quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

FSM, Creative Commons e um outro mundo é possível

Por Rovai

Estou em Dakar, no Senegal, para participar da edição dos 10 anos do Fórum Social Mundial. É um privilégio poder realizar mais uma cobertura jornalística de um evento que faz parte da minha história como profissional e militante da comunicação disso que se convencionou chamar de “outro mundo possível”.
Foi no FSM de 2001 que nasceu a Revista Fórum. Contei essa história algumas vezes, mas vou repeti-la. Era para ser uma única edição. Não havia a pretensão de torná-la um produto periódico. Mas o sucesso daquele número, lançado no começo de abril com um resumo dos acontecimentos e dos debates de Porto Alegre, foi tão grande, que decidimos, na editora Publisher Brasil, tocar um projeto de banca.
No dia 28 de agosto de 2001 lançamos a edição número 1, que circulou no mês de setembro. Eram tempos bicudos, de tucanato no poder e de um total silêncio midiático a respeito de tudo que se contrapunha ao pensamento único.
Fórum tinha 36 páginas, começava bimestral e em preto e branco. Aos poucos foi evoluindo para o que é hoje. Uma revista mensal, colorida e em média com 52 páginas.
A revista esteve presente em todos os FSMs e ainda cobriu muitas agendas específicas de Fórum setoriais, como o de Educação, por exemplo. Além de contribuir na construção de movimentos de comunicação, como o Fórum Mundial de Mídia Livre, que aconteceu em Belém, em 2009. E que vai ter desdobramentos também em Dakar, assunto que tratarei num próximo post.
Ou seja, a Fórum é parte do FSM, suas lutas, seus sonhos, suas conquistas e seus princípios. Ela foi construída a partir dessa história, mas também ajudou a construí-la.
E um dos movimentos no qual a revista sempre participou dentro do FSM foi o do combate à industria da comunicação e da cultura. Porque sempre identificamos esses segmentos como estratégicos para a difusão da agenda neoliberal.
E essa história começa ainda em 2001, em Porto Alegre. Quano no auditório da PUC-RS, um empolgado Richard Stalmann, explicaca para uma platéia ainda pouco informada sobre o tema o que era software livre e porque era fundamental se contrapor ao Copyright na indústria da informática.
Também recordo-me que naquela mesma quente Porto Alegre, numa pequena sala, aproximadamente 50 jornalistas e comunicadores discutiram como difundir a cultura do Copyleft a partir das nossas publicações.
Já há dez anos entendíamos que se tratava de uma maneira de democratizar a circulação e combater o pensamento único na mídia e na produção cultural.
Não à toa o termo era Copyleft, uma brincadeira com o Copyright. Um de esquerda (left) e outro de direita (right).
Não à toa desde o número zero a Revista Fórum traz no seu expediente o compromisso com a livre reprodução dos seus textos. Fórum é left desde o início. Mas com o tempo decidiu se tornar também commons, ou seja, entrar na sociedade do comum, do comunitário, do compartilhamento. Onde se entende que ninguém faz nada sozinho.
Que de alguma forma o que produzimos é fruto do que absorvemos, das interferências que sofremos, daquilo que trocamos.
A base filosófica do Commons é essa. Mas a licença não é só isso. Ela também permite impedir a reprodução para uso comercial do conteúdo disponibilizado. Seja foto, música, texto jornalístico, livro etc. Ou seja, o comum (commons) deve ser livre, mas não pode se tornar comercial sem que aquele que o registrou receba por isso.
É comum, por exemplo, que editoras de livros didáticos entrem em contato com a Fórum para publicar trechos de matérias ou mesmo fotos em livros de história e geografia.
Em geral, liberamos o conteúdo. Mas já houve casos em que preferimos não fazê-lo.
Com o Copyleft não tínhamos essa possibilidade. Por isso adotamos o licenciamento em Creative Commons na Fórum. Porque ele é legalmente mais abrangente.
Mas nos últimos dias, depois que entrei na polêmica sobre a decisão do MinC de retirar o CC do seu site, li muitos textos sobre o tema acusando aqueles que defendem o CC de fazer parte de um movimento pró-americanista e anti-cultura nacional.
Alguns desses textos tratavam o CC como uma ONG gringa que quer nos expropriar e que conta com uns brazucas malandros (como este blogueiro) para ajudá-la no seu esquema bandido.
Curioso, muito curioso. Um setor da burocracia cartorial e da indústria cultural, que ganha muito dinheiro com a propriedade intelectual e com esquemas mandrakes sem ter sua ação fiscalizada, quer tornar esse debate num Fla x Flu.
Pra se esconder no debate.
Para isso escala alguns artistas que querem ser respeitados e pagos pelo que fazem para se contrapor a um movimento que atua contra o cerceamento da difusão cultural no mundo inteiro e que tem no Brasil um dos seus mais belos cases.
É um falso embate.
