Sanguessugado do O Biscoito Fino e a Massa
Você pode discutir qual é o peso relativo dos três (não dois) grandes blocos de votos que contribuíram para os surpreendentes 20% de Marina Silva: 1) o voto estritamente marinista, verde, ecológico, que é crítico de algo maior que o PT, ou seja, de todo um paradigma desenvolvimentista que, ironia das ironias, o PT veio a representar melhor que ninguém; 2) o voto "ético"-jovem-universitário-profissional-liberal-urbano, uma parte dele (a maior, me parece) composta por desiludidos com erros ou presepadas do PT, e a outra parte (menor, me parece) composta por eleitores movidos pelo episódio Erenice; 3) o voto evangélico que, por sua vez, tampouco é homogêneo, posto que formado de uma parcela—menor, creio—de votantes que já estavam com Marina e outra parcela—maior, creio—que foi mobilizada em termos anti-Dilma às vésperas da eleição. Num debate que teria, de preferência, que se realizar com atenção aos mapas relevantes, poder-se-ia discutir à exaustão qual é a contribuição de cada um desses segmentos para o resultado final.
O que me parece indiscutível é que somente este último, o voto evangélico, chega como irrupção e acontecimento. Foi ele o grosso do voto não computado nas pesquisas. Isso me parece verdadeiro, mas não se pode pular daí para a afirmação de que foi o atraso quem impediu a vitória dilmista no primeiro turno. Essa linha de análise é sempre muito rasa.
Para a campanha de Dilma, a tarefa é dupla. Por um lado, há que se entender os recados dados por todos os segmentos que votaram em Marina, para que a partir daí ocorra a negociação e o convencimento desse eleitorado. Esses recados têm densidade, têm conteúdo, aludem a fatos reais e não se limitam, de forma nenhuma, a uma suposta “Marina no colo da direita”. Jogar por aí é não entender o jogo. Por outro lado, há que se analisar quais foram os erros de campanha de Dilma que ajudaram a impedir a esperada vitória no primeiro turno. Fazer as duas coisas já não é fácil. Fazê-las simultaneamente é mais difícil ainda, pois a primeira—ouvir realmente os eleitores de Marina—exige humildade, proximidade e empatia. A segunda tarefa—fazer a autocrítica da campanha—exige inteligência, desprendimento, distância. São duas tarefas aparentemente contraditórias, que demandam posturas e capacidades opostas, mas elas são simultâneas e complementares.
O fascinante do resultado de domingo é que todo mundo errou. Se alguém aí previu que Marina venceria em Belo Horizonte, Maceió, Distrito Federal, Nova Lima, Volta Redonda, Vitória, Vila Velha e Niterói, além de praticamente empatar com Dilma em Natal e superá-la em Campina Grande, levante a mão, mostre um link com data anterior a 03 de outubro, que eu visto uma camisa do Flamengo ou do Cruzeiro aqui, a gosto do freguês. Todo mundo errou nas previsões, inclusive o vitorioso de domingo na eleição presidencial, que foi claramente o campo marinista. Por isso o futebol, na sua imponderabilidade, é o esporte que mais tem a ver com a política democrática. Sim, trata-se do velho clichê da caixinha de surpresas, mas também do dado menos óbvio de que o futebol é o menos contábil dos esportes, e se há uma mensagem relevante que a campanha de Marina tentou transmitir é a crítica à redução do mundo a uma lógica contábil. Quando gente como Ricardo Paes de Barros, José Miguel Wisnik, Alexandre Nodari e Eduardo Viveiros de Castro coincidem numa candidatura que não é a sua, ou que não é a que você esperava que eles apoiassem, só um sectário muito desprovido de sensibilidade passaria à desqualificação sem uma escuta detida.
No campo dos erros, há que se destacar os estruturais, mais antigos, e os conjunturais, que se manifestaram de uma forma especialmente maluca nesta campanha. Os erros estruturais são parte do recado das urnas marinistas e não podem ser ignorados. O caso de Belo Horizonte é emblemático. Há exatos dois anos, o PT concluía 16 anos de governo de uma coalizão sua na cidade, com um prefeito que deixava o cargo com noventa por cento de aprovação. Esse prefeito, Fernando Pimentel, é diretamente associado a Dilma e é parte da cúpula de sua campanha. A cidade não tem qualquer tradição de antipetismo raivoso como aquele encontrado em partes de São Paulo e Porto Alegre. Como é possível que o resultado aqui tenha sido Marina Silva 39,9%, Dilma Rousseff 30,9% e José Serra 27,7%, num contexto de grande vitória da esquerda nas legislativas?
Essa parte me parece relativamente simples. As urnas disseram: “não gostamos das lambanças do PT-BH nas eleições de 2008 e do PT-MG em 2010, apesar de o PT ter governado bem a cidade. Votaremos em alguém que é suficientemente próxima aos ideais da bem sucedida prefeitura de 1992-2008, mas que se afastou do campo petista, em parte, por lambanças como essa”. Junte-se a esse recado mais estrutural a avalanche de desinformação e propaganda pra cima dos evangélicos nos últimos dias--essa avalanche realmente existiu—e você tem os ingredientes dos números que deixaram todos os junkies políticos belo-horizontinos de queixo caído. Os mesmos ingredientes se combinam em outras latitudes, como o Acre, um estado onde o PT tem fortíssimas raízes, elegeu o Governador e um Senador, mas no qual Dilma ficou empatada com Marina e bem longe de Serra. Se você é petista e não vê aí um recado além do “Marina está no colo da direita” ou do “Marina é a falência do movimento ecológico” (sim, isso foi escrito), sinto muito, você precisa ler a Flávia Cera.
É sabido que, por volta de dois meses atrás, um grupo de lideranças evangélicas procurou a campanha de Dilma, preocupadas com a disseminação de boatos e emails falsos. A campanha fez a “Carta ao Povo de Deus” e ficou por isso mesmo. Os programas de João Santana—excelentes, belíssimos, inovadores—não dedicaram um só minuto, no entanto, à refutação da pilha de spam religioso anti-Dilma disseminada para púlpitos e fiéis. A coordenação de internet não ofereceu respostas a isso. Preferiu brincar de Twitter e #ondavermelha. A campanha online foi feita à base do cada um por si, sem que se aproveitasse de forma coordenada a enorme base de recursos humanos da esquerda brasileira na rede.
Quando os evangélicos voltaram a procurar a campanha de Dilma, em setembro, o nível da loucura havia piorado sensivelmente. Algumas lideranças religiosas gravaram depoimentos de apoio à candidata petista, mas não houve uma resposta sólida e consistente da campanha. Os marqueteiros não são lá grandes fãs do potencial da rede e, por sua vez, a coordenação de internet de Dilma era pobre e fraca de ideias. É importante reconhecer isso sem que esse reconhecimento nos ensurdeça para o recado real das urnas marinistas, que transcende em muito o spam do ódio.
É evidente que temos que explicar que Michel Temer não é satanista. Aliás, podemos inclusive esclarecer que ele já fez pactos com o DEM mas, pelo que nos consta, com Satã nunca aconteceu. Mas é preciso fazer isso sem desmerecer ou desqualificar o recado dado pelas urnas marinistas em sua totalidade, sem reduzir o voto de Marina a qualquer um de seus blocos, muito menos o evangélico, justamente aquele que é mais conjuntural (apesar que não necessariamente menos numeroso) na constituição da identidade da sua candidatura.
Não há motivo para pânico. Marina tem muito mais a ver com Dilma que com Serra, e isso é o próprio Serra quem diz. Para nós, faltam 3 pontinhos. Para Serra, faltam quase 18. Marina sabe que coloca seu capital político em maus lençóis se apoiar alguém como Serra. Também sabe que não lhe interessa entregar nada de graça a Dilma agora, e há que se entender isso. É da política. Um petista reclamando que Marina não está agindo de forma a facilitar as coisas pra nós é como um lateral queixando-se de que um ponta o engana, fingindo que vai abrir o jogo para depois cortar para o meio. Ora, você tem que aprender a marcar. O jogo é jogado.
Ainda estamos bem, mas é preciso jogar com inteligência, humildade e decência e, acima de tudo, não deixar que nenhuma dessas qualidades atrapalhe as outras duas.
Copiado do blog do Gilson Sampaio