Cabe
aos tribunais julgar os atos humanos admitidos previamente como
criminosos. Cabe aos cidadãos, nos regimes republicanos e democráticos,
julgar os homens públicos, mediante o voto. Não é fácil separar os dois
juízos, quando sabemos que os julgadores são seres humanos e também
cidadãos, e, assim, podem ser contaminados pelas paixões ideológicas ou
partidárias – isso, sem falar na inevitável posição de classe. Dessa forma,
por mais empenhados sejam em buscar a verdade, os juízes estão sujeitos
ao erro. O magistrado perfeito, se existisse, teria que encabrestar a
própria consciência, impondo-lhe sujeitar-se à ditadura das provas.
Mesmo assim, como a literatura jurídica registra, as provas
circunstanciais costumam ser tão frágeis quanto as testemunhais, e erros
judiciários terríveis se cometem, muitos deles levando inocentes à
fogueira, à forca, à cadeira elétrica.
Estamos assistindo a uma confusão perigosa no caso da Ação 470, que
deveria ser vista como qualquer outra. Há o deliberado interesse de
transformar o julgamento de alguns réus, cada um deles responsável pelo
seu próprio delito – se delito houve – no julgamento de um partido, de
um governo e de um homem público. Não é a primeira vez que isso ocorre
em nosso país. O caso mais clamoroso foi o de Vargas em 1954 – e a
analogia procede, apesar da reação de muitos, que não viveram aqueles
dias dramáticos, como este colunista viveu. Ainda que as versões sobre o
atentado contra Lacerda capenguem no charco da dúvida, a orquestração
dos meios de comunicação conservadores, alimentada por recursos forâneos
– como documentos posteriores demonstraram – se concentrou em culpar o
presidente Vargas.
Quando recordamos os fatos – que se repetiram em 1964, contra Jango – e
vamos um pouco além das aparências, comprova-se que não era a cabeça de
Vargas que os conspiradores estrangeiros e seus sequazes nacionais
queriam. Eles queriam, como antes e depois, cortar as pernas do Brasil.
Em 1954, era-lhes crucial impedir a concretização do projeto nacional do
político missioneiro – que um de seus contemporâneos, conforme registra
o mais recente biógrafo de Vargas, Lira Neto, considerava o mais
mineiro dos gaúchos. Vargas, que sempre pensou com argúcia, e teve a
razão nacional como o próprio sentido de viver, só encontrou uma forma
de vencer os adversários, a de denunciar, com o suicídio, o complô
contra o Brasil.
Os golpistas, que se instalaram no Catete com a figura minúscula de Café
Filho, continuaram insistindo, mas foram outra vez derrotados em 11 de
novembro de 1955. Hábil articulação entre Jango, Oswaldo Aranha e
Tancredo, ainda nas ruas de São Borja, depois do sepultamento de Vargas,
levara ao lançamento imediato da candidatura de Juscelino, preenchendo
assim o vácuo de expectativa de poder que os conspiradores pró-ianques
pretendiam ocupar. Juscelino não era Vargas, e mesmo que tivesse a mesma
alma, não era assistido pelas mesmas circunstâncias e teve, como todos
sabemos, que negociar. E deu outro passo efetivo na construção nacional
do Brasil.
Os anos sessenta foram desastrosos para toda a América Latina. Em nosso
caso, além do cerco norte-americano ao continente, agravado pelo
espantalho da Revolução Cubana (que não seria ameaça alguma, se os
ianques não houvessem sido tão açodados), tivemos um presidente
paranóico, com ímpetos bonapartistas, mas sem a espada nem a
inteligência de Napoleão, Jânio Quadros. Hoje está claro que seu gesto
de 25 de agosto de 1961, por mais pensado tenha sido, não passou de
delírio psicótico. A paranóia (razão lateral, segundo a etimologia), de
acordo com os grandes psiquiatras, é a lucidez apodrecida.
Admitamos que Jango não teve o pulso que a ocasião reclamava. Ele
poderia ter governado com o estado de sítio, como fizera Bernardes.
Jango, no entanto, não contava – como contava o presidente de então –
com a aquiescência de maioria parlamentar, nem com a feroz vigilância de
seu conterrâneo, o Procurador Criminal da República, que se tornaria,
depois, o exemplo do grande advogado e defensor dos direitos do fraco, o
jurista Heráclito Sobral Pinto. Jango era um homem bom, acossado à
direita pelos golpistas de sempre, e à esquerda pelo radicalismo
infantil de alguns, estimulado pelos agentes provocadores. Tal como
Vargas, ele temia que uma guerra civil levasse à intervenção militar
estrangeira e ao esquartejamento do país.
Vozes sensatas do Brasil, começam a levantar-se contra a nova
orquestração da direita, e na advertência necessária aos ministros do
STF. Com todo o respeito à independência e ao saber dos membros do mais
alto tribunal da República, é preciso que o braço da justiça não vá alem
do perímetro de suas atribuições.
É um risco terrível admitir a velha doutrina (que pode ser encontrada já
em Dante em seu ensaio sobre a monarquia) do domínio do fato. É claro
que, ao admitir-se que José Dirceu tinha o domínio do fato, como chefe
da Casa Civil, o próximo passo é encontrar quem, sobre ele, exercia
domínio maior. Mas, nesse caso, e com o apelo surrado ao data venia,
teremos que chamar o povo ao banco dos réus: ao eleger Lula por duas
vezes, os brasileiros assumiram o domínio do fato.
Os meios de comunicação sofrem dois desvios à sua missão histórica de
informar e formar opinião. Uma delas é a de seus acionistas, sobretudo
depois que os jornais se tornaram empresas modernas e competitivas, e
outra a dos próprios jornalistas. A profissão tem o seu charme, e muitos
de nossos colegas se deixam seduzir pelo convívio com os poderosos e,
naturalmente, pelos seus interesses.