Primeiro, porque os artistas escalados para o debate público não representam a massa dos criadores. Ao contrário, há muitos que consideram a atual legislação um horror e que estão desejosos de mudanças para que possam trabalhar ser tem que ser escravos de grupos de mídia e da indústria cultural. Para que não tenham que ficar pagando, por exemplo, jabá para ter sua música tocada numa rádio.
Segundo,  porque os defensores do livre e do comum não são contra a criação e o movimento cultural. Muito, mas muito pelo contrário. Querem dar acesso aos bens culturais a uma enorme parcela da população que sempre foi excluída dessa possibilidade. Esse é o eixo do movimento. 
A verdade é que esse é um jogo de grandes interesses e envolve grandes grupos midiáticos nacionais e também grandes corporações globais. Por exemplo, a Microsoft. Que joga do lado de lá e não do lado de cá, como estão tentando insinuar.
Para a empresa de Bill Gates interessa derrotar qualquer movimento relacionado à liberdade. Até porque não há quem atue na comunidade de software livre que não utilize o Creative Commons para licenciar sua criação.
De qualquer forma, a questão não é simples. Há detalhes que escapam aos que estão entrando neste debate agora. Por isso, creio, alguns têm assumido posições que são contraditórias com suas histórias políticas e de militância.
Aproveitei esse texto para também fazer uma lista com alguns esclarecimentos. Curiosamente ela fechou em 13 pontos. Sorte? Azar? Algo a ver com a necessidade de que mais dirigentes de um certo partido brasileiro assumam uma posição mais clara neste debate?
 Bom, por fim, depois deste texto, me dedicarei exclusivamente a cobertura do FSM. Fico na África até o fim do mês, sendo que até o dia 12, cobrirei exclusivamente o Fórum.
Mas após o evento pretendo conhecer melhor a região e vou  compartilhar pelo blog um pouco do que vier a aprender por aqui.
É a segunda vez que venho para África. Na primeira, estive no Quênia, África do Sul e Moçambique. Agora, estou no Senegal e pretendo ir ao menos ao Marrocos.
Se alguém tiver sugestão de matérias, de lugares que merecem ser conhecidos etc, aceito toques.
Aos esclarecimentos, em 13 pontos.
1) O Creative Commons não é uma lei e não tenta ser superior à legislação de nenhum país. O Creative Commons é um movimento global e independente de qualquer nação. Seu objetivo é facilitar o processo de licenciamento livre do pensamento.
2) O direito de autor é preservado na licença Creative Commons. Aquele que fez a obra não perde sua autoria se vier liberá-la em CC.
3) Há várias licenças Creative Commons. A mais utilizada é a que garante remuneração do autor quando há uso comercial da obra.
4) Se o artista, o escritor ou a revista, como a Fórum, não licencia sua obra em CC para que ela possa permitir a reprodução de sua obra por ONG, movimentos sociais ou veículos não-comerciais, terá que escrever um contrato de seção de direitos e registrá-lo em cartório. Uma declaração de próprio punho não é suficiente para se sobrepor à Lei de Direito Autoral brasileira.
5) Se a pessoa copiar ou divulgar uma obra ou música sem autorização explícita do autor ou sem que ele a disponibilize em licenças como o Creative Commons está cometendo um crime pela legislação autoral brasileira.
6) As licenças de Creative Commons que utilizamos seguem a legislação brasileira e estão registradas conforme as leis brasileiras.
7) Quando o interessado usa uma obra licenciada por Creative Commons sabe o que pode e o que não pode fazer com ela e em que momentos deve entrar em contato com o autor.
Se a obra não estiver claramente licenciada em algo como o CC, para efeitos legais ela continua sob Copyright compulsoriamente.
9) A Lei de Direitos Autorais no Brasil é anacrônica. Por ela até os blocos de carnaval têm que recolher direito autoral para sair às ruas mesmo que não estejam cobrando um centavo dos foliões.
10) No Brasil a legislação de direitos autorais dificulta a circulação de bens culturais mesmo que produzidos por órgãos governamentais. Nos EUA, por exemplo, há uma lei específica que torna todos os trabalhos intelectuais produzidos pelos órgãos federais, incluindo suas Agências (NASA. CIA, EPA, etc) de domínio público.
11) Permitir reprodução e publicação não inclui direito de apropriação.
12) Os que defendem novas formas de licenciamento se preocupam tanto com o financiamento da cultura quanto com a garantia de que os criadores e artistas recebam pelo que produzem. Há debates no mundo inteiro sobre o tema.
13) Por fim, se o capitalismo não é a nossa opção de sistema, precisamos construir alternativas praticas para caminhar para um outro modelo. Neste novo modelo será impossível manter a propriedade privada nos termos atuais. E isso não diz respeito só aos grandes latifúndios ou à indústria farmacêutica, mas também diz às novas formas de pensar a propriedade intelectual e cultural.
Buscado no Blog do Rovai

