Por Rodolpho Motta LimaE eis que voltamos à discussão do aborto como elemento pretensamente definidor de um processo eleitoral. E aqui me lembro de que, poucos dias antes das eleições do primeiro turno, um conhecido comentarista político de um jornal aqui do Rio dizia, em tom de lamento, que a oposição ao Governo Lula não tinha conseguido “produzir novos fatos” capazes de alterar o quadro sucessório.Penso que o tema “aborto” se enquadra aí. Trata-se de um assunto requentado, artificialmente requentado, para fazer crer a alguns incautos que é isso que está em jogo nessas eleições. Típica inserção promovida pelo que aqui na internet se convencionou chamar de PIG (Partido da Imprensa Golpista).Mas é claro que o foco dessa eleição, nem de leve, deve passar por aí. O que se decide no dia 31 é se se quer ou não eleger um projeto político que se fundamenta na continuidade e no aprofundamento das mudanças sociais promovidas pelo atual Governo e que estão trazendo a dignidade que faltava aos lares de milhões de brasileiros.Em um processo assim, não deve haver lugar para derivações desse gênero: o aborto e sua legalização é para ser discutido e equacionado em outra esfera, que não a da política. Não pode ser elencado como razão de voto. O Estado é laico e deve continuar assim. Não tem nem deve ter “predileções” religiosas. Não segue nem deve seguir ritos e mitos de qualquer igreja.Recordo-me que, há muitos anos (e, claro, guardadas as proporções), um outro tema, caro à igreja católica, motivava debates acalorados. Era o divórcio que, combatido pelo Vaticano, andou elegendo aqui, na época, muita gente a favor e muita gente contra. Afinal, dizia-se naquele momento, “o que Deus uniu só Deus pode desunir”. Era uma posição retrógrada, como outras tantas da Igreja, e não resistiu. O divórcio, hoje, é instituição que rivaliza com o casamento. E não se veem mais – seria até ridículo – autoridades religiosas, maiores ou menores, fazendo campanha contra o candidato X ou Y por ser divorciado ou defender o divórcio. Deixou de ser um dividendo político, porque a vontade popular se impôs e a realidade consagrou a prática, que deu status de direito a milhares (milhões?) de situações de fato.O Estado brasileiro é laico. E, fora do Estado, se é verdade que somos um país católico, não é menos verdadeiro que esse catolicismo divide espaço com diversas outras religiões, seitas ou o que se quiser nomear.Isso para não falar de uma certa religiosidade de fachada, de conveniência, para efeito de recenseamento...A legalização ou não do aborto não pode ser usada como moeda de troca em um processo eleitoral. Se a polarização partidária aceita colocar isso na mesa, só posso lamentar, nunca concordar. Não concordo nem como estratégia, porque esse é o jogo que o PIG quer ver jogado.As Igrejas, de uma forma geral, deveriam estar hoje preocupadas com outros aspectos que ameaçam a sua credibilidade como instituições. Uma, para citar um exemplo, deveria estar preocupada com os seus vergonhosos e recorrentes casos de pedofilia, que degradam o ser humano; outra com a mistura iguamente degradante entre as coisas da fé e do dinheiro, iludindo a boa fé dos crentes; e assim vai...É a consciência das pessoas que deve levar ou não à efetivação do aborto. Não o permitir legalmente, sabemos todos, é uma hipocrisia. Em nossa sociedade, ele existe, legalizado ou não, e a não legalização penaliza mais ainda (como sempre) as mulheres pobres ou pouco instruídas que, sem recursos ou informação, ficam à mercê do curandeirismo e de inadequadas soluções domésticas, pondo em risco a própria vida. Porque as senhoras da sociedade, essas sempre saberão muito bem onde encontrar caras clínicas de excelência... O pensamento religioso alega que só Deus, que dá a vida, pode tirá-la. Não sei por que razão, estou pensando agora nas Cruzadas, na Inquisição, em certas alianças históricas de autoridades religiosas com regimes beligerantes e assassinos, ao longo do tempo... Tudo isso é uma grande falácia. Acredito, assim, que é pouco importante a filiação de um ou outro candidato a essa ou àquela religião (ou a religião alguma) e o respectivo posicionamento quanto ao aborto. Se uma coisa dessas pesou nos votos a favor da Marina Silva, é uma pena para a biografia da Marina...O que se deve esperar é que o povo saiba optar, no dia 31, entre um ideário que dá continuidade às conquistas sociais e que se opõe à perversa acumulação e concentração de renda e um movimento de retrocesso representado pelos que não reconhecem esses ganhos para a sociedade. O que se deve discutir é a manutenção ou não de um projeto político de combate objetivo às injustiças, à exclusão, à miséria e à fome que, já disse alguém, “tanto marca a alma como o rosto”. Aí sim, estaremos dando um passo bem expressivo no sentido de garantir, com ações políticas, o verdadeiro direito à vida.
- Sobre o autor deste artigoRodolpho Motta LimaAdvogado formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ , com atividade em diversas instituições do Rio de Janeiro. Com militância política nos anos da ditadura, particularmente no movimento estudantil. Funcionário aposentado do Banco do Brasil.
- Artigos mais recentes do autor
A onda verde foi uma onda, mas não é verde
Lutar com as palavras
Direita x esquerda: assunto encerrado?
Neymar: infrator beneficiadoManipulação da mídia e antidemocracia
Copiado de Direto da Redação