O poder executivo, o parlamento e o poder judiciário estão sujeitos aos
erros, à vaidade de seus titulares, aos preconceitos de classe e, em
alguns casos, raros, mas inevitáveis, ao insistente, embora dissimulado,
racismo residual da sociedade brasileira.
Lula, ao impor-se à vida política nacional, despertou a reação de classe
dos abastados e o preconceito intelectual de alguns acadêmicos sôfregos
em busca do poder. Ele cometeu erros, mas muito menos graves e danosos
ao país do que os de seu antecessor. Os saldos de seu governo estão à
vista de todos, com a diminuição da desigualdade secular, a presença
brasileira no mundo e o retorno do sentimento de auto-estima do
brasileiro, registrado nos governos de Vargas e de Juscelino.
É isso que ficará na História. O resto não passará de uma nota de pé de página, se merecer tanto.
Estamos assistindo a uma confusão perigosa no caso da Ação 470, que deveria ser vista como qualquer outra. Há o deliberado interesse de transformar o julgamento de alguns réus, cada um deles responsável pelo seu próprio delito – se delito houve – no julgamento de um partido, de um governo e de um homem público. Não é a primeira vez que isso ocorre em nosso país. O caso mais clamoroso foi o de Vargas em 1954 – e a analogia procede, apesar da reação de muitos, que não viveram aqueles dias dramáticos, como este colunista viveu. Ainda que as versões sobre o atentado contra Lacerda capenguem no charco da dúvida, a orquestração dos meios de comunicação conservadores, alimentada por recursos forâneos – como documentos posteriores demonstraram – se concentrou em culpar o presidente Vargas.
Quando recordamos os fatos – que se repetiram em 1964, contra Jango – e vamos um pouco além das aparências, comprova-se que não era a cabeça de Vargas que os conspiradores estrangeiros e seus sequazes nacionais queriam. Eles queriam, como antes e depois, cortar as pernas do Brasil. Em 1954, era-lhes crucial impedir a concretização do projeto nacional do político missioneiro – que um de seus contemporâneos, conforme registra o mais recente biógrafo de Vargas, Lira Neto, considerava o mais mineiro dos gaúchos. Vargas, que sempre pensou com argúcia, e teve a razão nacional como o próprio sentido de viver, só encontrou uma forma de vencer os adversários, a de denunciar, com o suicídio, o complô contra o Brasil.
Os anos sessenta foram desastrosos para toda a América Latina. Em nosso caso, além do cerco norte-americano ao continente, agravado pelo espantalho da Revolução Cubana (que não seria ameaça alguma, se os ianques não houvessem sido tão açodados), tivemos um presidente paranóico, com ímpetos bonapartistas, mas sem a espada nem a inteligência de Napoleão, Jânio Quadros. Hoje está claro que seu gesto de 25 de agosto de 1961, por mais pensado tenha sido, não passou de delírio psicótico. A paranóia (razão lateral, segundo a etimologia), de acordo com os grandes psiquiatras, é a lucidez apodrecida.
Admitamos que Jango não teve o pulso que a ocasião reclamava. Ele poderia ter governado com o estado de sítio, como fizera Bernardes. Jango, no entanto, não contava – como contava o presidente de então – com a aquiescência de maioria parlamentar, nem com a feroz vigilância de seu conterrâneo, o Procurador Criminal da República, que se tornaria, depois, o exemplo do grande advogado e defensor dos direitos do fraco, o jurista Heráclito Sobral Pinto. Jango era um homem bom, acossado à direita pelos golpistas de sempre, e à esquerda pelo radicalismo infantil de alguns, estimulado pelos agentes provocadores. Tal como Vargas, ele temia que uma guerra civil levasse à intervenção militar estrangeira e ao esquartejamento do país.
É um risco terrível admitir a velha doutrina (que pode ser encontrada já em Dante em seu ensaio sobre a monarquia) do domínio do fato. É claro que, ao admitir-se que José Dirceu tinha o domínio do fato, como chefe da Casa Civil, o próximo passo é encontrar quem, sobre ele, exercia domínio maior. Mas, nesse caso, e com o apelo surrado ao data venia, teremos que chamar o povo ao banco dos réus: ao eleger Lula por duas vezes, os brasileiros assumiram o domínio do fato.
Os meios de comunicação sofrem dois desvios à sua missão histórica de informar e formar opinião. Uma delas é a de seus acionistas, sobretudo depois que os jornais se tornaram empresas modernas e competitivas, e outra a dos próprios jornalistas. A profissão tem o seu charme, e muitos de nossos colegas se deixam seduzir pelo convívio com os poderosos e, naturalmente, pelos seus interesses.
O poder executivo, o parlamento e o poder judiciário estão sujeitos aos erros, à vaidade de seus titulares, aos preconceitos de classe e, em alguns casos, raros, mas inevitáveis, ao insistente, embora dissimulado, racismo residual da sociedade brasileira.
Lula, ao impor-se à vida política nacional, despertou a reação de classe dos abastados e o preconceito intelectual de alguns acadêmicos sôfregos em busca do poder. Ele cometeu erros, mas muito menos graves e danosos ao país do que os de seu antecessor. Os saldos de seu governo estão à vista de todos, com a diminuição da desigualdade secular, a presença brasileira no mundo e o retorno do sentimento de auto-estima do brasileiro, registrado nos governos de Vargas e de Juscelino.
É isso que ficará na História. O resto não passará de uma nota de pé de página, se merecer tanto.
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