domingo, 3 de março de 2013

MAR: artista igual merda


 






por Bruno Cava 

Ontem, estive com alguns companheiros na inauguração do novo Museu de Arte do Rio (MAR), no lado de fora. O museu passa a fazer parte do complexo urbanístico do Porto Maravilha, um conjunto de grandes obras na área portuária. Considerada por muito tempo “abandonada pelo poder público”, a região contém várias favelas, como o Morro da Providência e o Complexo do Caju. É ocupada na sua quase totalidade por moradias antigas habitadas por pobres. Nos últimos anos, o poder público resolveu cumprir a sua responsabilidade. A prefeitura de Eduardo Paes (PMDB/PT) disparou o projeto de “revitalização”, com faustosos empreendimentos da construção civil. Disso tem resultado a demolição de muitas moradias e o despejo de moradores, em paralelo a operações sistemáticas de recolhimento de camelôs, ocupantes, moradores de rua e dependentes químicos. O Porto Maravilha é uma peça-chave do Banco Imobiliário Carioca, como a prefeitura define o seu modo de governar.
Ontem, pude vislumbrar o resultado da obra do MAR. Vi prédios reformados e limpíssimos, iluminados como numa ópera italiana. Um monumento impecavelmente branco em meio à escuridão da via Perimetral, sempre suja e pixada. O museu fica no velho Palacete Dom João VI, repaginado com um visual modernista, com novos vidros e formas curvas. Dava quase para ouvir a música placidamente vinda do interior. O acesso estava controlado por cercas e tapumes, além de batalhões de agentes da Força Nacional, PM, Guarda Municipal, seguranças privados e agentes disfarçados. Uma depois da outra, chegaram autoridades, empresários, celebridades e outros membros da classe artística. Lucinha Araújo, Zuenir Ventura, Ziraldo, Ana Botafogo e Fernanda Torres estavam lá, além da presidenta Dilma, que elogiou a presença de mais gente nas filas de exposição, signo certo que brasileiro também tem cultura.
Todos esses festejaram, com sorrisos branquíssimos e taças de champagne, o novo espaço e as novas oportunidades que certamente se apresentariam. Para eles, lógico. Era gente bonita para uma cidade que se quer bonita, moderna, clean. No Rio, as ações de higienização/gentrificação se apóiam sobre tamanho consenso que a prefeitura não sentiu pudor em cunhar os conceitos de “choque de ordem” e “remoção democrática”(!),  para o tratamento aplicado às pessoas. Fala-se abertamente em “limpar” os territórios. O sempiterno racismo de classe foi erigido à política pública, com direito à frequente celebração pela TV e os jornais.
O MAR é o primeiro dos três novos megamuseus a ficar pronto. Virá a somar-se ao Museu do Amanhã, também na Zona Portuária, e ao Museu da Imagem e do Som, em Copacabana, no lugar da antiga boate Help, ambos ainda em construção. Os três serão entregues à tutela da Fundação Roberto Marinho. Eles atestam uma opção política dos governos, de privilegiar grandes aparelhos culturais em vez de redes difusas de investimento direto e redistribuição de renda pelos muitos territórios da metrópole, como no modelo dos Pontos de Cultura. Privilegiam, mais uma vez, ainda maior concentração do poder sobre a produção/distribuição nas mãos do conglomerado cultural-midiático que, desde a ditadura, faz as vezes de mídia oficial. Estou falando da Rede Globo.
Vi também, ao redor, lascas no consenso firmado entre governos e o “pessoal da arte”. Lá, do lado de fora da grade, estavam também grupos contraculturais, embora em menor número até que o de agentes de segurança, gritando o seu dissenso. Grupos como o Bloco Reciclato, que batucou na lata em estética destrambelhada. Formado por travestidos, sujos, desritmados, numa bandinha de performáticos, artistas de rua, favelados, acampados da Aldeia Maracanã, em suma, militantes-artistas e artistas-militantes; seu propósito aos poucos convergiu em constranger todo aquele que saísse do evento. Gritando palavras de ordem e interpelando diretamente as pessoas que saíam, o objetivo era romper o bom tom. Sem tocar nas pessoas, agredir essa unanimidade pedante com que se tenta cimentar o consenso ao redor da nova atitude carioca que o MAR representa.