Chico Gomes disse:
Vi o comentário do João e fiquei alarmado. Isso deve ser amplamente divulgado em blogs e listas de discussão de cultura. O assunto é muito grave, gravíssimo. O texto abaixo é de livre reprodução. abçs.
  
DEFESA DO DIREITO AUTORAL COM DURAÇÃO PERPÉTUA
Entrevista de Hildebrando Pontes à Rede TV Minas prenuncia tempos sombrios para o Direito Autoral no MINC.
 
A quase certa nomeação do advogado Hildebrando Pontes Neto para chefiar o setor de direito autoral do MINC sinaliza um retrocesso sem tamanho no debate sobre o assunto no Brasil. A entrevista concedida à TV Rede Minas confirma o que já se temia. Sabe-se que ele tem uma procuração com plenos poderes dada pelo ECAD (está numa ata de assembléia dessa entidade). Até aí, tudo bem, mais de uma centena de advogados também a tem. É um profissional do ramo como tantos outros. Mas a defesa que ele faz daquela entidade em centenas de processos nos diversos tribunais (verificável numa simples busca online no TJ-MG e no STJ) não é só formal. O problema é que ele partilha da mesma visão retrógrada daquele escritório.
 
Não que ele seja um estranho ao tema, muito pelo contrário. Foi presidente do antigo CNDA-Conselho Nacional de Direito Autoral e trabalhou para o escritório de direitos autorais da Biblioteca Nacional. O problema é que o Sr. Hildebrando faz parte de um grupo de especialistas que parou no tempo.  Até o início dos anos 90 as polêmicas doutrinárias que envolviam o direito autoral eram poucas e relativamente mornas.  Olhando os livros publicados entre 1950 e 1990, vemos que as coisas ditas eram mais ou menos as mesmas. Os distintos pontos de vista eram praticamente congruentes, apenas com ligeiras diferenças de abordagem.  Só depois da revolução trazida pelo ambiente digital é que as coisas mudaram. Alguns, não percebendo a radical e rápida mudança nas práticas sociais, se apegaram a alguns princípios do direito autoral que elevaram a condição de verdadeiros dogmas. Outros, conscientes de que o direito é uma construção histórica, que se adapta aos costumes da sociedade, partiram para o desafio que se colocou: o árduo trabalho de reflexão e produção intelectual, buscando novas alternativas. Mas o Dr. Hildebrando não faz parte desse grupo. Muito pelo contrário.
 
Chega-se facilmente a essa conclusão ao ver o que ele disse ao final da entrevista, que sintetiza toda uma concepção anacrônica (e assustadora!).  Para ele, simplesmente não deveria existir o domínio público. O direito autoral deveria durar pra sempre. Um pensamento que ainda resiste em algumas mentes, mas que é considerado superado desde o século 19. Triste situação.
 
Ao longo da entrevista o advogado, com uma incrível desfaçatez, passa por cima de questões cruciais. Até admite que seu principal cliente – o ECAD - pode ter problemas, mas nem de longe sinaliza a necessidade de uma supervisão externa, tal qual existe em qualquer país civilizado. E ainda minimiza as queixas recorrentes de inúmeros compositores. Mais adiante, diz que os autores e artistas de obras audiovisuais tem os mesmos direitos que os da música, quando essa classe de criadores é uma das que mais demandam por mudanças que viabilizem a sua gestão coletiva de direitos. Mas é compreensível a posição deste senhor. Afinal, dar essa possibilidade aos criadores do audiovisual pode ameaçar a arrecadação do ECAD. Tudo pela defesa de seu cliente.
 
Outra coisa intrigante é a naturalidade com que afirmou que a Lei não permite que um professor use uma obra audiovisual numa atividade escolar. Minimizou a questão, dizendo que em atividades que não visam lucro não há interesse na cobrança. Um comentário, no mínimo, intelectualmente desonesto. A entidade que ele defende aterroriza as escolas que ousam fazer festas juninas sem pedir autorização e pagar. Há vários casos de escolas processadas, algumas talvez até com ações instruídas por ele. Um belo projeto de lei do Senador Cristóvão Buarque, que obriga a exibição de filmes nacionais como recurso pedagógico, pode estar condenado ao limbo. E nem dá nem pra cogitar uma possível benevolência do ECAD (que planeja cobrar até dos táxis num futuro próximo, por conta do rádio que é disponibilizado aos passageiros).
 
Este senhor repete uma outra cantilena que muito se tem ouvido dos que administram o ECAD: que o movimento “cultura livre” está aí para atender aos interesses de grandes corporações estrangeiras de telefonia que buscam faturar em cima de conteúdos livres de pagamentos. Ele escreveu um livro batendo nessa tecla. O discurso nacionalista quase convence. Pena que a seguir faz uma tolerante defesa dos contratos leoninos que as gravadoras e editoras musicais oferecem para os compositores. Diz que é justo que elas recuperem seus investimentos. Mas essa corporações que dominam o mercado da músicas, majoritariamente estrangeiras, não o incomodam nem um pouquinho. Aí o nacionalismo radical desaparece. Talvez seja pelo fato delas terem um grande peso na administração das principais associações controladoras do ECAD. Quem quer perder um cliente bom desses, não é mesmo?
 
Enfim, a entrevista desnuda uma visão obtusa que desvia o foco de um debate que interessa: como remunerar o autor no ambiente digital. Tem um monte de gente boa refletindo sobre isso. Mas dele não se ouviu nem uma palavra consistente a respeito. Talvez porque o ECAD já está partindo pra essa cobrança, mesmo sem ter essa atribuição claramente expressa na lei.  Mais uma vez, tudo pra agradar o bom cliente.
 
Não por outro motivo que os dirigentes da associações que dirigem o ECAD vinham trabalhando o nome desse senhor para uma eventual vitória do candidato José Serra. Por uma daquelas ironias da vida, perderam, mas ganharam…
 
Pra finalizar, cabe mais um breve comentário. Na referida entrevista, o Dr. Hildebrando adotou uma postura controlada e tranquila. Quem o conhece de debates públicos, sabe de seu estilo raivoso e agressivo, não há de se enganar. Vem chumbo grosso por aí.
 
A ministra da cultura dá assim um baita bofetada na cara de boa parte do movimento social que apoiou a eleição da Presidenta Dilma Roussef. A única coisa que se pode depreender disso é que a Cultura continua a ser algo secundário nas políticas públicas do governo. Logo, os erros lá são de baixo custo político, coisa fácil de assimilar. Cabe a sociedade provar o contrário.
 
Veja a entrevista aqui: http://www.redeminas.tv/centro-de-midia/opini%C3%A3o-minas/direito-autoral-2
Renato Rovai disse:
Chico, muito bom o seu texto, reproduzimos na home da Fórum. Abraços.

Buscado no Blog do Rovai








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