntos da lei, mas que tendem, ao mesmo tempo, a um maior crescimento da lei.
Primeiramente são feitas, por certos detentores do poder, tentativas, no sentido de se colocarem acima das proibições que se aplicam a todos -isto é, procuram escapar do domínio pela lei para o domínio pela violência. em segundo lugar, os membros oprimidos do grupo fazem constantes esforços para obter mais poder e ver reconhecidas na lei algumas modificações efetuadas nesse sentido – isto é, fazem pressão para passar da justiça desigual para a justiça igual para todos. Essa segunda tendência torna-se especialemente importante se uma mudança real de poder ocorre dentro da comunidade, como pode ocorrer em conseqüência de diversos fatores históricos. Nesse caso, o direito pode gradualmente adaptar-se à nova distribuição do poder, ou, como ocorre com maior frequência, a classe dominante se recusa a admitir a mudança e a rebelião e a guerra civil se seguem, com uma suspensão temporária da lei e com novas tentativas de solução mediante a violência, terminando pelo estabelecimento de um novo sistema de leis. Ainda há uma terceira fonte da qual podem surgir modificações da lei, e que invariavelmente se exprime por meios pacíficos: consiste na transformação cultural dos membros da comunidade. Isto, porém, propriamente faz parte de uma outra constelação e deve se considerado posteriormente.
Vemos, pois, que a solução violenta de conflitos de interesses não evitada sequer dentro de uma comunidade. As necessidades cotidianas e os interesses comuns inevitáveis ali onde pessoas vivem juntas num lugar, tendem, contudo, a proporcionar a essas lutas uma conclusão rápida, e, sob tais condições, existe uma crescente probabilidade de se encontrar uma solução pacífica. Outrossim, um rápido olhar pela história da raça humana, revela uma série infindável de conflitos
entre uma comunidade e outra,
ou diversas outras,
entre unidades maiores e menores – entre cidades,
províncias, raças, nações, impérios -, que quase sempre se formaram pela força das armas.
Guerras dessa espécie terminam ou pelo sangue ou pelo completo aniquilamento e conquista de uma das partes. É impossível estabelecer qualquer julgamento geral das guerras de conquista. algumas, como as empreendidas pelos mongóis e pelos turcos, não trouxeram, senão malefícios. Outras, pelo contrário, contribuíram para a transformação da violência em lei, ao estabelecerem unidades maiores, dentro das quais o uso da violência se tornou impossível e nas quais um novo sistema de leis solucionou os conflitos. Desse modo, as conquistas dos romanos deram aos países próximos ao Mediterrâneo a inestimável paz romana, e a ambição dos Reis franceses de ampliar os seus domínios criou uma França pacificamente unida e florescente.
Por paradoxal que possa parecer, deve-se admitir que a guerra poderia ser um meio nada adequado de estabelecer o reino ansiosamente desejado de paz “perene”, pois está em condições de criar as grande unidades dentro das quais um poderoso governo central torna impossíveis outras guerras. contudo, ele falha quanto a esse propósito, pois os resultados da conquista são geralmente de curta duração: as unidades recentemente criadas esfacelam-se novamente, no mais das vezes devido a uma falta de coesão entre as partes que foram unidas pela violência. Ademais, até hoje as unificações criadas pela conquista, embora de extensão considerável, foram apenas parciais, e os conflitos entre elas ensejaram, mais do que nunca, soluções violentas. O resultado de todos esses esforços bélicos consistiu, assim, apenas em a raça humana haver trocada as numerosas e realmente infindáveis guerras menores por guerras em grande escala, que são raras, contudo, mais destrutivas.
Se voltamos para o nossos próprios tempos, chegamos a mesma conclusão a que o senhor chegou por um caminho mais curto. As guerras somente serão evitadas com certeza, se a humanidade se unir para estabelecer uma autoridade central a que será conferido o direito de arbitrar todos os conflitos de interesses. Nisto estão envolvidos claramente dois requisitos distintos: criar uma instância suprema e dotá-la do necessário poder. Uma sem a outra seria inútil. a liga das Nações não possui poder próprio, e só pode adquiri-lo, se os membros da nova união, os diferentes estados, se dispuserem a cedê-lo. E, no momento, parecem escassas as possibilidades nesse sentido. a instituição da Liga das Nações seria totalmente ininteligível se se ignorasse o fato de que houve uma tentativa corajosa, como raramente (talvez jamais em tal escala) se fez antes. ela é uma tentativa de fundamentar a autoridade sobre um apelo a determinadas atitudes idealistas da mente (isto é, a influência coercitiva), que de outro modo se baseia na posse da força. Já vimos que uma comunidade se mantém unida por duas coisas: a força coercitiva da violência e os vínculos emocionais (identificações é o nome técnico) entre seus membros. se estiver ausente um dos fatores, é possível que a comunidade se mantenha ainda pelo outro fator.
As ideias a que se faz o apelo só podem, naturalmente, ter importância se exprimirem afinidades importantes entre os membros, e pode-se perguntar quanta força essas ideias podem exercer. a história nos ensina que, em certa medida, elas foram eficazes. Por exemplo, a ideia do pan-helenismo, o sentido de ser superior aos bárbaros de além-fronteiras – ideia que foi expressa com tanto vigor no conselho anfictiônico, nos oráculos e nos jogos -, foi forte a ponto de mitigar os costumes guerreiros entre os gregos, embora, é claro, não suficientemente forte para evitar dissensões bélicas entre as diferentes partes da nação grega, ou mesmo para impedir uma cidade ou configuração de cidades de se aliar com o inimigo persa, a fim de obter vantagens contra algum rival. A identidade de sentimentos entre os Cristãos, tanto os grandes como os pequenos, de buscar auxílio no sultão em suas guerras de uns contra os outros. e atualmente não existe ideia alguma que, espera-se, venha a exercer uma autoridade unificadora dessa espécie. Na realidade, é por demais evidente que os ideais racionais, pelos quais as nações se regem nos dias de hoje, atuam em sentido oposto. algumas pessoas tendem a profetizar que não será possível pôr fim a guerra, enquanto a forma comunista de pensar não tenha encontrado aceitação universal. Mas esse objetivo, em todo caso, esta muito remoto, atualmente, e talvez só pudesse ser alcançado após as mais terríveis guerras civis. Assim sendo, presentemente, parece estar condenada ao fracasso, a tentativa de substituir a força real pela força das ideias. Estaremos fazendo um cálculo errado se desprezarmos o fato que alei, originalmente, era a força bruta e que, mesmo hoje, não pode prescindir do apoio da violência.