Vimos pelo menos dois convidados escandalizados com o protesto, implorando aos policiais que os escoltassem até o carro. Horrorizados, tremiam ante a “feiúra” e o barulho que, apesar das remoções, ainda insistem à porta. Os PM levavam-nos pelo braço rindo, se divertindo à beça com a covardia elitizada. Carlinhos de Jesus mostrou o dedo para o outro lado da grade. Depois, presenciamos um dos artistas-ícones da Zona Sul, Ernesto Neto, debochando do protesto, perdendo a calma. Com a tropa de choque em segundo plano, é fácil.
Mas o protesto continuou, jogando água na champagne dos convidados.
O prédio do MAR se propõe à expressão crítica e promete expor movimentos de contestação. Gravações, fotos, montagens, instalações baseadas nas lutas urbanas compõem parte do material exposto. Nesse contexto, existem coletivos que acreditam ser possível explorar dele as contradições, atravessando os espaços higienizados. Haveria lugar para os pobres, defendem-se. Fico imaginando a satisfação na cara dos pobres que, depois da fila, terão a possibilidade de verem a si próprios, suas próprias imagens museificadas (e valorizadas), suas estéticas domesticadas (e valorizadas), suas éticas embranquecidas (e valorizadas).
No cubo branco, o sublime dá acesso ao universal. O novo universal, o universal hipster, o universal da diversidade, com lugar, exposição e valorização para todos, — desde que sobre a mesma base homogênea, o mesmo consenso mercadológico e elitista do novo Rio. Os discursos universais da cultura e dos esportes (como se nesses terrenos não tivessem cabimento o conflito e a política) caem como uma luva para governos que precisam de um sólido consenso para não ter pudor em continuar segregando, removendo, explorando e matando. A governabilidade se constrói sobre uma razão e uma sensibilidade superiores.
A ascensão da “nova classe média” e o enriquecimento da velha são acompanhados pela ascensão de novas vanguardas, estilos e artistas, por uma nova extração da classe artística empreendedora, modernosa e industriosamente criativa. Responderam rapidamente aos chamados do poder constituído, para ocupar os espaços abertos pela expansão do “mercado interno” e os fluxos de investimento. Habemus estética! Esses artistas, a serviço da ordem urbana, firmam os valores de beleza, ousadia e verdade de uma socialidade capturada. Sem projetos como o MAR, não pode haver sensibilidade ou beleza que façam ocultar a violência diluída no cotidiano, o racismo e a reação contra as resistências. A cultura institucionalizada chancela o pertencimento de classe, e confere prerrogativas a seus bem vestidos, malhados, sorridentes, ilustrados e debochados produtores de arte e cultura, com cada vez maior visibilidade na mídia oficial, e sempre diante de uma cidade desigual e racista que, com isso, se reproduz.
O nível de despudor chega ao insuportável. É preciso chamar as bruxas para estragar o conto de fadas. Num planeta mesmerizado por criaturas meio retardadas meio fascistas, precisamos dos space invaders, aqueles monstrinhos do videogame com cara feia e que mordem. E assim comunicar a violência da miséria à ação do colonizador, na melhor estética glauberiana. Vamos mostrar a miséria do poder sem romantizações, mas com otimismo afirmativo. Definitivamente, a arte antimercado (logo, antiniilista) não pode estar nesse conjunto de estruturas e mediações da cultura.
Tem-se aí uma arte abaixo da merda, para remeter à merda de artista por Piero Manzoni. São mesmo “artistas orgânicos” à violência institucional, a violência generalizada e racista contra pobre. Mas, pelo menos, a merda tem uma consistência e até certa coragem. Não se resume à pose. A merda afinal é dotada de uma razão superior, enquanto essa arte se resume a feder.


Nenhum comentário: