quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Reflexões sobre a natureza da corrupção no Brasil

buscado nOutro Lado da Notícia



por Osvaldo Bertolino

Se quisermos levar a sério o debate sobre a corrupção no Brasil, devemos lembrar conceitos políticos há muito desvendados. O Estado é o governo de homens organizados em classes. E a política é a arte de organizar os homens. A vida política, portanto, é o afrontamento dos interesses sociais — ou seja, de classe — pela direção do Estado. Esse não é, portanto, um debate que pode ser elucidado à base do emocinalismo, dando ouvidos a quimeras oportunistas, a caráteres melífluos, a posições dúbias, a meias palavras, a balelas para eleitores incautos engolir e comprar gato por lebre
Nesse fogaréu que se instalou em Brasília com a farsa do “mensalão” em julgamento no Superior Tribunal Federal (STF) — o vértice do poder mais antidemocrático da República, o Judiciário (por que os juízes não podem ser eleitos pelo povo, como no Legislativo e no Executivo?) —, é preciso ver as coisas que estão além das coisas, enxergar o que há por trás da cortina de fumaça.
É fácil imaginar a intenção de gerar redemoinhos por “notícias” vazadas com segunda, terceira e quarta intenções. O objetivo é apenas fazer marola para atrapalhar o governo, negociar alguma vantagem para a família e os amigos e nada mais. Não é, nem de longe, estudar a fundo a questão, propor mudanças na legislação e criar os meios para melhorar o combate à corrupção. Serve, no máximo, para manipular os incautos com vistas a desgastar a imagem de adversários políticos.

Democracia de massas
Seria muito melhor se o STF discutisse, a partir de episódios como esse, a natureza da corrupção no Brasil e porque o país precisa se livrar do manto de fealdade com que a atividade política foi coberta ao longo de nossa história pelo poder da elite. Seria útil também que, em vez de apostar em espertezas de resultados políticos duvidosos, os juízes envolvidos nessa manobra se empenhassem em dar agilidade aos seus trabalhos, debatendo a fundo a necessidade de aprofundar a democratização do sistema político brasileiro.
Como nunca tivemos por aqui uma democracia de massas, a ideia que se tem é a de que a política serve somente de atalho para a conquista ilícita de uma fatia maior de riquezas. A explicação para essa campanha que tenta vender ao público a antipatia aos "políticos" reside no fato de que as opções de consumo — e aí o leque abrange desde serviços públicos até produtos de tecnologias sofisticadas — têm deixado os brasileiros à mercê de interesses poderosos.
A histórica concentração de poder político no Brasil fez com que a imensa maioria da sociedade vivesse pelo cabresto do poder econômico de poucos. Pela via política, pavimentada com desprendimento e visão estratégica, temos a chance de estabelecer o alargamento da democracia econômica e estabelecer a predominância da ideia de casamento da produção em massa com a distribuição em massa, o norte do projeto desenvolvimentista que começa a ser debatido com força no país.

Raízes da corrupção
Ao se fazer isso, se toca na lógica da pirâmide social brasileira. Esse é o pano de fundo de toda a questão. Sempre que se tentou mudar essa lógica, a elite apelou para o golpismo. E o faz mais uma vez. Não há, além disso, rigorosamente nada que justifique esse escarcéu em torno da farsa do “mensalão”. O bestialógico sobre o tema consome papel, tinta, espaço na TV e uma quantidade ainda maior (e ainda menos aceitável) de graves reflexões vindas daquilo que se poderia chamar de forças originárias da corrupção.
A polêmica se alimenta da aparente incompetência que se apresenta como uma característica irremediável, quase genética, que marca tudo aquilo que a grossa maioria dos "analistas" políticos que frequentam a mídia comenta. Escrevo aparente incompetência porque no fundo o que há é descarada manipulação ideológica.
Eis uma boa maneira de definir a questão: é que o Brasil tem um sistema político das classes dominantes com raízes fundas nas capitanias hereditárias. Não é difícil perceber os obstáculos enfrentados pelas forças que andam em direção a um modelo de soberania nacional, de uma economia horizontal marcada pelo desenvolvimento. (Cumpre registrar que existe um setor da esquerda, os “esquerdistas” tipo PSOL, PSTU e outros da mesma estirpe, que, inexplicavelmente, perde enormes, valiosas quantidades de tempo e de energia enlameando o próprio rosto.)
O sistema político brasileiro estruturado pela ideologia da elite considera a locupletação como parte do seu rol de direitos. Por trás disso, está a lógica da hierarquia que define a sociedade brasileira. Aparece aqui o distanciamento entre establishment e nação, entre elite e povo, como um fertilizante poderoso para a corrupção. O mecanismo degenerador traduz-se na ausência do senso de conjunto, de que todos fazem parte de um mesmo projeto, de um mesmo destino. Aí, vale tudo. Negociar favores, tutano do conceito de corrupção, fica sendo apenas mais uma forma de sobreviver na selva.

Karl Marx analisa a França
Independente das projeções que se possa fazer para 2012 e 2014, é preciso constatar que, à medida que os problemas nacionais se complicam, as soluções exigem que o país siga pelo rumo das mudanças. Não é possível olhar para o futuro sem enxergar uma dura luta por soluções patrióticas para os problemas nacionais. Ou por outra: os avanços terão curso no processo de luta de classes.
Quando Karl Marx se dispôs a analisar o caso da França, que havia sido abalada pelo golpe de Estado de Luis Bonaparte, ele elaborou a análise segundo a qual a luta de classes pode ser preto no branco, mas vem acompanhada por uma variada gama de cinzentos. Além dos dois grandes personagens — a burguesia e o proletariado — Marx distingue os segmentos sociais que integram também a luta de classes e demonstra que entre os diversos grupos das classes formam-se alianças políticas. Assim, conclui ele em “O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte”, a luta de classes não é linear e horizontal, mas fracionada e transversal.
O denuncismo da mídia precisa ser enquadrado nessa dimensão. A corrupção é inerente a sistemas políticos como os vigentes no Brasil, na Bósnia-Herzegóvina, na Itália, na Escócia ou nos Estados Unidos. Não faz tempo o ex-primeiro-ministro italiano Giulio Andreotti foi julgado por conluio com a máfia. Outro ex-premiê, Bettino Craxi, foi condenado por aceitar suborno. Silvio Berlusconi vivia envolto em casos de suborno e corrupção. Nos Estados Unidos, o ex-presidente George Bush esteve envolvido com a mega-fraude da Enron. E o Japão é, entre os países ricos, provavelmente aquele em que a corrupção grassa com mais vigor. (Para se ter uma idéia, a yakuza, a máfia japonesa, tem um braço — o sokaya — exclusivo para lidar com tráfico de informações.)

Máquina esfomeada
A inquietante pergunta que emerge disso é: será possível para as forças progressistas sobreviver sendo éticas, agindo correto, jogando pelas regras, enquanto seus competidores jogam areia no olho, agem sem nenhum parâmetro moral e perseguem objetivos na base do "não-importa-como"? Como fazer as coisas acontecerem politicamente no país, muitas vezes tendo de operar à margem do sistema que não funciona, sem deixar de ser ético? Até onde a ineficiência do sistema político permite que ajamos à revelia de suas regras sem atropelar valores?
A resposta a essas questões, que são cruciais para o país, e o caminho a seguir, parecem ser trazer os conceitos de democracia e de justiça para o terreno político e econômico. Uma ação democrática de fato, com participação política ampla das massas, certamente coibiria a prática das classes dominantes de fazer do que é público coisa de ninguém. Para elas, o erário não é dinheiro que pertence a todos e deve ser usado, sem controle da sociedade, para seus projetos.
De onde vêm e para onde vão os recursos que passam pelos cofres públicos? Poucas pessoas no país seriam capazes de fazer um relato que se aproxime do que é a vergonhosa manipulação que esse assunto sofre na mídia. O resultado é uma história sobre a corrupção distorcida, alicerçada em números saídos freqüentemente sabe-Deus-de-onde que, postos diante dos fatos, viram café pequeno perto dos montantes que alimentam a escandalosa máquina esfomeada e descontrolada chamada sistema financiero.

Mercado dos bons sentimentos
Procurar imparcialidade nessa contenda é advogar a falsa ética de hoje, do falso bem, do mercado dos bons sentimentos. Caricaturalmente apontado como um lugar onde a ética nunca foi artigo de primeira linha — o país do "jeitinho" e da malandragem, onde impera a "lei de Gerson" —, o Brasil tem presenciado, nos dias atuais, uma espécie de fortalecimento da falsa ética. A ética é um dos maiores valores sociais. E por isso merece ser preservada. Mas a ética sofrida, conquistada em meio à coragem de assumir totalmente o que é humano. Não a “ética” da direita.
A direita ainda pensa como Hipólito da Costa, que em 1808 fundou o primeiro jornal brasileiro, o Correio Braziliense — mesmo ano da criação da imprensa no Brasil —, que dizia: “Ninguém deseja mais do que nós (a elite) as reformas úteis, mas ninguém se aborrece mais do que nós que essas reformas sejam feitas pelo povo.” Ou como o principal líder civil da “revolução constitucionalista” de 1932, o então dono do jornal O Estado S. Paulo, Júlio de Mesquita Filho, para quem “o império da lei e da justiça” só poderia ser restabelecido no dia em que São Paulo voltasse “à sua condição de líder insubstituível da nação''.
Mesquita Filho, evidentemente, estava falando de um setor de São Paulo: a elite, representada pelo Partido Democrático. Fora desse mundo microscópio, para ele tudo o mais era irrelevante e atrasado. ''Anulada a autonomia de São Paulo (por meio da revolução liderada por Getúlio Vargas, em 1930), o Brasil se transformou num vasto deserto de homens e de idéias'', disse Mesquita Filho da sacada da redação do seu jornal durante um ato contra a revolução de 1930.

Negros engraxates
Mesquita Filho estava, na verdade, estimulando o sentimento de que a elite é melhor do que os demais brasileiros. Ele liderava um pensamento contrário ao dos que tomaram resolutamente o partido do povo e pagaram um alto preço pela opção que fizeram — como Frei Caneca, que terminou seus dias à frente de um pelotão de fuzilamento; de Tiradentes, enforcado por defender a independência do Brasil; e de Cipriano Barata, que passou doze anos no cárcere pelo “crime” de criticar os desmandos daqueles que controlavam o Estado.
A lei e a ordem, para essa elite, são os seus preconceitos antidemocráticos sustentados pela ideologia dominante. ''Na lei, os burgueses precisam dar-se uma expressão universal precisamente enquanto dominam como classe'', escreveu Karl Marx. A lei universal dos conservadores brasileiros trata o povo como os racistas do Sul dos Estados Unidos tratavam os negros — segundo a fina ironia do escritor George Bernard Shaw. Primeiro, reduziam os negros, no mercado de trabalho, à condição de engraxates; depois, concluíam que “negro só serve mesmo para engraxar sapatos”.

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