Passo agora, a acrescentar algumas observações aos seus comentários. o senhor expressa surpresa ante o fato de ser tão fácil inflamar nos homens o entusiasmo pela guerra, e insere a suspeita de que neles existe em actividade alguma coisa – um instinto de ódio e de destruição – que coopera com os esforços dos mercadores da guerra. Também nisto apenas posso exprimir meus inteiro acordo. acreditamos num instinto desta natureza, e durante os últimos anos temo-nos ocupado realmente em estudar suas manifestações. Permita-me que eu sirva dessa oportunidade para apresentar-lhe uma boa parte da teoria dos instintos que, depois de muitas tentativas hesitantes e muitas vacilações de opinião, foi formulado pelos que trabalham na área da psicanálise.
De acordo com nossa hipótese, os instintos humanos são de apenas dois tipos: aqueles que tendem a preservar e unir -que denominamos eróticos, exactamente no mesmo sentido que Platão usa a palavra eros em seu Symposium, ou sexuais, com uma deliberada ampliação da concepção popular de sexualidade -; e aqueles que tendem a destruir e matar, os quais agrupamos como instintos agressivo ou destrutivo. como o senhor vê, isto não é senão uma formulação teórica da universalmente conhecida oposição entre amor e ódio, que talvez possa ter alguma relação básica com a polaridade entre atração e repulsão, que desempenha um papel na sua área de conhecimentos. Entretanto, não devemos ser demasiado apressados em introduzir juízos éticos de bem e de mal. Nenhum destes dois instintos é menos essencial do que o outro; os fenómenos da vida surgem da ação confluente ou mutuamente contrária de ambos. Ora, é como se um instinto de um tipo, dificilmente pudesse operar isolado; está sempre acompanhado -ou, como dizemos, amalgamado – por determinada quantidade do outro lado, que modifica o seu objetivo, ou, em determinados casos, possibilita a consecução desse objetivo. Assim, por exemplo, o instinto de autopreservação certamente é de de natureza erótica; não obstante, deve ter à sua disposição a agressividade, para atingir seu propósito. Dessa forma, também o instinto do amor, quando dirigido a um objeto, necessita de alguma contribuição do instinto de domínio, para que obtenha a posse desse objeto. A dificuldade de isolar as duas espécies de instinto em suas manifestações reais, é na verdade, o que até agora nos impedia de reconhecê-los.
E se o senhor quiser acompanhar-me um pouco mais, verá que as ações humanas estão sujeitas a uma outra complicação de natureza diferente. Muito raramente uma ação é obra de um impulso institual único (que deve estar composto de Eros e destrutividade). A fim de tornar possível uma ação, há que haver, via de regra, uma combinação desses motivos compostos. Isso, há muito tempo, havia sido percebido por um especialista na sua matéria, o professor G. C Lichtenberg, que ensinava física em Göttingen, durante o nosso classicismo, embora, talvez, ele fosse ainda mais notável como psicólogo do que como físico.
Ele inventou uma “bússola de motivos”, pois escreveu: Os motivos que nos levam a fazer algo poderiam ser dispostos à maneira da rosa-dos-ventos e receber nomes de uma forma parecida: por exemplo,
“pão – fama” ou “fama -fama -pão”.
De forma que quando os seres humanos são incitados à guerra, podem ter toda uma gama de motivos apara se deixarem levar – uns nobres, outros vis, alguns francamente declarados, outros jamais mencionados. Não há por que enumerá-los todos. Entre eles está certamente o desejo da agressão e destruição: as incontáveis crueldades que encontramos na história e em nossa vida de todos os dias atestam a sua existência e sua força. A satisfação desses impulsos destrutivos naturalmente é facilitada por sua mistura com outros motivos de natureza erótica e idealista. Quando lemos sobre atrocidades do passado, amiúde é como se os motivos idealistas servisse apenas como escusa para os desejos destrutivos; e, às vezes – por exemplo, no caso das crueldades da Inquisição – é como se os motivos idealistas tivessem assomado a um primeiro plano na consciência, enquanto os destrutivos lhes emprestassem um reforço inconsciente. Ambos podem ser verdadeiros.
Receio que eu possa estar abusando do seu interesse, que, afinal, se volta para a prevenção da guerra, e não para nossas teorias. Gostaria, não obstante, de deter-me um pouco mais em nosso instinto destrutivo, cuja polaridade não é de modo algum igual à sua importância. Como consequência de um pouco de especulação, pudemos supor que esse instinto está em atividade em toda criatura viva e procura levá-la ao aniquilamento, reduzir a vida à vida a condição original de matéria inanimada.
Portanto, merece, com toda a seriedade, ser denominado de instinto de morte, ao passo que os instintos eróticos representam o esforço de viver. O instinto de morte torna-se instinto destrutivo, quando com o auxílio de órgãos especiais, é dirigido para fora, para objetos. O organismo preserva sua própria vida, por assim dizer, destruindo uma vida alheia. Uma parte do instinto de morte, contudo, continua atuando dentro do organismo, e procurando atribuir numerosos fenómenos normais e patológicos a essa internalização do instinto de destruição.
Foi-nos até mesmo imputada a culpa pela heresia de atribuir a origem da consciência a esse desvio da agressividade para dentro. O senhor perceberá que não é absolutamente irrelevante se esse processo vai longe demais: é positivamente insano.
Por outro lado, se essas forças se voltam para a destruição no mundo externo, o organismo se aliviará e o efeito deve ser benéfico.
Isto servirá de justificação biológica para todos os impulsos condenáveis e perigosos contra os quais lutamos. Deve-se admitir que eles se situam mais perto da Natureza do que nossa resistência, para a qual também é necessário encontrar uma explicação. Talvez ao senhor possa parecer serem nossas teorias uma espécie de mitologia nada agradável. Todas as ciências, porém, não chegam, afinal, a uma espécie de mitologia como esta?
Não se pode dizer o mesmo, atualmente, a respeito da sua física?
Para nosso propósito imediato, portanto, isto é tudo o que resulta daquilo que ficou dito: de nada vale tentar eliminar as inclinações agressivas dos homens. segundo se nos consta, em determinadas regiões privilegiadas da Terra, onde a natureza provê em abundância tudo o que é necessário ao homem, existem povos cuja vida transcorre em meio a tranquilidade, povos que não conhecem nem a coerção, nem a agressão.
Dificilmente posso acreditar nisso, e me agradaria saber mais a respeito de coisas tão afortunadas. Também os bolchevistas esperam ser capazes de fazer a agressividade humana desaparecer mediante a garantia da satisfação de todas as necessidades materiais e o estabelecimento da igualdade, em outros aspectos, entre todos os membros da comunidade. Isto, na minha opinião, é uma ilusão.
Eles próprios, hoje em dia, estão armados da maneira mais cautelosa, e o método não menos importante que empregam para manter juntos os seus adeptos é o ódio contra qualquer pessoa além de suas fronteiras.
Em todo caso, como o senhor mesmo observou, não há maneira de eliminar totalmente os impulsos agressivos do homem; pode-se tentar desviá-lo num grau tal que não necessitem encontrar expressão na guerra.
Nossa teoria mitológica dos instintos facilita-nos encontrar a fórmula para métodos indiretos de combater a guerra. Se o desejo de aderir à guerra é um efeito do instinto destrutivo, a recomendação mais evidente será contrapor-lhe o seu antagonista, Eros.
tudo o que favorece o estreitamento dos vínculos emocionais entre homens deve atuar contra a guerra. Esses vínculos podem ser de dois tipos. em primeiro lugar, podem ser semelhantes àquelas relativas a um objeto amado, embora não tenham uma finalidade sexual. A psicanálise não tem motivo porque se envergonhar se nesse ponto fala de amor, pois a própria religião emprega as mesmas palavras:
“Ama a teu próximo como a ti mesmo.”
Isto, todavia, é mais facilmente dito do que praticado. o segundo vínculo emocional é o que utiliza a identificação. tudo o que leva os homens a compartilhar de interesses importantes produz essa comunhão de sentimento, essas identificações. E a estrutura da sociedade humana se baseia nelas em grande escala.
Uma queixa que o senhor formulou acerca do abuso de autoridade, leva-me a uma outra sugestão para o combate indireto à propensão à guerra. Um exemplo da desigualdade inata e irremovível dos homens é sua tendência a se classificarem em dois tipos, o dos líderes e o dos seguidores. Esses últimos constituem a vasta maioria; teem necessidade de uma autoridade que tome decisões por eles à qual, na sua maioria devotam uma submissão ilimitada. Isto sugere que se deva dar mais atenção, do que até hoje se tem dado, à educação da camada superior dos homens dotados de mentalidade independente, não passível de intimidação e desejosa de manter-se fiel à verdade, cuja preocupação seja a de dirigir as massas dependentes.É desnecessário dizer que as usurpações cometidas pelo poder executivo do Estado e a proibição pela Igreja contra a liberdade de pensamento não são nada favoráveis a formação de uma classe desse tipo. a situação ideal, naturalmente, seria a comunidade humana que tivesse subordinado sua vida instintual ao domínio da razão. Nada mais poderia unir os homens de forma tão completa e firme, ainda que entre eles não houvesse vínculos emocionais. No entanto, com toda a probabilidade isto é uma expectativa utópica. Não há dúvida de que os outros métodos indiretos de evitar a guerra são mais exequíveis, embora não prometam êxito imediato. vale lembrar aquela imagem inquieta do moinho que mói tão devagar, que as pessoas podem morrer de fome antes de ele poder fornecer sua farinha.
O resultado, como o senhor vê, não é muito frutífero quando um teórico desinteressado é chamado a opinar sobre um problema prático urgente.
È melhor a pessoa, em qualquer caso especial, dedicar-se a enfrentar o perigo com todos os meios à mão. Eu gostaria porém, de discutir mais uma questão que o senhor não menciona em sua carta, a qual me interessa em especial. Por que o senhor, eu e tantas outras pessoas nos revoltamos tão violentamente contra a guerra?
Por que não a aceitamos como mais uma das muitas calamidades da vida? Afinal, parece ser coisa muito natural, parece ter uma base biológica e ser dificilmente evitável na prática. Não há motivo para se surpreender com o fato de eu levantar esta questão. Para o propósito de uma investigação como esta, poder-se-ia, talvez, permitir-se usar uma máscara de suposto alheamento. A resposta à minha pergunta será a de que reagimos a guerra dessa maneira, porque toda pessoa tem direito á sua própria vida, porque a guerra põe um término a vidas plenas de esperanças, porque conduz os homens individualmente a situações humilhantes, porque compele, contra a sua vontade, a matar outros homens e porque destrói objetos materiais preciosos, produzidos pelo trabalho da humanidade. Outras razões mais poderiam ser apresentadas, como a de que, na sua forma atual, a guerra já não é mais uma oportunidade de atingir os velhos ideais de heroísmo, e de que, devido ao aperfeiçoamento dos instrumentos de destruição, uma guerra futura poderia envolver o extermínio de um dos antagonismos, ou quem sabe de ambos. Tudo isso é verdadeiro, e tão incontestavelmente verdadeiro, que não se pode senão sentir perplexidade ante o fato de a guerra ainda não ter sido unanimemente repudiada. sem dúvida, é possível o debate em torno de alguns desses pontos. Pode-se indagar se uma comunidade não deveria ter o direito de dispor da vida dos indivíduos; nem toda guerra é passível de condenação em igual medida; de vez que existem países e nações que estão preparadas para a destruição impiedosa de outros, esse outros devem ser armados para a guerra. Mas não me deterei em nenhum destes aspectos; não constituem aquilo que o senhor deseja examinar comigo, e tenho em mente algo diverso. Penso que a principal razão por que nos rebelamos contra a guerra é que não podemos fazer outra coisa. Somos pacifistas porque somos obrigados a sê-lo, por motivos orgânicos, básicos. e sendo assim, temos dificuldade em encontrar argumentos que justifiquem nossa atitude.
Sem dúvida, isso exige alguma explicação. Creio que se trata do seguinte. durante períodos de tempo incalculáveis, a humanidade tem passado por um processo de evolução cultural (Sei que alguns preferem empregar o termo civilização). É a esse processo que devemos a melhor daquilo em que nos tornamos, bem como uma boa parte daquilo que padecemos. Embora suas causas e seus começos sejam obscuros e incerto o seu resultado, algumas de suas caracteristicas são de fácil percepção.
Talvez esse processo esteja levando à extinção da raça humana, pois em mais de um sentido ele prejudica a função sexual; povos incultos e camadas atrasadas da população já se multiplicam mais rapidamente do que as camadas superiormente instruídas. Talvez se possa comparar o processo à domesticação de determinadas espécies animais, e ele se acompanha, indubitavelmente, de modificações físicas; mas ainda não nos familiarizamos com a ideia de que a evolução da civilização é um processo orgânico dessa ordem. As modificações psíquicas que acompanham o processo da civilização são notórias e inequívocas. Consistem num progressivo deslocamento dos fins instintuais e numa limitação imposta aos impulsos instintuais.
Sensações que para nossos ancestrais eram agradáveis, tornaram-se indiferentes ou até mesmo intoleráveis para nós; há motivos orgânicos para as modificações em nossos ideais éticos e estéticos. Dentre as características psicológicas da civilização, duas aparecem como as mais importantes; o fortalecimento do intelecto, o que esta começando a governar a vida instintual, e a internalização dos impulsos agressivos com todas as suas consequentes vantagens e perigos.
Ora, a guerra se constitui na mais óbvia oposição à atitude psíquica que nos foi incutida pelo processo de civilização, e por esse motivo não podemos evitar de nos rebelar contra ela; simplesmente não podemos mais nos conformar com ela. Isto não é apenas um repúdio intelectual e emocional; nós, os pacifistas, temos uma intolerância constitucional à guerra, digamos, uma idiossincrasia exacerbada no mais alto grau.
Realmente, parece que o rebaixamento dos padrões estéticos na guerra desempenha um papel dificilmente menor em nossa revolta do que suas crueldades.
E quanto tempo teremos de esperar até que o restante da humanidade também se torne pacifista? Não há como dizê-lo. Mas pode não ser utópico esperar que esses dois fatores, a atitude cultural e o justificado medo das consequências de uma guerra futura, venham a resultar, dentro de um tempo previsível, em que se ponha término à ameaça de guerra.
Por quais caminhos ou por que atalhos isto se realizará, não podemos adivinhar. Mas uma coisa podemos dizer: tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra.
O senhor apanhou-me de surpresa, no entanto, ao perguntar o que pode ser feito para proteger a humanidade da maldição da guerra. Inicialmente me assustei com o pensamento de minha -quase escrevi “nossa”- incapacidade de lidar com o que parecia ser um problema prático, um assunto para estadistas. Depois, no entanto, percebi percebi que o senhor havia proposto a questão, não na condição de cientista da natureza e físico, mas como filantropo: o senhor estava seguindo a sugestão da Liga das Nações, assim como Fridtjof Nansen, o explorador polar, assumiu a tarefa de auxiliar as vítimas famintas e sem teto da guerra mundial. Além do mais, considerei que não me pediam para propor medidas práticas, mas sim apenas que eu delimitasse o problema da evitação da guerra tal como ele se configura aos olhos de um cientista da psicologia. Também nesse ponto, o senhor disse quase tudo o que há a dizer sobre o assunto. Embora o senhor se tenha antecipado a mim, ficarei feliz em seguir no seu rasto e me contentarei em confirmar tudo o que o senhor disse, ampliando-o com o melhor do meu conhecimento -ou das minhas conjecturas.
O senhor começou com a relação entre o direito e o poder. Não se pode duvidar que seja este o ponto de partida correto da nossa investigação. Mas permita-me substituir a palavra “poder” pela palavra mais nua e crua , violência? Atualmente, direito e violência se nos afiguram como antíteses. No entanto, é fácil mostrar que uma se desenvolveu da outra e, se nos reportarmos às origens primeiras e examinarmos como essas coisas se passaram, resolve-se o problema facilmente. Perdoe-me se, nessas considerações que se seguem, eu trilhar chão familiar e comummente aceito, como se isto fosse novidade, o fio de minhas argumentações exige.
É, pois, um princípio geral que os conflitos de interesse entre homens são resolvidos pela violência. É isso que se passa em todo o reino animal, do qual o homem não tem motivo por que se excluir. No caso do homem, sem dúvida ocorrem também conflitos de opinião que podem chegar a atingir as mais raras nuanças da abstracção e que parecem exigir alguma outra técnica para sua solução. esta é, contudo, uma complicação a mais.
No início, uma pequena horda humana, era a superioridade da força muscular que decidia quem tinha a posse das coisas ou quem fazia prevalecer sua vontade. A força muscular logo foi suplementada e substituída pelo uso dos instrumentos: o vencedor era aquele que tinha as melhores armas ou aquele que tinha a maior habilidade no seu manejo. A partir do momento em que as armas foram introduzidas, a superioridade intelectual já começou a substituir a força muscular bruta; mas o objetivo final da luta permanecia o mesmo – uma ou outra facção tinha de ser compelida a abandonar suas pretensões ou suas objeções, por causa do dano que lhe havia sido infligido e pelo desmantelamento de sua força.
Conseguia-se esse objetivo de modo mais completo se a violência do vencedor eliminasse para sempre o adversário, ou seja, se o matasse. Isto tinha duas vantagens: o vencido não podia reestabelecer sua oposição, e seu destino dissuadia outros de seguirem o seu exemplo. Ademais disso, matar um inimigo satisfazia uma inclinação instintual, que mencionarei posteriormente. À intenção de matar, opor-se-ia a reflexão que o inimigo podia ser utilizado na realização de serviços úteis, se fosse deixado vivo e num estado de intimidação. Nesse caso, a violência do vencedor contentava-se com subjugar, em vez de matar, o vencido.
Foi este o início da ideia de poupar a vida de um inimigo, mas a partir daí o vencedor teve que contar com a oculta sede de vingança do adversário vencido e sacrificou uma parte de sua própria segurança.
Esta foi, por conseguinte, a situação inicial dos fatos, a dominação por parte de qualquer um que tivesse poder maior – a dominação pela violência bruta ou pela violência apoiada no intelecto. Havia um caminho que se estendia da violência ao direito ou à lei. Que caminho era este? Penso ter sido apenas um; o caminho que levava ao reconhecimento do fato de que a força superior de um único individuo, podia se contrapor a união de diversos indivíduos fracos.
“L’union fait la force.” A violência podia ser derrotada pela união, e o poder daqueles que se uniam representava, agora, a lei, em contra posição à violência do indivíduo só.
Vemos, assim, que a lei é a força de uma comunidade. Ainda é violência, pronta a se voltar contra qualquer indivíduo que se lhe oponha: funciona pelos mesmos métodos e persegue os mesmo objetivossuperintender a execução dos atos legais de violência. O reconhecimento de uma entidade de interesse como estes levou ao surgimento de vínculos emocionais entre os membros de um grupo de pessoas unidas – sentimentos comuns, que são a verdadeira fonte de sua força.
Acredito que com isso, já tenhamos todos os elementos essenciais: a violência suplantada pela transferência do poder a uma unidade maior, que se mantém unida por laços emocionais entre seus membros. O que resta dizer não é senão uma ampliação e uma repetição deste fato.
A situação é simples enquanto a comunidade consiste em apenas poucos indivíduos igualmente fortes. as leis de uma tal associação irão determinar o grau em que, se a segurança da vida comunal deve ser garantida, cada indivíduo deve abrir mão de sua liberdade pessoal de utilizar a sua força para fins violentos.
Um estado de equilíbrio dessa espécie, porém, só é concebível teoricamente. Na realidade, a situação complica-se pelo fato de que, desde os seus primórdios, a comunidade abrange indivíduos de força desigual -homens e mulheres, pais e filhos – e logo, como conseqüência da guerra e da conquista, também passa a incluir vencedores e vencidos, que se transformam em senhores e escravos. A justiça da comunidade então passa a exprimir graus desiguais de poder nela vigentes. as leis são feitas por e para os membros governantes e deixam pouco espaço para os direitos daqueles que se encontram em estado de sujeição. Dessa época em diante, existem na comunidade dois fatores em atividade que são fonte de inquietação relativamente a assuntos da lei, mas que tendem, ao mesmo tempo, a um maior crescimento da lei.
Primeiramente são feitas, por certos detentores do poder, tentativas, no sentido de se colocarem acima das proibições que se aplicam a todos -isto é, procuram escapar do domínio pela lei para o domínio pela violência. em segundo lugar, os membros oprimidos do grupo fazem constantes esforços para obter mais poder e ver reconhecidas na lei algumas modificações efetuadas nesse sentido – isto é, fazem pressão para passar da justiça desigual para a justiça igual para todos. Essa segunda tendência torna-se especialemente importante se uma mudança real de poder ocorre dentro da comunidade, como pode ocorrer em conseqüência de diversos fatores históricos. Nesse caso, o direito pode gradualmente adaptar-se à nova distribuição do poder, ou, como ocorre com maior frequência, a classe dominante se recusa a admitir a mudança e a rebelião e a guerra civil se seguem, com uma suspensão temporária da lei e com novas tentativas de solução mediante a violência, terminando pelo estabelecimento de um novo sistema de leis. Ainda há uma terceira fonte da qual podem surgir modificações da lei, e que invariavelmente se exprime por meios pacíficos: consiste na transformação cultural dos membros da comunidade. Isto, porém, propriamente faz parte de uma outra constelação e deve se considerado posteriormente.
Vemos, pois, que a solução violenta de conflitos de interesses não evitada sequer dentro de uma comunidade. As necessidades cotidianas e os interesses comuns inevitáveis ali onde pessoas vivem juntas num lugar, tendem, contudo, a proporcionar a essas lutas uma conclusão rápida, e, sob tais condições, existe uma crescente probabilidade de se encontrar uma solução pacífica. Outrossim, um rápido olhar pela história da raça humana, revela uma série infindável de conflitos
entre uma comunidade e outra,
ou diversas outras,
entre unidades maiores e menores – entre cidades,
províncias, raças, nações, impérios -, que quase sempre se formaram pela força das armas.
Guerras dessa espécie terminam ou pelo sangue ou pelo completo aniquilamento e conquista de uma das partes. É impossível estabelecer qualquer julgamento geral das guerras de conquista. algumas, como as empreendidas pelos mongóis e pelos turcos, não trouxeram, senão malefícios. Outras, pelo contrário, contribuíram para a transformação da violência em lei, ao estabelecerem unidades maiores, dentro das quais o uso da violência se tornou impossível e nas quais um novo sistema de leis solucionou os conflitos. Desse modo, as conquistas dos romanos deram aos países próximos ao Mediterrâneo a inestimável paz romana, e a ambição dos Reis franceses de ampliar os seus domínios criou uma França pacificamente unida e florescente.
Por paradoxal que possa parecer, deve-se admitir que a guerra poderia ser um meio nada adequado de estabelecer o reino ansiosamente desejado de paz “perene”, pois está em condições de criar as grande unidades dentro das quais um poderoso governo central torna impossíveis outras guerras. contudo, ele falha quanto a esse propósito, pois os resultados da conquista são geralmente de curta duração: as unidades recentemente criadas esfacelam-se novamente, no mais das vezes devido a uma falta de coesão entre as partes que foram unidas pela violência. Ademais, até hoje as unificações criadas pela conquista, embora de extensão considerável, foram apenas parciais, e os conflitos entre elas ensejaram, mais do que nunca, soluções violentas. O resultado de todos esses esforços bélicos consistiu, assim, apenas em a raça humana haver trocada as numerosas e realmente infindáveis guerras menores por guerras em grande escala, que são raras, contudo, mais destrutivas.
Se voltamos para o nossos próprios tempos, chegamos a mesma conclusão a que o senhor chegou por um caminho mais curto. As guerras somente serão evitadas com certeza, se a humanidade se unir para estabelecer uma autoridade central a que será conferido o direito de arbitrar todos os conflitos de interesses. Nisto estão envolvidos claramente dois requisitos distintos: criar uma instância suprema e dotá-la do necessário poder. Uma sem a outra seria inútil. a liga das Nações não possui poder próprio, e só pode adquiri-lo, se os membros da nova união, os diferentes estados, se dispuserem a cedê-lo. E, no momento, parecem escassas as possibilidades nesse sentido. a instituição da Liga das Nações seria totalmente ininteligível se se ignorasse o fato de que houve uma tentativa corajosa, como raramente (talvez jamais em tal escala) se fez antes. ela é uma tentativa de fundamentar a autoridade sobre um apelo a determinadas atitudes idealistas da mente (isto é, a influência coercitiva), que de outro modo se baseia na posse da força. Já vimos que uma comunidade se mantém unida por duas coisas: a força coercitiva da violência e os vínculos emocionais (identificações é o nome técnico) entre seus membros. se estiver ausente um dos fatores, é possível que a comunidade se mantenha ainda pelo outro fator.
As ideias a que se faz o apelo só podem, naturalmente, ter importância se exprimirem afinidades importantes entre os membros, e pode-se perguntar quanta força essas ideias podem exercer. a história nos ensina que, em certa medida, elas foram eficazes. Por exemplo, a ideia do pan-helenismo, o sentido de ser superior aos bárbaros de além-fronteiras – ideia que foi expressa com tanto vigor no conselho anfictiônico, nos oráculos e nos jogos -, foi forte a ponto de mitigar os costumes guerreiros entre os gregos, embora, é claro, não suficientemente forte para evitar dissensões bélicas entre as diferentes partes da nação grega, ou mesmo para impedir uma cidade ou configuração de cidades de se aliar com o inimigo persa, a fim de obter vantagens contra algum rival. A identidade de sentimentos entre os Cristãos, tanto os grandes como os pequenos, de buscar auxílio no sultão em suas guerras de uns contra os outros. e atualmente não existe ideia alguma que, espera-se, venha a exercer uma autoridade unificadora dessa espécie. Na realidade, é por demais evidente que os ideais racionais, pelos quais as nações se regem nos dias de hoje, atuam em sentido oposto. algumas pessoas tendem a profetizar que não será possível pôr fim a guerra, enquanto a forma comunista de pensar não tenha encontrado aceitação universal. Mas esse objetivo, em todo caso, esta muito remoto, atualmente, e talvez só pudesse ser alcançado após as mais terríveis guerras civis. Assim sendo, presentemente, parece estar condenada ao fracasso, a tentativa de substituir a força real pela força das ideias. Estaremos fazendo um cálculo errado se desprezarmos o fato que alei, originalmente, era a força bruta e que, mesmo hoje, não pode prescindir do apoio da violência.
Passo agora, a acrescentar algumas observações aos seus comentários. o senhor expressa surpresa ante o fato de ser tão fácil inflamar nos homens o entusiasmo pela guerra, e insere a suspeita de que neles existe em actividade alguma coisa – um instinto de ódio e de destruição – que coopera com os esforços dos mercadores da guerra. Também nisto apenas posso exprimir meus inteiro acordo. acreditamos num instinto desta natureza, e durante os últimos anos temo-nos ocupado realmente em estudar suas manifestações. Permita-me que eu sirva dessa oportunidade para apresentar-lhe uma boa parte da teoria dos instintos que, depois de muitas tentativas hesitantes e muitas vacilações de opinião, foi formulado pelos que trabalham na área da psicanálise.
De acordo com nossa hipótese, os instintos humanos são de apenas dois tipos: aqueles que tendem a preservar e unir -que denominamos eróticos, exactamente no mesmo sentido que Platão usa a palavra eros em seu Symposium, ou sexuais, com uma deliberada ampliação da concepção popular de sexualidade -; e aqueles que tendem a destruir e matar, os quais agrupamos como instintos agressivo ou destrutivo. como o senhor vê, isto não é senão uma formulação teórica da universalmente conhecida oposição entre amor e ódio, que talvez possa ter alguma relação básica com a polaridade entre atração e repulsão, que desempenha um papel na sua área de conhecimentos. Entretanto, não devemos ser demasiado apressados em introduzir juízos éticos de bem e de mal. Nenhum destes dois instintos é menos essencial do que o outro; os fenómenos da vida surgem da ação confluente ou mutuamente contrária de ambos. Ora, é como se um instinto de um tipo, dificilmente pudesse operar isolado; está sempre acompanhado -ou, como dizemos, amalgamado – por determinada quantidade do outro lado, que modifica o seu objetivo, ou, em determinados casos, possibilita a consecução desse objetivo. Assim, por exemplo, o instinto de autopreservação certamente é de de natureza erótica; não obstante, deve ter à sua disposição a agressividade, para atingir seu propósito. Dessa forma, também o instinto do amor, quando dirigido a um objeto, necessita de alguma contribuição do instinto de domínio, para que obtenha a posse desse objeto. A dificuldade de isolar as duas espécies de instinto em suas manifestações reais, é na verdade, o que até agora nos impedia de reconhecê-los.
E se o senhor quiser acompanhar-me um pouco mais, verá que as ações humanas estão sujeitas a uma outra complicação de natureza diferente. Muito raramente uma ação é obra de um impulso institual único (que deve estar composto de Eros e destrutividade). A fim de tornar possível uma ação, há que haver, via de regra, uma combinação desses motivos compostos. Isso, há muito tempo, havia sido percebido por um especialista na sua matéria, o professor G. C Lichtenberg, que ensinava física em Göttingen, durante o nosso classicismo, embora, talvez, ele fosse ainda mais notável como psicólogo do que como físico.
Ele inventou uma “bússola de motivos”, pois escreveu: Os motivos que nos levam a fazer algo poderiam ser dispostos à maneira da rosa-dos-ventos e receber nomes de uma forma parecida: por exemplo,
“pão – fama” ou “fama -fama -pão”.
De forma que quando os seres humanos são incitados à guerra, podem ter toda uma gama de motivos apara se deixarem levar – uns nobres, outros vis, alguns francamente declarados, outros jamais mencionados. Não há por que enumerá-los todos. Entre eles está certamente o desejo da agressão e destruição: as incontáveis crueldades que encontramos na história e em nossa vida de todos os dias atestam a sua existência e sua força. A satisfação desses impulsos destrutivos naturalmente é facilitada por sua mistura com outros motivos de natureza erótica e idealista. Quando lemos sobre atrocidades do passado, amiúde é como se os motivos idealistas servisse apenas como escusa para os desejos destrutivos; e, às vezes – por exemplo, no caso das crueldades da Inquisição – é como se os motivos idealistas tivessem assomado a um primeiro plano na consciência, enquanto os destrutivos lhes emprestassem um reforço inconsciente. Ambos podem ser verdadeiros.
Receio que eu possa estar abusando do seu interesse, que, afinal, se volta para a prevenção da guerra, e não para nossas teorias. Gostaria, não obstante, de deter-me um pouco mais em nosso instinto destrutivo, cuja polaridade não é de modo algum igual à sua importância. Como consequência de um pouco de especulação, pudemos supor que esse instinto está em atividade em toda criatura viva e procura levá-la ao aniquilamento, reduzir a vida à vida a condição original de matéria inanimada.
Portanto, merece, com toda a seriedade, ser denominado de instinto de morte, ao passo que os instintos eróticos representam o esforço de viver. O instinto de morte torna-se instinto destrutivo, quando com o auxílio de órgãos especiais, é dirigido para fora, para objetos. O organismo preserva sua própria vida, por assim dizer, destruindo uma vida alheia. Uma parte do instinto de morte, contudo, continua atuando dentro do organismo, e procurando atribuir numerosos fenómenos normais e patológicos a essa internalização do instinto de destruição.
Foi-nos até mesmo imputada a culpa pela heresia de atribuir a origem da consciência a esse desvio da agressividade para dentro. O senhor perceberá que não é absolutamente irrelevante se esse processo vai longe demais: é positivamente insano.
Por outro lado, se essas forças se voltam para a destruição no mundo externo, o organismo se aliviará e o efeito deve ser benéfico.
Isto servirá de justificação biológica para todos os impulsos condenáveis e perigosos contra os quais lutamos. Deve-se admitir que eles se situam mais perto da Natureza do que nossa resistência, para a qual também é necessário encontrar uma explicação. Talvez ao senhor possa parecer serem nossas teorias uma espécie de mitologia nada agradável. Todas as ciências, porém, não chegam, afinal, a uma espécie de mitologia como esta?
Não se pode dizer o mesmo, atualmente, a respeito da sua física?
Para nosso propósito imediato, portanto, isto é tudo o que resulta daquilo que ficou dito: de nada vale tentar eliminar as inclinações agressivas dos homens. segundo se nos consta, em determinadas regiões privilegiadas da Terra, onde a natureza provê em abundância tudo o que é necessário ao homem, existem povos cuja vida transcorre em meio a tranquilidade, povos que não conhecem nem a coerção, nem a agressão.
Dificilmente posso acreditar nisso, e me agradaria saber mais a respeito de coisas tão afortunadas. Também os bolchevistas esperam ser capazes de fazer a agressividade humana desaparecer mediante a garantia da satisfação de todas as necessidades materiais e o estabelecimento da igualdade, em outros aspectos, entre todos os membros da comunidade. Isto, na minha opinião, é uma ilusão.
Eles próprios, hoje em dia, estão armados da maneira mais cautelosa, e o método não menos importante que empregam para manter juntos os seus adeptos é o ódio contra qualquer pessoa além de suas fronteiras.
Em todo caso, como o senhor mesmo observou, não há maneira de eliminar totalmente os impulsos agressivos do homem; pode-se tentar desviá-lo num grau tal que não necessitem encontrar expressão na guerra.
Nossa teoria mitológica dos instintos facilita-nos encontrar a fórmula para métodos indiretos de combater a guerra. Se o desejo de aderir à guerra é um efeito do instinto destrutivo, a recomendação mais evidente será contrapor-lhe o seu antagonista, Eros.
tudo o que favorece o estreitamento dos vínculos emocionais entre homens deve atuar contra a guerra. Esses vínculos podem ser de dois tipos. em primeiro lugar, podem ser semelhantes àquelas relativas a um objeto amado, embora não tenham uma finalidade sexual. A psicanálise não tem motivo porque se envergonhar se nesse ponto fala de amor, pois a própria religião emprega as mesmas palavras:
“Ama a teu próximo como a ti mesmo.”
Isto, todavia, é mais facilmente dito do que praticado. o segundo vínculo emocional é o que utiliza a identificação. tudo o que leva os homens a compartilhar de interesses importantes produz essa comunhão de sentimento, essas identificações. E a estrutura da sociedade humana se baseia nelas em grande escala.
Uma queixa que o senhor formulou acerca do abuso de autoridade, leva-me a uma outra sugestão para o combate indireto à propensão à guerra. Um exemplo da desigualdade inata e irremovível dos homens é sua tendência a se classificarem em dois tipos, o dos líderes e o dos seguidores. Esses últimos constituem a vasta maioria; teem necessidade de uma autoridade que tome decisões por eles à qual, na sua maioria devotam uma submissão ilimitada. Isto sugere que se deva dar mais atenção, do que até hoje se tem dado, à educação da camada superior dos homens dotados de mentalidade independente, não passível de intimidação e desejosa de manter-se fiel à verdade, cuja preocupação seja a de dirigir as massas dependentes.É desnecessário dizer que as usurpações cometidas pelo poder executivo do Estado e a proibição pela Igreja contra a liberdade de pensamento não são nada favoráveis a formação de uma classe desse tipo. a situação ideal, naturalmente, seria a comunidade humana que tivesse subordinado sua vida instintual ao domínio da razão. Nada mais poderia unir os homens de forma tão completa e firme, ainda que entre eles não houvesse vínculos emocionais. No entanto, com toda a probabilidade isto é uma expectativa utópica. Não há dúvida de que os outros métodos indiretos de evitar a guerra são mais exequíveis, embora não prometam êxito imediato. vale lembrar aquela imagem inquieta do moinho que mói tão devagar, que as pessoas podem morrer de fome antes de ele poder fornecer sua farinha.
O resultado, como o senhor vê, não é muito frutífero quando um teórico desinteressado é chamado a opinar sobre um problema prático urgente.
È melhor a pessoa, em qualquer caso especial, dedicar-se a enfrentar o perigo com todos os meios à mão. Eu gostaria porém, de discutir mais uma questão que o senhor não menciona em sua carta, a qual me interessa em especial. Por que o senhor, eu e tantas outras pessoas nos revoltamos tão violentamente contra a guerra?
Por que não a aceitamos como mais uma das muitas calamidades da vida? Afinal, parece ser coisa muito natural, parece ter uma base biológica e ser dificilmente evitável na prática. Não há motivo para se surpreender com o fato de eu levantar esta questão. Para o propósito de uma investigação como esta, poder-se-ia, talvez, permitir-se usar uma máscara de suposto alheamento. A resposta à minha pergunta será a de que reagimos a guerra dessa maneira, porque toda pessoa tem direito á sua própria vida, porque a guerra põe um término a vidas plenas de esperanças, porque conduz os homens individualmente a situações humilhantes, porque compele, contra a sua vontade, a matar outros homens e porque destrói objetos materiais preciosos, produzidos pelo trabalho da humanidade. Outras razões mais poderiam ser apresentadas, como a de que, na sua forma atual, a guerra já não é mais uma oportunidade de atingir os velhos ideais de heroísmo, e de que, devido ao aperfeiçoamento dos instrumentos de destruição, uma guerra futura poderia envolver o extermínio de um dos antagonismos, ou quem sabe de ambos. Tudo isso é verdadeiro, e tão incontestavelmente verdadeiro, que não se pode senão sentir perplexidade ante o fato de a guerra ainda não ter sido unanimemente repudiada. sem dúvida, é possível o debate em torno de alguns desses pontos. Pode-se indagar se uma comunidade não deveria ter o direito de dispor da vida dos indivíduos; nem toda guerra é passível de condenação em igual medida; de vez que existem países e nações que estão preparadas para a destruição impiedosa de outros, esse outros devem ser armados para a guerra. Mas não me deterei em nenhum destes aspectos; não constituem aquilo que o senhor deseja examinar comigo, e tenho em mente algo diverso. Penso que a principal razão por que nos rebelamos contra a guerra é que não podemos fazer outra coisa. Somos pacifistas porque somos obrigados a sê-lo, por motivos orgânicos, básicos. e sendo assim, temos dificuldade em encontrar argumentos que justifiquem nossa atitude.
Sem dúvida, isso exige alguma explicação. Creio que se trata do seguinte. durante períodos de tempo incalculáveis, a humanidade tem passado por um processo de evolução cultural (Sei que alguns preferem empregar o termo civilização). É a esse processo que devemos a melhor daquilo em que nos tornamos, bem como uma boa parte daquilo que padecemos. Embora suas causas e seus começos sejam obscuros e incerto o seu resultado, algumas de suas caracteristicas são de fácil percepção.
Talvez esse processo esteja levando à extinção da raça humana, pois em mais de um sentido ele prejudica a função sexual; povos incultos e camadas atrasadas da população já se multiplicam mais rapidamente do que as camadas superiormente instruídas. Talvez se possa comparar o processo à domesticação de determinadas espécies animais, e ele se acompanha, indubitavelmente, de modificações físicas; mas ainda não nos familiarizamos com a ideia de que a evolução da civilização é um processo orgânico dessa ordem. As modificações psíquicas que acompanham o processo da civilização são notórias e inequívocas. Consistem num progressivo deslocamento dos fins instintuais e numa limitação imposta aos impulsos instintuais.
Sensações que para nossos ancestrais eram agradáveis, tornaram-se indiferentes ou até mesmo intoleráveis para nós; há motivos orgânicos para as modificações em nossos ideais éticos e estéticos. Dentre as características psicológicas da civilização, duas aparecem como as mais importantes; o fortalecimento do intelecto, o que esta começando a governar a vida instintual, e a internalização dos impulsos agressivos com todas as suas consequentes vantagens e perigos.
Ora, a guerra se constitui na mais óbvia oposição à atitude psíquica que nos foi incutida pelo processo de civilização, e por esse motivo não podemos evitar de nos rebelar contra ela; simplesmente não podemos mais nos conformar com ela. Isto não é apenas um repúdio intelectual e emocional; nós, os pacifistas, temos uma intolerância constitucional à guerra, digamos, uma idiossincrasia exacerbada no mais alto grau.
Realmente, parece que o rebaixamento dos padrões estéticos na guerra desempenha um papel dificilmente menor em nossa revolta do que suas crueldades.
E quanto tempo teremos de esperar até que o restante da humanidade também se torne pacifista? Não há como dizê-lo. Mas pode não ser utópico esperar que esses dois fatores, a atitude cultural e o justificado medo das consequências de uma guerra futura, venham a resultar, dentro de um tempo previsível, em que se ponha término à ameaça de guerra.
Por quais caminhos ou por que atalhos isto se realizará, não podemos adivinhar. Mas uma coisa podemos dizer: tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra.
Espero que o senhor me perdoe se o que eu disse o desapontou, e com a expressão de toda a estima, subscrevo-me,
Cordialmente,
Sigm. Freud
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Nota do QTMD?: A dica de publicação foi do companheiro Raul Longo e as cartas foram reproduzidas do blog “Flor Amarela“.
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